Voando com Deus - Capítulo 2
Não sei o que pensar neste momento, muito menos o que dizer. Talvez porque não há nada para ser pensado ou dito. Acho que minha mãe está surpresa tanto quanto eu. Na verdade, a expressão que ela faz me assusta; eu nunca tinha visto os seus olhos tão indignados dessa maneira. Ana é realmente não sabe o que faz. Falar de Deus em frente da nossa mãe é tão inadmissível quanto falar do nosso pai. Pior, até.
– Como disse?! – Minha mãe indaga, inconformada, impondo uma chance para ela retirar o que acabara de dizer.
– Sonhei com Deus... Vocês tinham que ver, eu estava em um lugar lindo. Eu sei que você fala que Deus não existe, mãe, mas Ele é real mesmo! Eu vi um anjo Dele com os meus próprios olhos!
Sei que minha mãe não está gostando de nada disso, e até a entendo. Foi apenas um sonho, nada a mais. Ana está agindo como boba, passando de seus limites e temo que algo aconteça se ela não parar de falar tantas bobagens.
– Fica quieta! – Nossa mãe implora.
Com seus olhos furiosos, nossa mãe começa a ficar estranha, tampando os ouvidos com as palmas de suas mãos. É semelhante ao que eu fazia quando eu não queria ouvir a sua voz e fazia pirraça. E, Ana, mesmo assim não para; continua dando detalhes do seu sonho, falando da maravilha deste Deus que é proibido mencionar nesta casa.
– Cala a boca! – Minha mãe grita pela terceira vez!
– Natália, Deus é incrível! Várias pessoas como a mãe não acreditam no que Ele fez e muito menos que Ele exista de verdade, mas eu vi o anjo Gabriel e ele me contou tudo. Eu estava em um corredor branco e depois eu fui para uma floresta e pude voltar ao passado e ver tudo o que aconteceu... Eu voei com ele, naquelas asas maravilhosas... E Foi o sonho mais...
Agora, o que eu sinto é apenas dó da minha irmãzinha. O esperado acontece, logo quando eu estava começando a me interessar no que ela dizia. Nossa mãe se ira e acaba perdendo o controle. A mão dela se lança contra o rosto de Ana, fazendo-a chorar imediatamente, deixando uma marca bem visível em sua face. Nunca fiquei com tanto medo de nossa mãe, assim como nunca fiquei com tanta curiosidade sobre esta ocasião. Por que ela faria isso? Nunca soube o que aconteceu para que ela não queira nos ver falando sobre Deus... Sei que não deveria ser tão burra para não saber quem Ele é, mas a verdade é que não sei nada a fundo sobre Ele. Apenas ouço vagamente esta palavra na boca de algumas pessoas.
– Já disse que não quero ouvir a palavra “Deus” nesta casa! – Nossa mãe grita, já em total desespero.
Ela vai para o seu quarto, fechando a porta com violência enquanto que Ana vai lavar o seu rosto na pia do banheiro. Em total estado de choque, talvez até mais assustada do que minha irmã, eu tento arrumar minhas coisas da escola e dentro de alguns minutos eu saio com Ana pela a porta.
Nós ainda não nos recuperamos do que houve; ainda dá para ver a vermelhidão no rosto dela e as lágrimas querendo brotar de seus olhos... Está tudo confuso em minha cabeça. Se eu ouvi bem, minha irmã sonhou com um corredor branco, talvez o mesmo com o qual eu sonhara, e quero muito indagá-la neste momento, mas hesito. Ela não deve estar muito bem para dialogarmos sobre isso, então, simplesmente pergunto se ela irá ficar numa boa. Como resposta, ela apensas balança positivamente a cabeça.
– Você acredita em mim? – Ela pergunta quando já caminhamos por um tempo.
– Depende... Acreditar que você sonhou com Deus ou acreditar em todas as coisas que você disse sobre Ele?
– Natália! – Indignada, ela tenta fazer cara de brava, o que não funciona – Deus criou todo este universo. Foi ele quem criou a gente e os animais e... e a natureza! As flores são tão lindas! Você acredita nisso, não é?
– Sim, as flores são lindas mesmo – Digo, segurando uma risada no canto de minha boca.
Não acho que seja certo zombar da minha própria irmã, por isso paro por aqui. Eu iria me sentir feliz se Deus existisse de fato, pois o que mais desejo é ter alguém que possa estar comigo em todos os momentos, alguém que possa amenizar toda a minha dor, sofrimentos, e colocar paz em meu coração e em todo este planeta. Contudo, não posso acreditar em simples sonhos que não são nada concretos; tenho de esquecer tudo o que houve em casa, esvaziar minha mente e ficar feliz porque hoje não é segunda-feira.
– Não... Você não acredita em mim. Se acreditasse, não ficaria com brincadeirinha enquanto estou falando sério! – E ela tenta fazer cara de brava de novo. Ela fica uma graça desse jeito, de braços cruzados, testa franzida e fazendo biquinho.
– Não é isso, Ana... – Digo, tentando não rir e decidida a dizer a verdade a ela – Só estou confusa, apenas isso.
– Por quê?
– Porque eu tive um sonho quase igual ao seu... Eu também sonhei com um corredor branco... Por isso é difícil não acreditar em você.
Ao ver que Ana se interessa e quer dar continuidade com essa conversa, eu a impeço. Não estou preparada para falar sobre isso, principalmente com ela. Então apenas caminhamos em silêncio para o colégio.
Ao chegarmos à escola, uma surpresa: Murilo está me esperando em frente ao portão principal; ele sorri e meu coração vai à loucura. Ao ver o seu sorriso percebo que o que quer que aconteça a partir de agora não importa, pois estarei com ele. Três dias se passaram desde que o vi pela última vez, e é como se fossem semanas. Jogo-me em seus braços e me sinto protegida neste exato momento; o desejo que tenho é dizer que o amo, mas algo me diz que não é a hora certa. Ana entra na escola, de cabeça baixa, sem ao menos olhar para Murilo.
– Como você está? – Pergunto.
– Eu estou bem... Mas você não, não é? Pelo menos sua irmã...
– É... aconteceram algumas coisas lá em casa... – Quero explicar tudo a ele, mas não temos esse tempo por enquanto. Talvez, durante o intervalo, tudo possa ser esclarecido.
Neste instante apenas sou permitida a ir para a sala e ter de suportar as próximas aulas que não mudaram nada de ontem para hoje. Alguns professores se estressam menos. No entanto, os alunos continuam desrespeitando as regras; bonés e óculos escuros, por exemplo, é proibido e por hora há vários usando; e aqui o celular é livre, apesar de ser indevido o seu uso na sala de aula. Professores tentam fazer com que respeitem as regras, mas não conseguem. Na realidade, tanto faz, desde que eles ganhem seus respectivos salários ao fim do mês.
Quando o intervalo aparece para me aliviar, sou a garota mais feliz do mundo. Sem demora, eu vou ao pátio me encontrar com Murilo que está no nosso atual ponto de encontro, ao lado da quadra de futebol. Dou outro forte abraço nele, sorrindo, como se eu não o tivesse visto hoje pela manhã. Eu amo o seu cheiro, amo sua pele suave e morena, amo os seus cabelos negros, macios. Se pudesse, não largava mais de seu corpo quente. Ficaria aqui pela eternidade.
– Agora me conta... O que houve em sua casa? – Ele indaga.
Já não estou mais em seus braços quando eu começo a contar tudo a ele, desde o meu sonho sem sentido até ao tapa dado no rosto de minha irmã. Como esperado, Murilo não entende nada.
– Por que sua irmã apanhou mesmo? – Ele diz, sarcasticamente.
– Minha mãe não quer que falemos em Deus, nem em casa, nem em lugar nenhum. Eu e minha irmã crescemos aprendendo isso, sempre éramos repreendidas quando usávamos expressões como “Graças a Deus”, “Ai meu Deus” ou “Pelo amor de Deus” e eu nunca consegui entender. É quase a mesma história com a do meu pai... Também não é permitido falarmos dele. Tenho certeza de que é algo que aconteceu no passado; algo entre Deus, minha mãe e meu pai. Mas um dia irei descobrir tudo isso. Estou prometendo isso a mim mesma agora e você é minha testemunha.
Ele dá um sorrisinho bobo.
– Deve ser muito difícil para você.
– Muito... – Seria mais fácil se estivéssemos juntos, penso – Mas me diz, Murilo, você acredita em Deus?
Sinto-me estranha falando sobre isso com ele, mas se não for com ele, com quem será? Com Ana? Preciso de uma opinião além da minha, preciso ver o lado de uma pessoa que seja tão madura quanto eu e ele é a única pessoa com quem eu posso falar qualquer coisa.
– Acreditar em quê? – Ele diz, normalmente – Que Deus criou todo este universo e que foi Ele quem criou a mim e a você? Que foi Ele quem deu vida a todos os seres desta terra? Que Ele enviou o seu filho, Jesus, para morrer em nosso lugar e assim nos salvar de todo o mal?! Que bobagem... – Ele ri, achando tudo muito engraçado.
Fico calada pensando em algo para dizer, mesmo sabendo que no final vou acabar não dizendo nada. É tudo muito estranho, tudo muito confuso... Tanta coisa acontecendo... Realmente, se Ele de fato existisse, as coisas não estariam do jeito que estão. Estou irritada e nem sei exatamente qual seja o motivo. Talvez porque eu saiba que há uma possibilidade, mesmo que seja extremamente pequena, de existir mesmo uma inteligência maior capaz de curar todas as minhas feridas. Talvez eu possa falar com esse Deus e então... Não! Tenho de me concentrar. Isto é loucura. Deus não existe... Existe?
Murilo me abraça. Só ele sabe do que eu preciso.
– Você fica linda quando está assim, toda preocupada, sabia?
Ele é uma graça. Em seus braços, sinto-me longe de todos os problemas com os quais eu tenho de me preocupar.
– Bem que poderíamos ter mais tempos juntos – Eu digo a ele – É tão bom ficar aqui com você...
– Seria mágico – Diz ele, surpreendendo-me – Um sonho realizado para mim.
Por um momento sinto que seja a hora de dizer tudo o que sinto a ele. Por apenas um momento, é claro, pois isso sempre acontece.
– Eu tenho tanto medo de te perder... – Confesso – Prometa-me que não vai me abandonar.
– Não seja boba... não sou um péssimo amigo – Não gosto da palavra que ele usa: Amigo. É tudo isso o que ele será para mim? – Nunca vou te abandonar, eu prometo.
Seus olhos brilham e ele se aproxima, deixando-me enrubescida. Sou completamente maluca por ele e o que mais quero fazer é roubar um beijo seu a fim de saber o sabor de seus lábios. Porém, o sinal me atrapalha. Ao que tudo indica, teremos que voltar para a aula.
– Até mais... – Despeço-me, com um semblante totalmente triste, pois só o verei amanhã.
– Temos mesmo de ir? – Ele pergunta.
– Acho que sim – Digo, desconfiada – No que está pensando?
– Não quer dar uma volta pela cidade?
Eu não esperava que ele dissesse algo como isso. Cabular aula, com certeza, não é o tipo de coisa que ele faria.
– Você endoidou?
– Nath! Quando que fizemos algo assim? A vida não é somente estudar, sabia? Só vai ser hoje, uma vez na vida, eu juro. Vamos lá.
Eu sei o que é a coisa certa a se fazer, mas... Não há como resistir. Não tem como dizer “não” a ele. Sem ter mais tempo para pensar, lá estou eu, me rendendo... Vamos nessa, Natália, não será nada demais.
– Você é maluco! – Digo a ele.
– Voltamos para pegar sua irmã, não se preocupe – Ele diz, pegando em uma de minhas mãos e me levando para o fim da quadra, onde já não se encontra mais ninguém. Os alunos ainda estão voltando para as salas e a inspetora está a uma boa distância de nós, no pátio.
– Vai, antes que ela nos veja – Ele me alerta.
Há um canteiro com algumas flores e um muro de mais ou menos dois metros de altura. Por um instante penso se realmente eu posso fazer aquilo. Mas é bobagem pensar nisso, eu sei, pois estou com Murilo e nada de mal vai me acontecer. Finalmente eu poderei passar mais tempo com ele. Finalmente poderemos nos divertir, ao menos uma vez, depois de tanto tempo que nos conhecemos...
Eu não lembro muito bem, mas sempre que olho em seus olhos eu sei que o tempo que passamos juntos foi fantástico. A maior parte de minha infância fora ao seu lado. Minha mãe me dissera uma vez que fazíamos tudo juntos; vivíamos o tempo todo grudados, sempre unidos, sem nunca brigarmos ou fazermos quaisquer coisas distantes um do outro. Infelizmente, das poucas coisas que me lembro da minha infância com ele, a mais forte das lembranças é de quando eu tive de ir embora. Lembro-me de ver uma garota de seis anos triste, sem nunca entender por que tudo teve de mudar. Da cidade, tive de partir para aquela casa, a casa a qual o meu pai construíra apenas para a gente passar alguns dias, quando quiséssemos um pouco de sossego. Mas o tempo passou e logo aquela casa teve de ser a nossa casa oficial, pois meu pai já planejava partir. Então nunca mais pude ver Murilo... Separamo-nos, enfim. E qual não foi a minha alegria ao reencontrá-lo, neste mesmo colégio... Apesar de demorar um pouco para reconhecê-lo, não escondi nenhum pouco o meu contentamento e logo pulei em seus braços. Ele ficou enrubescido, assim como eu, e sorriu. Talvez fosse neste momento que eu havia deixado me dominar por esta paixão que até hoje me cerca. Desde aquele dia, sempre nos encontramos desta maneira, apenas no intervalo da escola. Sempre tivemos pouco tempo para conversar. E eis aqui a chance que eu tenho para passar mais tempo com ele.
– Pula, Nath, ela está vindo.
Como não posso perder esta oportunidade e não há mais como voltar atrás, eu subo em seus ombros, alcanço o muro e vou para o outro lado. Murilo vem logo a seguir, sem muita dificuldade.
– Você já fez isso alguma vez? – Pergunto, quando já estamos no chão.
– Isso não vem ao caso agora – Ele diz prendendo um sorriso, e suponho que sim.
Então só agora paro para olhar para onde caímos. O chão está todo coberto de mato e estamos logo atrás de um edifício que não consigo reconhecer.
– Ótimo, como se não bastasse caminhar em uma estrada de terra – Digo
– Não se preocupe, aqui é apenas os fundos de um posto médico.
Ele volta a segurar minha mão e corremos em direção à rua, indo ao encontro com um pouco da agitação da cidade. Quando estamos em frente ao posto, à nossa direita, vemos uma fila imensa de pessoas que necessitam de um atendimento médico. Diversas pessoas doentes, bebês chorando, crianças querendo colo, mulheres de idade sentadas na calçada de tanto terem que esperar.
– O que aconteceu aqui? – Eu pergunto.
– Nada – Ele diz isso como se eu tivesse a obrigação de saber – Nath, em que mundo você esteve? É assim todos os dias. O atendimento daqui é péssimo.
Eu sempre soube disso. Quer dizer, sempre soube da dificuldade que estas pessoas tiveram de passar, mas eu não sabia que havia piorado tanto. Só faz pouco mais de um ano que eu não venho para este lado e já vejo tudo diferente... Tudo mudado. Tudo indo de mal a pior.
– E os hospitais? Por que não vão para lá?
– Não adianta. Além de ser longe, não é melhor do que aqui. Os hospitais servem mais para atendimentos mais sérios, mais específicos, sabe? Cirurgias, transplantes, doenças graves... – Ele faz uma pausa enquanto que eu penso em tudo o que ele diz – Pois é, Natália, se você tem ainda alguma dúvida de que Deus existe, esta é uma boa hora para concluir alguma coisa. Não acha?
Eu balanço a cabeça positivamente, triste. Sim, as pessoas daqui têm toda a razão de estarem assim, desse jeito, infelizes. A esperança há muito tempo fora uma coisa boa. Agora, esperança não é nada além de acreditar no impossível. Talvez Murilo esteja certo. Talvez não exista um Deus e minha irmã esteja apenas delirando.
– Mas chega de falarmos sobre isso – Diz ele, puxando-me – Venha, quero te levar a um lugar que você vai gostar.
Eu seguro a sua mão com mais força e atravessamos a rua. Não quero perder Murilo de vista nem ter de largar sua mão, pois não sei o que eu vou encontrar pela frente. Não sou acostumada a conviver com tantas pessoas ao meu redor. Não sou acostumada a andar pelas ruas e a cada segundo ter de me deparar com pessoas que me olham de cima para baixo, com pessoas de caras emburradas, desgostosas com a vida, apressadas, infelizes, presas ao capitalismo. Estou vendo a cidade como um lugar horripilante. Não encontro ninguém sorrindo. Nenhuma vida alegre.
– Você mora mesmo aqui, Murilo? – Resolvo perguntar enquanto estamos passando por uma loja cujas vitrines estão repletas de roupas elegantes e longos vestidos maravilhosos os quais eu talvez nunca venha a vestir algum dia.
– Por que não moraria? – Ele indaga, confuso.
– Você é diferente. Não é como essas pessoas. Você é divertido, está sempre sorrindo... E não é estressado.
Ele apenas acha graça, ri como sempre faz, fazendo até com que eu me esqueça do que está havendo aqui.
– Está vendo?! – Digo, tentando mostrar a sua diferença – Você não tem nada a ver com este lugar.
Ele me ignora e me faz entrar em uma rua entupida de gente. Várias lojas, prédios gigantes, pessoas engravatadas, duas grandes pistas lotadas de carros de todos os tipos. Como nunca vim para esse lado – e se já vim, deveria ser muito pequena para não lembrar agora – fico parecendo uma garota que acabara de descobrir o mundo.
– O que está achando? – Ele pergunta.
– Lindo – Digo, olhando ao meu redor, girando, tentando captar todos os detalhes.
– Isso por que você nunca andou de metrô. Sério, nunca queira entrar em um no horário de pico.
Penso como deve ser. Pelo que sei, o metrô foi implantado para ser um dos melhores meios de transporte público. Rápido e prático. E de fato isso ajudou a vida de milhares de pessoas, porém, com o passar do tempo, o sistema foi caindo. Vez ou outra o metrô fica lento, apresentando diversas falhas; sempre está lotado durante a semana, mal sobrando espaço para se respirar. Lembro-me de discutirmos na escola sobre o problema que houve em uma estação, causando um caos total em todos os bairros; diversas pessoas ficaram desesperadas tendo de escolher outro meio de transporte.
– Eu sonho em um dia morar aqui, então já seria melhor eu ir me acostumando, não acha?
– É, talvez sim.
Paramos em uma loja na qual meus olhos penetram adentro. Admirada, olho para umas peças pequenas e preciosas que estão na vitrine. Automaticamente, solto das mãos de Murilo e entro na loja a fim de olhar mais de perto tais belezuras. O que eu vejo talvez não signifique nada para certas pessoas. São alianças. Um simples símbolo do casamento.
– Não são lindas? – Eu pergunto a ele, que veio logo atrás de mim.
– São. Muito lindas – Ele diz, sério.
Há uma senhora atrás do balcão. É a primeira vez que vejo alguém daqui sorrindo. Ela olha para nós dois e vejo em seus olhos uma pessoa parecida com Murilo. Não me olha como uma estranha, não examina o meu corpo, não. Ela apenas olha em meus olhos e diz:
– Ah, sim... Eu não tenho dúvidas, vocês foram feitos um para o outro.
No exato instante, ao mesmo tempo em que meu coração acelera, olho para Murilo e vejo que ele está corado assim como eu devo estar neste momento.
– Ora, não se acanhem – Continua a senhora – Digam-me... para quando marcaram o casamento?
É claro que poderia ser verdade. Poderíamos estar ali para comprarmos nossas alianças de casamento e nos casar o mais rápido possível, mas, infelizmente, isso não está nenhum pouco perto de acontecer.
– Somos apenas... amigos – Eu digo, com dificuldade – Só entrei aqui para ver.
– Oh, me desculpe. Eu jurava que vocês eram noivos. Entraram tão felizes, distraídos, despreocupados...
– Não tem problema – Eu digo.
Não sei por que – talvez seja a verdade dita por aquela mulher – mas saio daquele local desapontada. Será que é apenas Murilo que não consegue perceber? Talvez ele já se dessa conta do quanto somos um par perfeito, mas ainda assim ele não dá à mínima.
– Que hilário – Diz ele, estendendo suas mãos.
– É... – Forço um sorriso e entrelaço os meus dedos nos dele.
Entramos em um beco mal iluminado pelo sol e saímos em outra rua, com menos pessoas transitando por ela do que o normal. Sem lojas, apenas umas casas simples com as quais eu me simpatizo, todas do mesmo tamanho e formato.
Murilo para em frente de uma casa amarela e fica olhando para ela enquanto que eu o admiro, tentando entender o que está havendo. Mas preciso que ele me explique:
– Murilo. É isso o que queria que eu visse?
– Não se lembra da sua antiga casa, Nath?
Então olho para ela mais uma vez, enquanto um pequeno flashback toma de conta da minha mente. Diversas lembranças me invadem de uma vez só e chego a ter impressão de que vou cair. Então é aí que eu vejo um garoto chorando, sendo deixado para trás, enquanto que uma garota é levada a força para longe dele...
– Você se lembra? – Insiste ele.
– É claro que me lembro – Respondo, me referindo ao dia que o deixei. Noto que ele dizia a respeito da casa, mas deixo para lá, porque a resposta é a mesma – Passamos belos momentos aqui, não é?
– É sim. Eu ainda moro na mesma casa, essa aí do lado.
É semelhante a minha antiga casa, com os mesmos portões, mesmo formato, só mudando a sua cor para azul.
– Logo eu não vou mais morar aqui. Meu pai deu uma casa para mim. Ela fica aqui perto... Só não me mudei ainda porque ela está ocupada.
– Podemos ir lá ver? – Pergunto, já que temos tempo de sobra. É loucura, é claro, ficar tanto tempo fora da escola quando na verdade você deveria estar nela, mas já que estou aqui, não há problema algum em continuar andando pela cidade. Afinal, o que eu poderia fazer? Pular o mulo de volta e ir correndo para minha sala?
– Sim, vamos lá. – Ele diz. E vejo o quanto que está feliz pela minha companhia – Mas você já foi a um Shopping antes?
Do jeito que ele pergunta parece que sou uma alienada que nunca foi para lugar algum e que não sabe nada sobre a cidade e o que se tem nela. Se bem que, de certa forma, isso é verdade, já que a resposta que dou a ele é não.
– Mas não pense você que eu não sei o que é isso, está bem? – Deixo bem claro.
Ele continua a achar graça e eu continuo não me importando com isso. Voltamos à rua entupida por pessoas e entramos no Shopping, fazendo deste o melhor passeio de todos os tempos. Eu não me lembro de quando que foi a última vez que eu saíra para me divertir. Eu nunca saio. Apenas fico naquela casa com minha mãe e minha irmã, passando a tarde toda estudando. Isso é cansativo, eu deveria sair com Murilo mais vezes.
Eu e ele entramos em todas as lojas que pudemos. Provamos várias roupas e saímos sem levar nenhuma, obviamente, deixando os vendedores furiosos. Depois passamos na sorveteria; Murilo compra um sorvete para nós, nos lambuzamos, sujamos nossas roupas e nem ligamos para o que aconteceu. Passamos na seção de cinema e ele promete que um dia me levará para ver um filme com ele. E quando quase estamos exaustos, o nosso tempo quase chegando ao limite, saímos para ver a sua futura casa. Rindo, nos divertindo, nos amando, como aquela senhora dissera. Pena que ele não enxerga este sentimento que está a nossa volta. Facilitaria as coisas para mim.
Quando voltamos para a rua onde continua a transitar poucas pessoas, andamos um pouco mais de dois quarteirões e entramos em mais um beco mal iluminado pelo sol. É nesse instante, quando estou olhando apaixonada para Murilo, que ele muda totalmente a expressão de seu rosto, empurrando-me para uma parede e me fazendo abaixar com ele atrás de um latão de lixo. Ele faz um sinal para que eu fique quieta, mas de qualquer jeito ele está tampando minha boca com sua mão. Eu tento entender o que é que está acontecendo, quando então ouço uma discussão entre dois homens:
– Que tal matarmos ela aqui? – Diz um deles. Ele está tão perto que posso ter a certeza de que mais cedo ou mais tarde seremos descobertos.
– Está maluco? Em plena luz do dia?! – Diz o outro.
Então o meu coração acelera de vez. Estou morrendo de medo, porque sei exatamente o que está acontecendo aqui. Murilo apenas confirma para mim, sussurrando:
– Sequestradores...
(...)