UM AMOR INVENCÍVEL

Esta é a história de dois jovens que se conheceram numa festa realizada em uma casa de família rica, em Mossoró, ainda na segunda década dos anos 1900. Naquele tempo, era moda as famílias abastadas possuírem em casa um piano (pelo que soube, a marca preferida era a alemã “Essenfelder”) e promoverem bailes em seus salões para os quais convidavam seus amigos. Anna, assim mesmo com dois enes - por vaidade do avô, Theobaldo - nome delicado como era sua figura bonita e educada, era a personagem central. Jorge, um moço de 1,75m, aparentando uns 25 anos, cor morena, cabelos negros, fartos que, penteados, formavam ondas. Bem vestido, elegante, simpático, chegou em companhia de um amigo e sua presença, atrevida, despertou a curiosidade, não apenas das moças, como de todos os que compareceram à tertúlia. Anna era filha do dono da casa em que se realizava a festa, Cel. Thomaz, que puxara ao pai, Cel. Theobaldo, um fazendeiro rico e orgulhoso. Thomaz, o segundo filho de Theobaldo, era um tipo forte, alvarento, rigoroso nos costumes e muito grosseiro com os empregados. No inventário do pai, Thomaz preferira ficar com a fazenda, enquanto o irmão Anthero ficara com três armazéns na cidade, que vendeu e foi morar em Recife, onde comprou uma farmácia e o que sobrou da venda, depositou em um banco. Lá casou-se e tinha três filhos, duas moças, Araci e Rita, e um rapaz já formado em farmácia. Thomaz, assim como outros fazendeiros, tinha residência oficial na cidade, ocupando amplo terreno onde mantinham uma vacaria, pois gostava também de ordenhar.

Anna tinha dois irmãos. Thobias, já formado em Direito em Recife e Homero, o mais velho, que concluíra o Curso Ginasial em Mossoró e preferira ficar na fazenda, ajudando o pai em sua administração. Este já tinha trinta anos; embora parecesse fisicamente com o Coronel, tinha o temperamento oposto: era sempre alegre, conversador e tratava muito bem os trabalhadores da fazenda, sendo amigo de alguns deles, frequentando suas casas. Ainda não casara e gostava de namoricar as moças da fazenda; mas o pai não aprovava esse comportamento e já lhe externara o seu desapontamento; mas Homero pouco ligara para essa intolerância.

Jorge havia sido adotado por outro fazendeiro do município, senhor Alípio, de menor poder econômico do que Thomaz, porém muito equilibrado e conceituado. Não tendo filhos e, sendo padrinho de batismo de Jorge, tomara a si sua educação, com o assentimento do vaqueiro Miguel, que era pai de mais dois rapazes e uma moça. Miguel trabalhava com o senhor Alípio já há mais de vinte anos e era pessoa de sua absoluta confiança e estima, pela dedicação e fidelidade com que sempre o servira. Jorge era criado por Alípio como se fora seu próprio filho. O rapaz sabia dessa situação, mas tinha respeito e amor ao pai legítimo. Miguel era um caboclo forte e disposto, de pele escura e cabelos encaracolados. Tornara-se uma espécie de chefe dos outros empregados da fazendo. Fora excelente vaqueiro, hábil e valente, mas já tendo alcançado 60 anos, renunciara a essa atividade, até por insistência da mulher que, ao contrário do esposo, era branca e de cabelos lisos, penteados em coque. Alípio e esposa, com o correr do tempo sentiam aumentar a estima pelo afilhado, chamando a sua atenção a inteligência do jovem. Assim, Alípio custeara-lhe o curso ginasial e os estudos na Faculdade de Direito do Ceará, até que se formasse.

Bom, voltemos à festa, onde a elegância e a simpatia de Jorge atraiam as atenções da maioria dos presentes, inclusive de alguns rapazes que, embora gostassem dele, se sentiam um tanto enciumados. Uma das pessoas que, mesmo conversando ou dançando, não tirava os olhos dele, era Anna, o que deu ao jovem coragem de convidá-la para dançar, o que ela aceitou com evidente prazer. Dançaram enquanto a orquestra, sob a regência do maestro Canuto, tocava algumas valsas, após o que sentaram-se juntos para prosseguirem o diálogo, impressionando ao rapaz a desenvoltura com que Anna conversava sobre qualquer tema, e a ela, a cultura e a simpatia do jovem, inclusive por sua elegância, não lhe importando a cor morena. Surgiu, nessa ocasião, uma mútua afinidade, resultando em namoro, embora soubessem que iriam enfrentar a oposição do Cel. Thomaz. Este, livrando-se dos amigos que com ele conversavam e se divertiam em seu gabinete, foi até o salão da festa e, testemunhando a intimidade de sua filha com Jorge, ordenou, para contrariedade de todos, que a festa acabasse por volta das onze da noite, uma hora antes do tempo previsto e pelo qual contratara a orquestra. Sabedor do caso, o Sr. Alípio, também desaprovou o namoro porque sabia que o coronel seria capaz de fazer qualquer coisa para acabar com esse amor, até porque tais sentimentos, quando encontram oposição, se tornam mais fortes.

A objeção do Coronel era tal que, ele próprio, decidiu levar Anna para passar uma temporada em Recife, onde morava um irmão seu, o senhor Anthero, já referido, que tinha um temperamento oposto ao dele. Era um cidadão sensato e desfrutava de ótima situação econômico-financeira, sendo dono de uma conceituada farmácia. Thomaz pediu ao irmão que a introduzisse na sociedade recifense e a apresentasse aos jovens de boa família.

A jovem, prevenida, antes de viajar apanhou o endereço de uma interposta pessoa, através da qual pudesse se comunicar com Jorge. De fato, menos de um mês depois ela lhe escreveu falando que gostara muito dele, já sonhara com aquela noite, estava muito saudosa e, por amor a ele estava disposta a enfrentar o pai. Indicou-lhe o nome de outra jovem, sua amiga, Isabel, a quem contou o seu caso e a fez de intermediária na troca da correspondência. Poucos dias depois Jorge lhe escreveu, correspondendo às suas declarações de amor. A troca de cartas perdurou por mais algum tempo, até que um dia ele lhe deu a informação de que estava planejando ir a Recife dentro de 15 dias, notícia que a encheu de alegria.

A fim de prevenir qualquer dissabor, resolveu conversar com o tio e lhe expor a situação, revelando quem era o rapaz, que, embora adotado pelo senhor Alípio Bandeira, cidadão de muito conceito na região, seus pais verdadeiros eram um empregado de sua fazenda, negro, sendo sua mãe procedente de uma família pobre, mas de cor branca. Mas, para os seus pais – dela, Anna – não importava que Jorge fosse filho adotivo do senhor Alípio, e, sim, ser filho legítimo de um preto. Mas, o conceito do rapaz na cidade, quer por ser formado, quer pelo seu comportamento, era excelente. O tio, um cidadão sensato e sem preconceitos, que sabia bem quem era o irmão, ouviu atentamente a sua história e lhe pediu que levasse Jorge à sua casa, pois queria conversar com ele.

No dia em que Jorge chegou a Recife hospedou-se em um dos seus melhores hotéis, pois já era um causídico de muito conceito em Mossoró e professor dos melhores estabelecimentos de ensino da cidade, auferindo um bom rendimento. No mesmo dia, tendo o endereço de Isabel, a prima de Anna, foi até lá para marcar um encontro. No dia e hora combinados, Anna foi ao encontro de Jorge. Isabel, chamando-a à parte, disse-lhe que tivera ótima impressão do rapaz e a estimulou a prosseguir no seu namoro. Foi um encontro emocionante: abraçaram-se e beijaram-se, ela com lágrimas de felicidade nos olhos. Na longa conversa que tiveram, ela lhe contou todo o seu diálogo com o tio, e lhe disse que este queria conhecê-lo pessoalmente. Marcaram o dia seguinte, à noite.

Chegando à casa do senhor Anthero, em carro alugado, foi recebido por este muito cordialmente. Anthero pediu a Anna que os deixasse a sós. Este começou dizendo que ele, pessoalmente, não fazia objeção ao namoro, mas o seu irmão, pai de Anna, por pertencer a uma família tradicional, jamais concordaria que a filha casasse com um jovem de cor negra. Que a sociedade em que viviam era ainda muito preconceituosa, embora ele, pessoalmente, não o fosse. Para comprovar isso, informou que sua esposa não era propriamente branca, que suas origens mais remotas eram constituídas de pessoas de cor. Mas ela, Marta, tivera uma excelente educação e fora das primeiras moças, em Recife, a se formar em Farmácia, tornando-se o seu braço direito.

Então, foi a vez de Jorge falar. Disse-lhe que gostara muito de Anna e estava disposto a enfrentar tudo, de comum acordo, para concretizarem o sonho de casarem-se dentro de, no máximo, um ano. Anthero teve boa impressão do rapaz, reafirmou que ele não faria qualquer objeção, mas temesse Thomaz, que seria capaz, inclusive, de recorrer à violência.

- Eu sei disso, respondeu Jorge, mas saberei adotar as minhas precauções.

Jorge permaneceu ainda alguns dias em Recife, encontrando-se diariamente com Anna. Anthero resolveu escrever ao irmão, narrando toda a conversa que tivera com o Dr. Jorge (fez questão de tratá-lo assim). Que, na condição de tio de Anna não teria qualquer objeção, acrescentando que ele, Thomaz, deveria reconsiderar sua posição, pois só assim faria Anna feliz; que tentar afastá-la dele seria impossível, finalizando por desaconselhá-lo a adotar qualquer prática violenta, pois poderia ter sérias consequências.

Thomaz leu e releu a carta. Ficou possesso porque o irmão recebera Jorge em sua casa, ainda mais por ter gostado dele e ser favorável ao seu casamento. Alguns dias depois resolveu juntar a família, esposa e filhos, a fim de pô-los a par da situação. Que estava disposto até a usar a violência para impedir esse casamento. Só Homero falou; disse que era contrário a qualquer medida arbitrária. Thobias, acadêmico de Direito, disse que qualquer violência poderia gerar um revide, que Anna já era de maioridade e, se optara por esse caminho, como o único que a faria feliz, o seu entendimento era que a deixasse livre para seguir o seu destino. O que o Cel. Thomaz não sabia é que Tobias namorava há dois anos, em Recife, uma jovem morena, por quem era apaixonado. A esposa não lhe dissera nada.

Diante de tais pronunciamentos, o Coronel recolheu-se ao seu escritório ruminando que solução melhor poderia adotar. E assim permaneceu por vários dias, mal se alimentando. O filho chamou o Dr. Jonas, conceituado clínico e amigo de Thomaz, expôs-lhe a situação e pediu que lhe desse uma orientação sensata.

Passados alguns dias, o Cel. Thomaz reuniu novamente a família e lhes revelou a sua decisão: deserdaria Anna, a quem não queria mais ver. Seria como se a tivesse perdido - poderia casar-se com o “negro” em Recife e ficar residindo lá. Homero ficou incumbido de transmitir essa notícia ao Dr. Jorge. Este o ouviu atentamente, disse que iria pensar no assunto, conversar com seus pais e, depois, tomaria uma decisão.

Jorge expôs a situação aos seus pais adotivo e legítimo. Disse-lhes da sua decisão em desposar Anna e, para não agravar mais a situação, iria a Recife verificar a possibilidade de se associar com algum colega e conversar com Anna. Quinze dias depois, viajou. Foi apresentado a um conceituado advogado, e, ao cabo de cinco dias de diálogo, combinaram montar um escritório na própria sala onde já trabalhava o colega. Jorge retornou a Mossoró, comunicou aos pais que iria se mudar, contratou o transporte de seus bens e livros para Recife e, em mais dez dias estava se despedindo dos seus pais e amigos. Em Recife, alugou um quarto, onde se instalou. Anna estava muito feliz com a decisão do rapaz, admirando sua coragem, embora saudosa de sua mãe, de seus irmãos e amigas.

O tempo passou. Passado um ano, o escritório do Dr. Jorge progredira e ele resolveu que era hoara de casar: mandou apanhar em Mossoró as certidões de nascimento e outros documentos possivelmente necessários, dele e de Anna, para o casamento civil e religioso. Anna queria casar em traje de noiva, e, com a ajuda dos tios, mandara confeccionar o vestido e irradiava felicidade.

Passados quatro meses, realizaram-se as cerimônias do casamento e, dois dias depois, tomaram um navio para um passeio até o Rio de Janeiro, onde permaneceram por dez dias.

Após seis meses de casados, Anna engravidou. Tendo obedecido a todas as recomendações médicas, o período de gravidez foi normal e o parto ocorreu em casa, justamente aos nove meses. Era um garoto forte, de cor branca, cabelos lisos, mas, no entender de todos, a cara do avô Thomaz. Este, ao tomar conhecimento do fato, através de telegrama do irmão, no qual narrou todos os detalhes, não fez nenhum comentário, porém sua esposa e filhos observaram em sua fisionomia alguma transformação.

A notícia abalou profundamente o Cel. Thomaz, pois tinha por Anna um apego especial e esperava vê-la casada com um jovem ilustre, pertencente a uma família tradicional. Passado algum tempo, chamou a esposa e lhe disse que queria ir a Recife, notícia que causou surpresa e preocupação. Acompanhou-o o filho Thobias. Hospedaram-se na casa de Anthero, mas a viagem o enfadara muito. Queria repouso por alguns dias. Quando se sentiu melhor, informou a Anthero que queria que Anna fosse vê-lo, levando o filho. Para surpresa geral, ele, com lágrimas nos olhos, abraçou a filha, sem dizer nada. Depois, pediu para ver o neto; foi outra emoção tê-lo nos braços.

No outro dia, que era um domingo, pediu para que Anna fosse almoçar com ele, podendo levar Jorge. Disse a este que refletira muito sobre a decisão que tomara e da qual estava agora arrependido. Tal afirmação surpreendeu a todos os presentes. Pediu-lhe desculpas mas não lhe apertou a mão. Depois solicitou que, quando a criança estivesse em condições de viajar, fossem a Mossoró. Jorge prometeu.

Após alguns dias de permanência em Recife, o Cel. Thomaz retornou a Mossoró. Não era mais o mesmo homem. Deixara de percorrer a fazenda duas ou mais vezes por semana, a cavalo, vendo o seu numeroso rebanho, um dos seus prazeres. Diminuíra suas idas à cidade para encontrar os amigos. Externara à esposa a grande saudade que sentia de Anna. Uma noite, recolheu-se mais cedo; uma dorzinha no peito o incomodava, mas não disse a ninguém achando que seria coisa passageira.

Costumava acordar cedo todos os dias, em torno das 5 da manhã, para ordenhar algumas vacas holandesas que mantinha no quintal de sua casa. Nesse dia, não acordou. Sua esposa, preocupada, o chamou, em vão: estava morto.

Thobias expediu um telegrama western informando a Anna, que ficou muito abalada: deixou o filhinho com a ama, na casa da prima Araci, e foi com Jorge, em companhia de Anthero, mas não chegaram a tempo do sepultamento, devido às péssimas condições da estrada, agravadas pelas chuvas da época. Apesar da tristeza do momento, a chegada de Anna foi um bálsamo para a família, que sentira profundamente sua ausência por tanto tempo. As conversas giraram sobre as sérias consequências do exagerado preconceito, seja racial ou religioso, o que privou pai e filha de um maior convívio, e, por consequência, toda a família.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 17/01/2013
Reeditado em 18/01/2013
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