O amor nunca tem razão
Nunca soube ao certo o que a fizera se apaixonar por aquele homem. Não era bonito, não sabia dizer belas palavras de amor, não era divertido.Também não era carinhoso. Na hora do amor era egoísta, do tipo que depois vira e dorme.Não tinha talento culinário, não tinha emprego fixo, não tinha nada do que ela sempre apreciara nos homens.
Quando o comparava com seus antigos namorados, ficava ainda mais confusa. Já namorara homens garbosos, inteligentes, românticos, carinhosos sempre, principalmente na hora do amor.Mas, estranhamente, nenhum deles causara nela tanto impacto. Nenhum outro namorado tinha revirado seus sentimentos pelo avesso. Às vezes pensava que por ele poderia morrer.
Enquanto pensava em todas essas coisas, fazia uma bela macarronada, o prato preferido de seu amado. Ele não tardaria a chegar.
Não sabia por onde andava durante todo o dia. Nem ousaria perguntar. Aliás, fora assim desde que se conheceram. Homem de poucas palavras, mostrava através de seu silêncio que odiava perguntas, interrogatórios. Falava o que queria e quando queria. Ela aceitava.
Às vezes, ficava imaginando que ele poderia ser casado, ter filhos... Quando esses pensamentos começaram, pensou em colocá-lo contra a parede e até em deixá-lo... Mas, não se atreveu. Só de pensar, seu corpo estremeceu de pavor.
Ficou imaginando o que aconteceria naquela noite. Na verdade, não havia muito o que imaginar. A cena se repetia todas as noites: ele chegava à mesma hora, calado como sempre, sentava-se à mesa, que já estava a sua espera. Comia o que tivesse, sem reclamar nem elogiar. Depois, levantava-se, pegava-a pelo braço e conduzia-a até o quarto. Jogava-a na cama, tirava a sua roupa e lhe servia sua virilidade que, às vezes soava a ela como um pagamento pela comida. Deitava, dormia. No dia seguinte, acordava, tomava café e sumia no mundo. Retornava à noite.
Raras vezes, ela tinha ouvido o som de sua voz. Lembrava-se da primeira vez que se viram, ele lhe perguntara as horas. Já passava das dez, chovia torrencialmente e ele estava perto de sua casa. A princípio teve medo, pensou tratar-se de um ladrão. Disse-lhe as horas e entrou em casa. Morava sozinha. Ficou apavorada e não conseguiu dormir direito naquela noite. Lá pelas três da madrugada, levantou-se e foi até à janela. O homem estava no mesmo lugar, ensopado de tanta chuva. Teve pena, mas nada podia fazer.
Ao amanhecer, levantou-se para ir trabalhar. Ao sair, deparou-se com o homem ainda no mesmo lugar. Ao passar por ele, ouviu pela segunda vez sua voz: “Tem uma padaria aqui perto? Estou com fome.” Seu coração mole não aguentou. Suportava tudo na vida, menos alguém com fome ao seu lado. Pediu que esperasse. Voltou à casa e preparou um pão com manteiga e um café com leite. Ele recebeu o mimo com os olhos agradecidos, mas não disse sequer uma palavra.
Passou o dia pensando naquele homem. Não se concentrava em nada. Ao voltar para casa à noite, desejou que ele ainda estivesse lá. Dessa vez, iria fazê-lo entrar em sua casa e lhe faria um jantar decente.
Sua esperança se desfez, ao dobrar a esquina de sua rua. Ele não estava lá. Ficou desapontada.
Uma semana se passou e , inexplicavelmente, a figura daquele homem moreno, magro, de olhar expressivo não lhe saía da cabeça.
Numa manhã, como tantas outras, preparava-se para ir trabalhar, quando bateram à sua porta. Era ele. Pela terceira vez, ela ouviu sua voz. Perguntou-lhe se podia lhe arrumar comida. Tinha fome. Não tinha dinheiro. Não precisou se explicar muito. Ela o fez entrar e lhe preparou um desjejum farto. Comeu de maneira assustadora, selvagem. Ao acabar, levantou-se e levou-a até o sofá. Homem e mulher fundiram seus corpos. Desde aquele dia, a história se repetiu durante meses.
Nos seus devaneios, quase perdeu o ponto do molho da macarronada. Olhou o relógio. Estava quase na hora de sua chegada. Pôs a mesa como se esperasse um rei. Olhou-se no espelho, retocou o batom, colocou perfume...como se ele fosse perceber alguma coisa...
A hora chegou. Ele não chegou. Pensou que o relógio estava adiantado, que ele se atrasara... imaginou mil desculpas para driblar seu coração aflito. Foi até à janela. Rua deserta. Sentou-se, levantou-se, uma agonia sem fim. Abriu a porta, saiu, andou pela rua. Nada.
Todas as suas dúvidas sobre aquele homem começaram a revirar sua alma. Enquanto ele vinha todas as noites, ela aceitava tudo. Mas, quando ele simplesmente não apareceu nem telefonou... começou a pensar que ele era casado, que arrumara uma amante. Depois, chicoteou sua alma de remorso, ao se dar conta de que ele podia ter sido assaltado, sofrido um acidente, quem sabe? Naquele momento, desejou ardentemente que ele tivesse outra. A ideia de que algo de ruim tivesse acontecido com ele era insuportável.
Dias se passaram, mas a agonia se instalara em seu coração. Nenhuma notícia. Todas as noites preparava o ritual do jantar, esperando que ele aparecesse, mas, sua noite acabava em decepção.
Chegou o sábado. Foi à feira, como de costume. Comprou frutas, legumes, peixe... Numa última faísca de esperança, planejou preparar um jantar diferente naquela noite: uma salada, um peixe ao forno, um arroz branco. Ao chegar em casa, desembrulhou o peixe, como quem abre um presente. Mas, o papel que o embrulhava a aterrorizou.
Era um jornal velho. Viu a foto de seu homem ali estampada. Sem acreditar, sentou-se e começou a ler a notícia. A manchete dizia: “Fugitivo do presídio é capturado”. Ao ler a matéria, descobriu que ele, seu homem, cumpria pena por assalto. Assaltara um pequeno mercado, uma lata de sardinha e um pacote de bolachas. Fora preso, condenado. Há alguns meses, fugira. A polícia o achou por acaso, numa noite em que ele ia andando pelas ruas com uma rosa nas mãos . Prenderam-no. Na delegacia, confessou que durante o dia ficava escondido numa construção abandonada e à noite ia a um paraíso onde um anjo o aguardava.
Não conteve as lágrimas. Descobriu finalmente por que amava aquele homem.