Memórias da terça-feira
Sim , era o mesmo rosto de dez anos atrás , até mais bonito pelo passar do tempo , o imprevisível adentrando o previsível . A face desencadeante de noites de insônia e dias de angústia , a partir de um simples telefonema e de alguém orgulhoso demais para deixar transparente a dor .
Agora ,a folia idiota de três dias , acompanhando cada vez mais sozinho na multidão , as mesmas troças e maracatus que lhe baqueavam o coração , primeiro motor da antiga euforia , agora resumido ao mascarado olhar e constatação do próprio vazio . O carnaval engolia tudo e todos , vomitava–os de ladeira acima e abaixo , na euforia desesperada das terças – feiras , correndo contra o relógio e a desolação exausta das cinzas do dia seguinte .
Uma surpresa , agora mera curiosidade mascarada , fez a aproximação ; a bela mulher , olhos esgazeados de tesão e cerveja , pulando abraçada ao seu homem , obscuro objeto de um desejo outrora todo seu , descalça, bermuda curta , desfiada , marcando o corpo moreno e flexível a todo o frevo , pernas em tesoura sobre o asfalto em brasa , uma blusa amarrada acima do umbigo,o outro,um sensaborão rebocado pela maré humana, com aquele mulherão nos braços ; da garganta, o falsete de bêbado “Olinda , quero cantar...” , mais súplica que intenção.
Na memória tresandando a álcool , revia o cinema do gostoso começo , das brigas , reconciliações, sofrimento , dúvidas , até um telefonema no meio da noite , a voz tranqüila a desmoronar seu mundo , a surpresa engolindo o amor próprio, depois silencio . O passado, agora facada no cérebro, amortecida por dez anos de um vagar atroz pelo mundo, a alma espessa como um tijolo . Resistira , a alma tirou de letra mais uma . Estar ali , pertinho dela e do seu homem, sem ser percebido , era demais .
Contemplou-a ,comeu –a com os olhos ; a multidão a cantar “...se essa rua fosse minha...”; sua ,era a dor de corno atroz e revivescente naquela praça transbordante ; a orquestra atacou mais um frevo rasgado , seus indicadores subiam e desciam , marcando uma cadencia de dor e rancor , aproximou-se mais , olhou-a bem dentro dos olhos , acariciou-lhe o rosto suado com a mão enluvada e imunda e diluiu-se na multidão , afinal das contas,”..tanta mulher bonita e minha mãe sem nora...” , cantava um vocalista bêbado e feliz , no bloco que se aproximava..