Aqueles versinhos
Seu nome era Carlos Bóris. Era responsável pela limpeza da UTI do hospital Dom Pedro e dono de uma alma endurecida. Atrás das pálpebras enrugadas, nenhuma lembrança que lhe molhasse os cílios...
Com retinas já fatigadas, era testemunha de muitos passamentos. Porém encarava cada morte com a maior naturalidade do mundo.
Em um dia, suponho ser o mais belo dos dias, Carlos passava pano na UTI quando escutou:
- O senhor lembra meu vôvô. Ele cantava todas as noites para mim...
O nome dela era Júlia... Se ainda possuísse os cabelos, seriam os mais lindos daquele recinto. Carlos nada fez, apenas ouviu. Então a menininha prosseguiu:
- Os versos que vôvô cantava eram assim:
"Quando o Sol não vê a Luma
Perde a Luz, não vem brilhar.
Mas, se vê, é como a Pluma
Que se embala pelo Mar..."
- Viu? É fácil. Aí o senhor treina em casa e me canta amanhã. Em troca, dar-lhe-ei um presente...
Carlos então deixou escapar uma lágrima e nada disse, retirando-se depressa. No entanto, ao passar pela parede vítrea da UTI e vendo que a menininha sorria para ele, permitiu a si mesmo um aceno e também um tímido sorriso. Acho que aquele era o primeiro sorriso dele...
No dia seguinte, Carlos chegou ao hospital e notou a ausência da menina. Recebeu a notícia do falecimento da garota e foi informado do local onde ela era velada. Era uma igrejinha simples, a duas quadras do hospital. Carlos decidiu ir.
Lá chegando, já com o rosto inundado por cristais lacrimosos, subiu ao altar e pediu para falar algumas palavras. O padre consentiu.
Carlos começou seu testemunho, assim dizendo:
- Tenho 81 anos de idade e apenas um dia de vida. Senhores, ontem foi a noite mais feliz da minha existência, pois passei a noite ensaiando uns versinhos para contar para esta menininha... Como prometido, Júlia, aqui canto:
"Quando o Sol não vê a Luma
Perde a Luz, não vem brilhar.
Mas, se vê, é como a Pluma
Que se embala pelo Mar..."
Quase não terminou, visto que os soluços já roubavam sua voz. E não tinha um olho na igreja que não estivesse molhado.
Logo após, Carlos se retirou. Quando chegou à frente da Igreja, percebeu que as árvores estavam mais verdes, que os pássaros cantavam mais alegres e que o Sol brilhava mais. Assim, sentindo o vento da vida na face, olhou para as nuvens sorridentes e disse:
- Obrigado, Júlia. Amei o presente...
A partir daquele dia, ao olhar para a Luma, lembrava a infante e sorria...
Carlos aprendeu várias coisas. Uma delas foi a musiquinha do avô de Júlia. E a outra foi a seguinte fatalidade: há coisas nesta vida que, naturalmente, só se explicam ou na sua presença ou na sua ausência.
E, como nos versos que aprendeu, seu Sol havia voltado a brilhar.
Em algum dia de novembro de 2012