A Praia do Gonzaga Testemunha um Triângulo Amoroso

Eram em grande número as pessoas que se reuniam na praia naquele domingo de verão. Na beira do calçadão os ônibus se acumulavam. A areia, fustigada pelo sol do início de tarde, comportava uma profusão de barracas coloridas que, de tão numerosas, quase não deixavam espaço para banhistas corajosos a enfrentar diretamente o castigo impiedoso dos raios. Mulheres seminuas, de bruços, exibindo nádegas de todos os tamanhos e formas: torradas, esbranquiçadas ou meladas de hidrA Praia do Gonzaga Testemunha um Triângulo Amoroso
atante distraiam-se em bate papo quando em dupla, fofocas quando em trio ou mais, como também liam ou fingiam dormir o sono escaldante do verão santista.

Mais ao longe, distante das vistas dos que só queriam o mar e suas benesses, encontravam-se os brinquedos, os brinquedos de praia. Gonzaga, mais uma vez, brindava os locais e visitantes com suas festas de areia. Neste ano a roda gigante não estava usual nem tímida como das vezes anteriores. A visão já alcançava quem vinha de longe, muito longe. O tamanho magistral projetava o passeante à altura de um prédio. A baia de Santos estendia-se para o felizardo e as ilhas, como se se aproximassem, expunham suas minúcias.

Francisco desembarcou no porto de Santos às 10h 30 minutos de uma manhã de sábado para sua quinzena de folga. A lancha o trazia da outra extremidade, de carona, para um destino que não era o seu de costume. Isto porque, ao descer de helicóptero no pequeno aeroporto, tudo o que precisava ou deveria fazer era embarcar no ônibus da companhia e seguir para sua terra natal e juntar-se à família, mas nem sempre se escolhe o caminho mais fácil e usual para a felicidade. A mochila, grande e pesada, bem presa às costas, a calça jeans exibindo os furos e manchas da moda, camiseta de ombros nus e tênis branco de marca, Francisco estava muito à vontade, em terra estranha, o que para ele não constituía em novidade, pois era um aventureiro.

Bateu a lancha de leve no batente do ancoradouro e o efeito do sacolejo foi um pequeno susto e algumas passadas em falso. Francisco agarrou-se à balaustrada. Pouco acostumado que era a viagens por mar, os poucos mais de trinta minutos que gastara até ali o deixaram pálido e aquele movimento brusco e inadvertido do marinheiro por pouco não o fez vomitar. O homem lançou a corda, os pneus sentiram mais uma vez o impacto e, por insistência, amorteceram a traineira. Liberado o desembarque, desceram todos. Ele caminhou no pedaço de areia que ainda o separava do calçadão. Clemêncio ia a seu lado; trabalhavam na mesma profissão, porém em plataformas separadas. Eram amigos inseparáveis e, tendo oportunidade de estarem juntos na folga, não a perdiam. Eram dias de gáudio e de bebedeira.

- E então, vai me apresentar a ela? Agora que largou do marido, ficou muito mais fácil.

Francisco não respondeu à pergunta feita de chofre pelo amigo. Precisava pensar na resposta, mas não queria desapontá-lo, pois havia feito uma promessa e chegara a hora de cumpri-la.

- Que tal uma cerveja? A viagem não me fez bem; preciso molhar minha garganta.

Clemêncio não fez réplica. Apenas acenou que sim com a cabeça e eles seguiram sem palavras; subiram a escadinha que os levaria ao quiosque. Francisco desfez-se do fardo, depondo-o sobre uma das cadeiras da mesinha redonda. Sentaram-se.

- Tem certeza de que quer mesmo conhecê-la? - disse Francisco, ao mesmo tempo em que sinalizava para a atendente.

- Me perdoe a sinceridade, mas agora eu posso falar porque vocês não possuem mais nada um com o outro, mas sempre fui apaixonado por sua, agora, ex mulher. Entretanto, posso garantir uma coisa. Em nome de nossa amizade, nunca, em momento algum, deixei sequer que ela suspeitasse disto.

Francisco estava, nessa hora, levando à boca a caneca espumosa do chope que a garçonete acabara de por sobre a mesa. Ele teve um princípio de engasgo e uma vermelhidão repentina aflorou-lhe à face.

- Vocês então já se conhecem!? Mas, eu pensei ...

Clemêncio não deixou que ele terminasse a frase. Interrompeu-a no momento em que Francisco depositava o chope sobre a toalha azul de papel da mesa redonda. Correu um vento fresco vindo da praia que serviu para amenizar o forte calor. Mesmo sendo final de tarde, o sol ainda castigava a areia, o asfalto da ciclovia e a avenida que já começava a receber em maior quantidade os veículos apressados e testemunhar a disputa entre estes e as conduções lotadas de passageiros. Aos poucos, diminuía o alvoroço dos banhistas sobre a areia. Barracas eram desmontadas e a intimidade dos trajes de banho cedia lugar à decência e à normalidade.

- Por isso marquei este encontro com você aqui mesmo em Santos onde ela está morando. Quando cheguei de Porto Alegre e embarquei na plataforma e encontrei você, não imagina a minha felicidade de rever um amigo tão afastado. E quando você falou de Berenice, sua ex mulher, em cinco minutos de conversa eu já sabia de quem se tratava. Você pode confiar no que eu digo. Conheço Berenice desde minha adolescência. É a única mulher que eu um dia amei. Pode acreditar, nunca tivemos nada um com o outro. Primeiro porque nunca tive coragem de me declarar. Nossas posições sociais eram, e ainda são, totalmente opostas. Somente agora que já não há mais nada entre vocês, decidi abrir meu coração.

Ficaram por momentos calados e entre olhando-se, um nos olhos do outro. Francisco, em seu interior, não conseguia atinar com a ideia de Clemêncio, amigo de tão longa data, ter passado todo este tempo ocultando o seu sentimento de amor por Berenice.

- Por que não me disse isto antes? – quis saber Francisco, ainda sob o efeito do choque.

- Como poderia? O que você iria pensar? Se há uma coisa que não quero por nada nesse mundo é perder a sua amizade. Se foi a vergonha, a falta de coragem, o que me fizeram ocultar o meu sentimento enquanto tive a chance, durante anos e anos, não seria agora, depois de reencontrá-lo e saber de Berenice que eu faria alguma coisa. Sabê-lo separado da mulher que amo reacende as minhas esperanças. Porém, jamais, em troca da minha felicidade quero perdê-lo como amigo.

- Isto jamais acontecerá; pode ficar tranquilo. Conquiste o seu amor. Berenice nada mais representa em minha vida. Não a culpo por nada; talvez seja eu o culpado desta desunião. Mas não quero entrar em detalhes. Você fala do seu amor por ela. E quanto à recíproca; será também amado por Berenice?

- Não tenho dúvidas.

- Como assim?

- Peço mais uma vez o seu perdão. Já nos falamos há duas semanas. Muito conversamos. Ela me pede um tempo, mas sinto-a carente, assim como eu. Deixo-a a vontade, pois sinto que também me ama. Em questão de semanas convidá-la-ei a ser minha mulher.

- Neste caso só tenho que desejar ao casal muitas felicidades. Só há um problema.

- Sim, acho que já sei o que vai falar; ela está grávida. Não considero um problema, mas uma felicidade a mais.

- Isto vai depender muito dos advogados que estão cuidando do caso.

- Não sei do que está falando.

- Se ela não abriu toda a verdade para você, então ficará sabendo por mim. Berenice vai perder a guarda do filho. Por maus tratos e abandono da criança que teve em São Paulo com o primeiro marido não poderá ficar com o meu filho; isto eu não permitirei. A justiça está do meu lado. Podem viver felizes um ao lado do outro o quanto quiserem, mas sem a criança. Ela virá para mim por direito judicial.

A conversa ficou ali naquele quiosque de praia. A amizade não foi denegrida como temia Clemêncio. Meses se passaram vendo o relacionamento entre Clemêncio e Janete, a mulher em questão, cada vez mais ardente e apaixonado. Havia de fato sinceridade naquela união. Gostavam-se de verdade; tudo levava a crer que o casamento não tardaria. Francisco acompanhava de longe, tendo a seu favor a decisão da justiça de que criaria o filho. Clemêncio não apelou. Como disse, não queria conspurcar uma amizade tão forte. Além do mais teria, com a mulher que amava, outros filhos para compensar a perda. Até que, um acontecimento veio mudar, não só o rumo dos fatos como a intenção de Francisco. O filho de janete e de Francisco nasceu com síndrome de Down. Se tivesse que ficar com eles criariam-no com o todo o amor dedicado a uma criança comum.

Mas não era, e quem passa por essa situação sabe como é difícil e dolorosa; é preciso muito amor para dedicar-se a uma criança excepcional e pelo final que teve este triângulo constatou-se que este amor era mesmo de Clemêncio e Janete. O destino sabe o que faz quando se entrega em suas mãos os casos complicados e que parecem sem solução.

Francisco, ao saber como veio ao mundo o seu filho, rejeitou-o. E a justiça, que neste caso não é cega, mas enxerga longe acatou a sua rejeição e deu à mãe todo o direito sobre a criança. Amor é o que não faltaria porque amor eles tinham de sobra. Foi completa a felicidade de Clemêncio. Conquistou a mulher que sempre quis e ganhou um filho que o destino quis que fosse seu. Tudo acaba bem onde há amor verdadeiro.
Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 22/12/2012
Reeditado em 22/12/2012
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