Melancolia… - Versão alargada e profundamente alterada

Crónica de um tempo que poderá vir…

Avisaram-nos…sinto que nos avisaram…Mas não me lembro que o tenham feito…

Mas…sim…avisaram-nos…

O que estou a ler indica que nos avisaram…

E não me lembro pois não foi a mim que avisaram…

Mas os avisos existem, e hoje parecem-me de tal ordem explícitos que me espanto por não lhes terem prestado a devida atenção no tempo adequado, tempo no qual essa atenção teria significado a nossa salvação…

Os avisos ainda estão hoje em registos, velhos livros de história ou de ciência, livros esquecidos tanto porque há muito se perdeu o hábito de se lerem esses livros, como já não há gente para ler esses livros…

E os avisos também estão em filmes, em imagens, hoje tornadas inacessíveis porque os aparelhos que permitem a sua visualização há muito que estão desligados de forma a poupar a derradeira energia, que serve para manter o que nos permite estar (ainda…) vivos.

Saio por instantes dos pensamentos deste tipo onde me encontro mergulhado e olho para Ti…

Apesar dos afectos indiscutíveis que nos unem, os teus olhos não estão fixados em mim, mas sim no enorme relógio desta sala onde estamos os dois à espera que chegue a hora que todos tememos nesse relógio.

Não exibes nenhuma emoção (nem mesmo a raiva ou revoltas que seriam de esperar numa situação como a nossa), a não ser uma arrastada tristeza que só se consegue notar se olhar bem para o fundo dos teus olhos, algo escondidos pelo cabelo despenteado e pelo rosto algo inchado de tanto chorares, onde um bem escondido e enclausurado brilho ocultam as emoções que revelam que de facto ainda sentes, ainda és humana…Ou então pela tua respiração, cada vez mais ofegante à medida que os minutos se escoam, o que é sinal de uma ansiedade que nos está a esmagar, sendo que eu disfarço tal ao pensar de forma exaustiva (e também inútil porque já nada há a fazer para contrariar tal) ao que nos trouxe aqui, de tal ordem que me esqueço de tudo o resto, ao passo que tu, de olhar vítreo não tiras os olhos do relógio que marca o fim dos tempos…

Se calhar não é a palavra mais adequada, mas à falta de melhor descrevo o teu estado como sendo uma arrastada “melancolia” que começou quando nos encerrámos nesta sala.

Uma sala de dimensões generosas (com aproximadamente um hectare), com algumas divisões pequenas a rodearem-na. Maneira pomposa de descrever um mero pavilhão, o mais pequeno da nossa estrutura habitacional, a última estrutura que ainda poderia suportar a vida humana.

Sós, naquele pavilhão, não sentíamos o vazio, porque não é particularmente difícil lidar com os vazios…Sentíamos, de maneira bem avassaladora, a presença da ausência de todos os habitantes que conhecêramos mas que tinham desaparecido, tal como em breve iríamos desaparecer também quando o relógio registasse um mero “0” a indicar-nos que o tempo terá acabado, algo de desnecessário pois a falta de ar fará com que estejamos praticamente mortos quando esse número surgir e por isso não sentiremos qualquer tipo de dor, deixaremos de existir sem de facto o sentimos…

Tento ainda resgatar-te das trevas, mas fico-me pelo pensamento, porque se não me consigo resgatar, é com a enorme dor da impotência que te vejo no teu eclipse sem que possa fazer nada por Ti…

Por isso faço apenas o que posso fazer: pensar racionalizar e recordar…

A memória e o conhecimento de boa parte da realidade dos factos faz com que agora reconheça que nascêramos condenados, embora toda a gente o negasse ao ponto de nem sequer pensarem em tal…

Mas a partir do momento em que tanto nós como os nossos pais e avós devíamos a nossa subsistência e sobrevivência a pavilhões hermeticamente fechados e isolados do exterior, estávamos de facto condenados.

A própria justificação, dada a quem insistia em querer ir ao exterior sem qualquer tipo de protecção, era uma assumpção da realidade que teimavam em ser negada:

O ar e o solo exteriores, o ar e os solos não processados e tratados, ou se quiserem, ar e solos naturais, era inóspito aos humanos, sendo que só depois de sujeito a uma série de complexos processos químicos é que nos passaria a ser adequado.

Por uma trágica ironia histórica, quando finalmente dispusemos de tecnologia para tal executamos esse mesmo processo para transformar alguns planetas à medida das nossas necessidades, de maneira a torna-los habitáveis à humanidade, sendo que agora precisávamos do mesmo processo para sobreviver não no espaço exterior mas no nosso próprio espaço interior, no nosso berço, onde tudo começou e onde tudo iria acabar…

Mas apesar de nós, e as gerações mais recentes, só conhecermos esta realidade e de por isso não a estranharmos, nem sempre as coisas tinham sido assim, sendo que as últimas gerações tinham sido a excepção e não a regra, uma excepção em que uns poucos milhares tinham vivido encurralados em gaiolas tecnológicas ao passo que a regra tinha sido, durante quase toda a existência da humanidade, muitos, imensos milhões viverem por todo o planeta ao ar livre.

Pelo menos era isso que nos diziam os registos históricos sobreviventes, ou os nossos avós que tinham ouvido tal da boca dos últimos humanos a viverem no exterior.

Um exterior que nos era vedado porque tínhamos explorado e querido transformar por todos os meios esse exterior, a natureza e os seus recursos, à nossa medida, esquecendo tudo o resto, de tal forma que em vez de exponenciar um meio rico no qual a nossa espécie tivera a sorte de aparecer, conseguimos transformar um planeta rico em vida num planeta inóspito àquela que seria supostamente a sua forma mais evoluída de vida, mas que se portou como outra qualquer forma de vida dita “menor”, pois, ao invés de utilizarmos a nossa inteligência para melhorar esse planeta, demos azo sim a um instinto predador que nos fez esgotar todos os recursos do planeta que tinham permitido a nossa evolução, o nosso progresso, de tal ordem que o nosso derradeiro “acto tecnológico” não foi expandir as nossas colónias no exterior, foi simplesmente construir colónias no interior de maneira a evitar a nossa extinção, deixando as outras entregues a si próprias, condenando-as a curto prazo porque ainda não dispunham de uma autonomia suficiente que as permitisse subsistirem sem apoio do berço de onde tinham partido os seus ocupantes.

Esses registos (que agora soam a avisos vindos do fundo do tempo…) também nos dizem que este problema, que este drama, tinha sido previsto bem cedo, mas como esses avisos soaram a meras “projecções futuristas alarmantes” e não a sérios alarmes científicos bem credíveis, ninguém se preocupou verdadeiramente com tal na altura indicada, na altura adequada…

Mesmo quando os primeiros indícios se começaram a manifestar de forma alarmante (Pequim 2013 – durante alguns dias a capital do antigo Império do Meio foi envolvida por um ar de tal ordem poluído que sem máscaras se tornou praticamente impossível respirar…) todos pensaram que a tecnologia e a ciência certamente iriam encontrar soluções para resolver esse problema e outros que eventualmente apareceriam, ignorando (ou querendo ignorar…) que a capacidade regenerativa do planeta estava próxima do seu limite, e que por isso a humanidade se aproximava de um sinistro ponto de não retorno…

Nesse tempo existiam projectos para implementar uma politica maciça do uso de indústrias e de veículos menos poluentes, ou não poluentes de todo, tornados irrelevantes pela indústria que utilizava os meios clássicos, que alegava que a adaptação ou a reconversão aos novos meios iria custar imensos milhões, milhões que os seus accionistas exigiam como lucros, e assim esta política de vistas curtas, de “maximização de lucros” a todo e qualquer custo, de certa forma hipotecou o futuro das gerações que nos sucederiam, o que não constituía na altura um problema grave, porque na altura se vivia sobretudo o momento presente, que o futuro era algo abstracto e demasiado longínquo, esquecendo que seria a descendência dos seus accionistas e dos outros a pagarem o preço da falta de visão dos seus avós…

Quando milhões começaram a morrer por ano devido a doenças causadas pela poluição ou casos como Pequim de 2013 se tornaram triviais, finalmente a humanidade percebeu a dimensão do sarilho em que se metera, e canalizou então os seus melhores recursos e meios para travar a catástrofe.

Mas então era tarde demais.

Os recursos disponíveis só permitiam construir algumas estruturas protegidas do tamanho de pequenas cidades que ficariam hermeticamente fechadas e protegidas de uma atmosfera que se tornou particularmente agressiva, protegendo umas centenas de milhares de seres humanos, sendo que os restantes milhões seriam deixados à sua má sorte…

Quem habitaria então essas estruturas…? Quem seria seleccionado…?

O bom senso e humanismos indicam-nos que cada povo, cada etnia, cada grupo humano relevante teria alguns representantes, de forma a ter uma amostra o máximo possível semelhante ao resto da humanidade, fazendo com que os sobreviventes fossem de facto representativas daquilo que fora em tempos bem recentes uma espécie, cuja uma das marcas que a diferenciava das demais espécies era a sua diversidade em todos os sentidos.

Mas na realidade as coisas eram bem diferentes…

Em tempos anteriores à iminente catástrofe, tempos felizes e de prosperidade (que nada fariam adivinhar o que se seguiria) homens pragmáticos visionários (conhecedores da história da natureza que indicava que nesta qualquer espécie nasceria, prosperaria e por fim entraria em declínio e morreria) quiseram de alguma maneira prolongar ao máximo a existência da humanidade, criando para tal um protocolo secreto no qual viriam descriminados os grupos de humanos a escolher caso viesse a ocorrer um cataclismo que pudesse ocasionar a extinção da espécie humana, e nesse protocolo estava bem claro que só os seres geneticamente mais aptos seriam escolhidos, seres de historial genético impoluto, que permitiriam que a sua descendência não viesse a desenvolver “anomalias” genéticas como alguns cancros, algumas doenças do foro mental, autismo ou deformações físicas de todos os tipos, mas esses seres teriam que provir de todos os grupos humanos relevantes e não somente de alguns.

Apesar de não estar escrito nesse protocolo de emergência, estava lá subentendido que os mais influentes teriam lugar reservado (pois serviriam de líderes, de orientadores para o resto dos humanos), sendo que estes na prática passaram a ocupar a maior parte dos lugares, e os tais “geneticamente mais aptos” foram secundarizados, o que veio a custar bem caro à humanidade…

Assim a primeira geração a nascer nessas estruturas esteve longe de nascer perfeita, nasceu com todos os defeitos e virtudes com que nasce um ser humano, mas nascendo e crescendo também fragilizada pela qualidade do ar processado, que afectava o seu sistema imunitário potenciando assim o aparecimento de uma série de outras doenças, que além de diminuírem de forma drástica a esperança média de vida, tornavam esta também algo penosa.

Mas enquanto que vivendo disseminado por todo o planeta e em grande número, esse grande número faria com que as disfuncionalidades não afectassem a dinâmica e o prosperar da espécie, acontecendo exactamente o contrário num ambiente confinado e com um número muito menor de pessoas…

Como se a situação não fosse já dramática, enquanto no exterior a humanidade acabou por se extinguir num espaço de tempo relativamente reduzido, as estruturas que protegiam a sobrevivente começaram a degradar-se de forma inexorável porque os meios de a manter não existiam (os que foram criados tinham-se esgotado por um lamentável erro de calculo no que tocava à sua durabilidade), de tal maneira que essas estruturas, no espaço de apenas uma geração, foram colapsando uma a seguir à outra, até só restar a nossa.

Mas até esta começou a definhar ao ponto de as últimas dezenas de habitantes terem tido uma ideia desesperada:

Organizou-se uma equipa com os mais aptos dos seus membros, que nos últimos veículos operacionais deveriam encontrar no exterior um outro local onde pudéssemos viver.

Eu e tu fazíamos parte dessa equipa e por isso sabemos demasiado bem, e na primeira pessoa, o que se passou:

Os meios dessa equipa permitiam visitar e explorar três grandes cidades e uma montanha que nos eram vizinhas, o que, pensávamos, aumentava consideravelmente as nossas hipóteses de encontrarmos um refúgio seguro e duradouro.

Mera ilusão:

Constatámos que as cidades estavam apodrecidas, mortas, degradadas e parcialmente ocupadas pela natureza que ocupara o lugar que essas cidades lhe tinham roubado.

Conhecíamos essas cidades de antigos registos, conhecíamos essas cidades no seu apogeu, e por isso ainda hoje não consigo encontrar palavras que descrevam o que vimos, pois é indescritível o aspecto de um gigantesco cadáver humano urbano destruído, sendo que a situação só não era completamente de pesadelo devido à ausência de corpos humanos, que tinham desaparecido há muito sem deixarem qualquer tipo de rasto.

Mas novamente a presença da ausência foi o que nos chocou mais: aquelas estruturas gigantescas tinham sido criadas por humanos, e por isso só eram justificáveis com humanos, e sem eles eram apenas gigantescos objectos grotescos, sem eles não passavam de túmulos sinistros, onde cada pormenor dessa estrutura nos recordava de quem se servia dele estava morto.

Ficámos então cientes que o fim estava próximo, e por isso agarramo-nos desesperados à última esperança – A montanha.

Esta era alta o suficiente para o ar se manter respirável no seu topo, pensámos.

O espaço era reduzido, mas o nosso escasso número faria com que, mesmo um espaço reduzido, nos permitisse a sobrevivência.

Mera ilusão…

A catástrofe ambiental fora de tal ordem que lado nenhum do planeta estava a salvo desta, e como os danos foram extensos, a capacidade regenerativa sofrera uma mutação, originando uma outra atmosfera que nos era venenosa em todo e qualquer lugar no planeta.

E assim o grupo que deveria trazer a notícia de uma nova esperança trouxe a notícia da confirmação da morte de todos nós.

A agonia não durou muito tempo:

Parte de nós, ao perder a esperança, acabou por morrer antes que os meios de sustentação de vida deixassem de funcionar por completo, fazendo com que os sobreviventes fossem ocupando os pavilhões ainda operacionais, encerrados um após o outro, até restar apenas este, até restarmos apenas os dois…

Foi depois da terceira pessoa ter falecido que deixaste o mundo e fixaste o olhar no relógio que determinava o tempo restante.

Foi nessa altura em que deixaste de lutar, deixaste de chorar, deixaste de ter qualquer tipo de atitude ou sinais humanos, passando a ter o tal olhar ausente, que brilhava apenas de forma bem nítida quando era assinalada a passagem de mais um dia, mais uma hora, enquanto eu também me refugiava da realidade no passado, lendo e decorando os tais registos históricos que me permitiram saber ao pormenor o que nos tinha levado até esta sala.

Por acaso, enquanto lia, dei comigo a reparar numa imagem reflectida num vidro próximo: era a imagem de um rosto inexpressivo, era a imagem de alguém que sentia em si o peso dos erros de quem nos tinha levado até ali, era a imagem de alguém que perdera toda a vontade de viver, agarrando-se à vida apenas porque não sabia o que mais fazer, mas esse laço à vida era de tal forma ténue que quando o fim surgisse não seria sentido, e até serviria de alívio, era uma imagem de tenebrosa Melancolia, era a imagem do meu rosto reflectido no tal vidro.

Assustado pela imagem levantei-me, fui ter contigo e abracei-te.

Para meu enorme espanto reagiste, olhaste para mim e sorriste, de uma forma triste, mas sorriste, sabendo que o fim estava próximo, mas estando feliz por eu estar contigo.

Deixámos então que os minutos se esgotassem em paz, felizes por partilharmos o que nos restava, felizes por partilharmos o nosso amor, felizes por partilharmos a nossa Melancolia…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 01/03/2013
Código do texto: T4166018
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