Creme meu corpo e jogue as cinzas no mar

- Quando eu morrer, creme meu corpo e jogue as cinzas no mar.

Disse Augusto com a voz ofegante, deitado no leito do hospital onde estava internado há meses, por causa de um câncer no pulmão.

Regina o acompanhou desde o início e, com a força do seu otimismo, deu o suporte necessário para que ele ainda tivesse esperança de sobreviver. Mas, aos poucos, a ilusão de Augusto foi sendo exposta ao realismo dos médicos. Ele tinha poucos dias de vida.

Embora os dois estivessem separados há quase um ano, a notícia da doença maligna os fez se reaproximarem. Regina se sentiu no dever de cuidar do homem com quem havia vivido por dez anos. Toda a mágoa causada pela separação foi anulada pelo altruísmo dela e pelo reconhecimento dele da carência de uma companheira ao seu lado. Agora não importavam mais as diferenças, as brigas passadas e todo o mal estar vivido no ano anterior. Os dois filhos do casal já haviam sofrido demais ao verem os pais em conflito. E agora estavam amparados pela avó materna, que tentava amenizar o drama da futura perda do pai deles.

Clara tinha 8 anos e Joaquim 10 quando tornou-se cotidiano o anseio de Regina ao esperar Augusto chegar em casa, depois de passar em bares todos os dias, depois do trabalho. Sempre após a meia noite, as brigas eram constantes e, enquanto as crianças tentavam dormir, ouviam os berros da mãe maldizendo o pai, embriagado e fedendo a fumaça. Ele retrucava tentando se justificar e era audível a sua voz embargada pelo álcool.

O alcoolismo, cultivado a vinte anos, trouxera consigo outro problema, o tabagismo. Desde os tempos da adolescência, quando os dois se conheceram, até os últimos dias deles juntos, Augusto apreciava a bebida sem um pingo de moderação. Mas os encantos dele para Regina foram superiores a esse defeito. Depois de cinco anos de namoro, eles se casaram no cartório e na praia, lugar que foi marcante na história dos dois.

A festa foi muito animada e Regina nunca esteve tão linda. Era uma morena na flor dos 25 anos, de olhar marcante, cabelos longos e ondulados. Mas seu ar de mulher simples e objetiva mudou de tom com o encantamento do vestido branco de calda longa e decote marcando as curvas dos seus seios fartos. Seu corpo torneado, bem distribuído na sua estatura mediana, enchia os olhos do futuro esposo que via nela a mulher perfeita para ser mãe dos seus filhos. A maquiagem acentuava a sedução daqueles olhos grandes de cor verde-mel. Ela reluzia de satisfação e seu rosto transparecia uma alegria tremenda ao dar votos de confiança àquele amor que eles juraram ser para sempre.

Augusto também estava muito feliz, pois encontrara uma mulher que se mostrou companheira, amiga e uma amante apaixonada. Ele era um homem alto e atraente, com olhos de cigano, escuros e sinuosos, cabelos grandes castanhos claros e barba por fazer. Ele tinha 28 anos na data do casamento. Os dois se divertiam muito juntos, tinha gostos culturais semelhantes, admiravam boa música e as belas artes. Não fosse pelos vícios de Augusto, manifestados desde sua adolescência, a união dos dois realmente se estenderia até que a morte os separasse.

Os dois não demoraram em por no mundo seus descendentes. Dois meses depois do casamento, em maio, Regina já estava grávida. Nascia, então, Joaquim com os olhos da mãe e tipo físico do pai. Em menos de dois anos, nascia Clara. Tão alva quanto o nome que carregava, ela nasceu com os olhos do pai e a beleza da mãe.

Os primeiros anos do casamento foram ótimos. Eles viajavam muito com as crianças, por praia lindas, faziam trilhas, acampamentos e adoravam aventura. Depois do quinto ano, os problemas no trabalho de contador fizeram Augusto buscar nos botecos um desestresse diário. Como Regina também trabalhava, eles só se viam de manhã cedo e tarde da noite, quando Augusto voltava do bar.

Regina, que era dona de casa, trabalhava em um escritório de advocacia por dois expedientes e ainda cuidava dos filhos, tolerou as falhas de Augusto até além da sua conta. Quando a paciência e o dom de apaziguar as situações mais chatas causadas pela embriaguez do esposo chegaram ao fim, ela começou a por para fora todo o estresse que a afligia diariamente.

Foi em um período de férias dele que as coisas começaram a desandar. Era esperado que ele a ajudasse, pelo menos, buscando as crianças no colégio. Mas Augusto saía todas as tardes, depois do almoço, para o bar encontrar com os amigos da bebida. E nisso perdia a hora da saída do colégio dos meninos. Regina foi chamada, em urgência, por vezes para pegar os filhos que ficavam sozinhos esperando, a tempo das portas se fecharem. Na segunda vez consecutiva que Augusto esqueceu de buscá-los, foi a primeira grande briga do casal.

Para piorar o clima chato entre os dois, Augusto deixava a casa impregnada de nicotina, havia cinzas e bitucas de cigarro espalhadas pelos canteiros do jardim. E assim, Regina pós um ponto final nas desavenças, saindo de casa. Voltou para a casa da mãe e levou consigo Clara e Joaquim, que ainda atordoados com aquela confusão, buscavam no aconchego da casa da avó uma nova morada.

Augusto aumentou a intensidade do consumo do álcool, pois ainda amava Regina e sabia que estava errado. Mas não sabia como parar. Tentava, na bebida, afogar suas mágoas. A cada gole, dava uma tragada no cigarro. Assim, iam-se dois maços por dia. Esse hábito se deu por meses, até que os primeiros sinais do câncer começaram a surgir. Dores fortíssimas no peito, falta de ar e uma tosse que não parava.

Como todo fumante corre de medo do hospital, não foi por iniciativa de Augusto que ele foi diagnosticado cancerígeno. Mas foi um vizinho que presenciou uma crise forte de tosse dele, enquanto se esbarravam no corredor do prédio. De imediato, o vizinho o levou a um posto de saúde, onde foi tirada uma chapa de raio x dos pulmões de Augusto. O médico se assustou com a mancha que apareceu na imagem. Então o internou e pediu uma biópsia. Dias depois, foi confirmada a suspeita do doutor. Era câncer no estágio terminal.

Regina entendia o significado daquele pedido de Augusto para jogar suas cinzas no mar. Os dois se conheceram na praia, em um por do Sol, quando ela, sentada na areia contemplando o mar, foi interpelada por um rapaz que se aproximava dizendo:

- Posso fazer companhia a essa moça tão bonita?

Ela respondeu que sim e, desde então, eles não se desgrudaram mais. Sempre marcavam de se encontrar naquele mesmo lugar. Todas as tardes, caminhavam na praia e conversavam. Foram tantos luaus envoltos naquela paixão que pareciam não ter fim. Nas vezes que resolviam tomar banho de mar, já a noite, um aquecia o outro com o calor do peito.

Foi naquele mesmo mar que Augusto decidiu ter suas cinzas depositadas. Aquela atitude emocionou Regina, que entendeu que o amor que ele sentia não tinha acabado e nela, apesar das mágoas, esse amor também era verdadeiro.

Stephany Eloy
Enviado por Stephany Eloy em 28/02/2013
Reeditado em 02/03/2013
Código do texto: T4164173
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