Uma história dentro da sua história

Eduardo olhara mais uma vez para o relógio. Sabia que estava atrasado, mas tinha de escolher a melhor roupa, a que dissesse todas palavras silenciadas que por vezes tinha medo de pronunciar.

Os anos trabalhando como médico fizeram dele um exímio mestre em expressões humanas. Sabia que tinha de agir com rapidez quando alguém estava em seus “braços” na mesa de operação; sabia que tinha de agir com um cuidado habilidoso ao pronunciar às pessoas quando algum paciente fechava os olhos para sempre. Esse paradoxo da profissão o tornara frio e calculista com si mesmo, escondendo suas formas. Mas uma mulher lhe atingiu com tanta força a ponto de cega-lo e fazê-lo esquecer até mesmo seu próprio nome.

O bar, lotado como de costume em todas sextas, abrigava trabalhadores que procuravam relaxar, fosse com um copo singelo de cerveja ou altas doses de tequila. Após sentir o gelado da cerveja lhe perfurar o estômago, uma cena lhe despertou: os fios morenos caiam sobre o rosto daquela desconhecida, se atrapalhando mais ainda tentando pegar as folhas que cismavam em cair.

“Merda! Por quê tive de sair de casa num dia como hoje? Ainda cismo em terminar esse livro que nem eu mesma sei o que escrevo. Estou perdida! Ah, Deus, sei que nunca lhe pedi nada, mas preciso pelo menos de uma luzinha, vai!” gritava interiormente Valquíria, em meio às folhas espalhadas sobre a suja mesa do bar.

Eduardo não conseguia desviar o olhar daquela cena que muitos achariam trivial demais para perceberem, mas algo lhe instigava a chegar mais perto mesmo sem movimentar-se. O jeito como segurava a caneta tentando encontrar quaisquer resquícios de rabiscos lhe maravilhava; o jeito como tomava a cerveja, deixando um bigode de espuma formar-se em seus lábios lhe faziam rir; o jeito como tirava a franja do delicado rosto lhe fazia tremer. É, estava apaixonado em questão de segundos. Toda armadura que havia praticado há anos desmontara-se, quebrara-se em minúsculos pedaços que nem mesmo dava para catar os cacos restantes.

Perdia noites pensando na figura que cismava em prender seus pensamentos. Se arrependia amargamente da falta de coragem em soltar as palavras necessárias naquele dia no bar. Sabia que era sua última chance. Estava ficando louco, paranoico com a idéia de estar apaixonado por alguém que nem ao menos sabia o nome. Mas sentia. E seu coração disparava ao lembrar do rosto mais angelical já vislumbrado.

Tivera de ir antes do trabalho para pesquisar preços na livraria mais conhecida de sua cidade. A chuva forte lhe tocava o rosto, mesmo protegendo-se. Ao fechar seu guarda chuva, seus olhos não podiam acreditar: a mulher de tantas noites de insônia estava parada diante dele. Bem, o cartaz dizia:“Lançamento do mais novo sucesso ‘A janela de seus olhos’, de Valquíria Santos, às 20h de sexta feira.” Não perdeu tempo: comprou seu livro, ficando horas e horas na madrugada deliciando-se com aquela escrita tão sutil que as palavras pareciam saltar em seus olhos de tão belas.

Eduardo desmarcou todos agendamentos do dia para encontrar-se com ela. Era insanidade declarar-se assim, sem nem ao menos se apresentar. Mas não tinha forças para fazê-lo, mesmo sabendo que deveria.

A fila já encontrava-se longe a ponto da livraria desaparecer. Eduardo esperou pacientemente por mais de 1:30h sua vez chegar.

Ela estava deslumbrante: seu vestido vermelho realçava seu colo, deixando a mostra as belas formas; o cabelo solto ondulado junto com os olhos verdes lhe traziam uma beleza exótica.

As mãos de Eduardo tremiam. Quando chegou sua vez quase deixou os livros caírem. Ele riu por dentro mas quase se apunhalou por fora.

Os olhos se cruzaram:

- Qual seu nome? Os brancos daquele sorriso deixaram- no mais apaixonado.

- Eduardo Queiroz. Disse prontamente.

- Pronto! Muito obrig...

- Espere. Aceite, entregando em suas mãos um livro.

- Minhas palavras estão aí. Este é o livro favorito de minha mãe. Pensei que lhe dar algo em troca do seu maravilhoso trabalho que está oferecendo aqui.

E partiu.

Ao chegar em casa, Valquíria percebeu que carregava algo a mais: um livro que fora lhe dado horas mais cedo. Ao folhear a primeira página estava escrito:

“ Valquíria,

O degrau que alcançaste no dia de hoje na tua vida, poucas pessoas conseguiram alcançar.

Porém, o mesmo não é somente um mar de rosas...

Desejo que a prática da nobre profissão pela qual inteligentemente optaste e alcançaste, mercê de Deus, do teu trabalho e dedicação, te trará a permanente ventura de restituir alegrias e merecer, sobretudo, a gratidão de todos os que em ti confiaram.

Felicidades!!!

Eduardo Queiroz.”

Lágrimas queimaram a folha, imaginando, estática, aonde Eduardo poderia estar.

Mariana Rufato
Enviado por Mariana Rufato em 19/12/2012
Reeditado em 08/07/2013
Código do texto: T4043781
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