Noite de Inverno

Noite de inverno

Pegou o casaco no suporte logo atrás da porta e vestiu. Bebeu o último gole de seu Ballantines Finest. Olhou para seu bar particular e notou que só havia uma garrafa de Chivas Regal 18 Anos, o segundo em sua lista de apreciação. Mas àquela altura da embriagues, com certeza seu paladar não saberia distinguir entre nenhum dos dois maltes. Serviria. Colocou-a debaixo do braço, deu uma olhada para o porta-retratos em cima da mesa de centro. Tombado e trincado. Bateu a porta atrás de si.

O frio beirava os 10° graus Celsius, encolheu-se um pouco com o choque térmico que sentiu. Olhou para garagem e cogitou pegar seu Aston Marttin perfeito, mas não para aquela noite. Não combinava com o casaco. Tentou o Bugatti Veyron azul, competiria com a cor dos seus olhos. Talvez o Ford GT 40-1966 azul e laranja, mas sem motivo aparente declinou! Caminhou até a Mercedes-Benz SLR Mclaren prata. Achou a cor muito chata. A Ferrari 599 GTB Fiorano ainda não a havia usado este ano. Seu O Camaro SS Hennessey. Amarelo demais. E assim foi com mais dezenas deles em sua recheada garagem. Até que resolveu seguir a pé. O que era bem mais prudente, visto que seu reflexo era o que primeiro o havia abandonado depois das primeiras doses.

Acendeu seu charuto Punch Punch com o isqueiro maçarico da marca Colibri. A mesma que, em 1974, construiu o isqueiro-caneta-pistola que dava o nome ao filme: “007 Contra O Homem Da Pistola De Ouro” (“The Man with the Golden Gun”), para o vilão Scaramanga.

Odiava o cheiro que tinha aquela fumaça, mas aprendera que era chique fazê-lo. Acentuava seu status. Então não discutia entre suas duas vontades antagônicas, tão somente cedia à aparência. Hábito que lhe custava cada vez mais sacrifícios.

***

Andou a esmo por quadras e quadras daquela cidade tão iluminada. Parecia que poucos estavam tão bem dispostos quanto ele. O cenário lhe era comum: silêncio e solidão. Coisas que faziam parte do seu currículo já a bastante tempo, mais tempo do que ele conseguia calcular. E de tanto tempo suportando apenas a sua própria existência, não se sabia feliz ou infeliz. Havia perdido o conceito dessas duas palavras tão paradoxais, e que em algum momento de sua vida, já haviam sido experimentadas pelas sensações extremas daquele homem de quase quarenta anos.

Aos poucos a brasa suave consumia os últimos fragmentos da vitola do seu cubano. O efeito do álcool abandonava seu organismo. Era hora de abrir a garrafa nova. Talvez sentar-se na sarjeta e esquecer-se um pouco da sufocante etiqueta. Mas não seria dessa vez. Abandonou a garrafa ao pé de um poste de luz e torceu para que alguém fizesse bom proveito. Colocou as mãos no bolso e continuou sentindo o vento gelado riscar seu rosto, fazendo com que os olhos lacrimejassem forçosamente. Isso representava o mais próximo de chorar que lhe podia acontecer, visto que havia se tornado uma pessoa tão fria quanto aquela noite de quinta-feira.

***

De repente, uma mulher ainda com todos os encantos da juventude saiu de uma porta e se chocou com certa violência contra ele. Era como se ela se atirasse nos braços de seu super-herói enquanto estava sendo perseguida por um terrível vilão.

Atrás dela surgiu um homem plenamente embriagado, vociferando e tropeçando em seus próprios passos. Por certo não tinha intenções dóceis. Mas acabou vencido pelo próprio estado e caindo sobre a calçada, aos pés daquele casal recém-formado.

Ela era a encarnação de todos os melhores sonhos, e ainda dos piores pesadelos daquele homem estarrecido. Sua pele era tão branca como a mais branca neve, e lábios encarnados como de uma meretriz. Mas os olhos. Ah! Os olhos eram angelicais, e a voz era o coro em uníssono de todos os anjos do céu.

– Sou Lilly.

– Ro-Ro-Roger.

– Será que poderíamos sair daqui?

– Sim.

E seguiram no caminho oposto ao que ele esteve andando até agora. Rapidamente ela colocou-se a explicar o porquê de toda aquela situação constrangedora. E falava sem parar, enquanto ele estava apenas perdido em suas próprias lembranças. Atacado por seu doloroso passado.

Aquela mulher! Aquela maldita mulher que havia congelado seu coração ao partir. Aquela, que ele sequer se atrevia a pronunciar novamente o nome. Aquela que não havia deixado a possibilidade de mais ninguém em sua vida. Aquela mulher de alguma forma estava ali na sua frente. Havia descoberto o segredo de retroceder no tempo. Estava exatamente como há anos atrás. Não aparentava mais que vinte e poucos anos. Aquela mulher de sua alma.

– Acompanha-me até em casa?

– Mas é claro!

Apanharam um táxi. E costuraram ruas e ruas enquanto se conheciam.

Eles chegaram ao destino mais rápido que ele desejava. Viu uma casa muito requintada. A estrutura do imóvel e o modo dela de se expressar e de se vestir confirmavam suas suspeitas: ela também pertencia à alta sociedade. O que estaria fazendo naquele tipo de estabelecimento e em tão má companhia? Pensou por alguns instantes, para logo em seguida se lembrar do quanto ele próprio estivera em situações piores, por pura carência inconfessada.

***

Ela agradeceu pela ajuda e companhia.

Ele agarrou sua mão instintivamente.

Ela ofereceu um abraço e cedeu os lábios a um beijo.

O tempo parou naquele instante. De repente ele sentiu calor em ondas vulcânicas derreter todo o gelo dentro de si.

Ela o convidou para entrar...

Não era mais noite de inverno para aquele homem. Nunca mais inverno!

© Por Lilly Araújo-18/07/11 - Direitos Autorais Reservados.