ANTIGO CONTO DE NATAL
Republicação na manhã de 15 de dezembro de 2012
- Papai Noel não veio...
- Veio, mas já foi embora.
-... não veio...
A voz desolada sobe, pequenina, e é assim recolhida por uma das janelas do sexto andar. No meio, a fala impiedosa.
O olhar, através da janela, percorre o musgo que recobre o muro do fundo do prédio, por onde subiu, com dificuldade, a pequenina voz, o muro por onde se alastra o verde úmido, com trilhas para formigas e outros insetos. Do lado oposto, janelas laterais se alongam ao sol.
OS PASSOS INVISÍVEIS.
Noventa graus à esquerda: os livros se aninham, calmos e distantes. Os passageiros. Papéis recolhidos nos envelopes e nas pastas repousam, por ora, do olhar que cotidianamente os vasculha em busca de indícios, em busca de respostas para as perguntas que a memória gostaria de nunca mais fazer.
AS CIDADES MEDIEVAIS.
... não veio...
A voz, retornando, mais pequena ainda, tentando aceitar o fato irreversível: Papai Noel veio, mas, ela, a pequenina, não viu, e ele já foi embora.
As mãos pegam, ao acaso, o livro mais próximo. Na página, o dedo pousa de leve. ONTEM. A palavra salta, junto com a lembrança da outra, na língua incompreensível que, dos cinco, só Elisa conhece. No quarto permanece o cheiro dos pêssegos e na boca ainda o gosto do chocolate suíço, presente de Rubem.
Cento e oitenta graus. Lentamente, os olhos se erguem até se encontrarem no espelho: Ana vê o próprio reflexo. Onde o rosto de Daniel?
O ESPELHO.
Márcia... Márcia, de Daniel... Márcia, medo no espelho... Márcia... melhor não olhar.
Elisa perto do polo norte, onde nasceu Papai Noel. Elisa a evocar Rubem?
Daniel há algumas horas daqui, no solar diante do vale verde.
Rubem, do outro lado desta cidade, em uma livraria... a tomar um café expresso...
Ana, os olhos diante do espelho onde nunca viu o rosto de Rubem, seu companheiro, seu amante.
(Ana que não sabe da existência de Marília, outra Marília de Daniel, Marília de quem só viria a saber quase duas décadas depois.)
Os dedos tateiam a superfície fria em busca da abertura por onde Alice passou para o Outro Lado.
OS CHAMADOS.
O vinho. As taças púrpuras. A boca de Daniel.
Em algum lugar, perto do polo norte, Elisa se lembra de que, há quase um ano, estava nesta cidade, com Rubem.
Em algum lugar... melhor não saber... Márcia... melhor não saber...
Há algumas horas daqui, Daniel tenta se lembrar, mas, até mesmo o rosto de Ana lhe escapa do espelho.
Do outro lado desta cidade, Rubem caminha; mentalmente procura uma palavra de encaixe perfeito no texto que a aguarda; quem sabe pense em Elisa cujo olhar, neste instante, se perde na neve, ou em Ana a pensar nas formigas a seguir pelas trilhas.
Aqui, os olhos já se desviaram do espelho.
ANTIGAMENTE, O MURO DOS FUNDOS DO PRÉDIO FOI BRANCO. Há muito tempo, também o musgo começou, verde e fresco.
A voz infantil não regressou. Dos outros cômodos do apartamento, o silêncio compacto como um monolito.
O quarto inteiro pulsa aqui do outro lado desta cidade há algumas horas no vale verde lá onde Márcia esteja perto do polo norte onde nasceu Papai Noel.
Amanhã, quando ele estiver a caminho, de volta ao seu longínquo país, com a mesma roupa vermelha e a mesma barba branca, as infinitas pequenas formigas continuarão, para sempre, a percorrerem a trilha onde, certa vez, o muro dos fundos do prédio foi branco, antes que o musgo verde e fresco tomasse conta de tudo.
Texto original de 25 de dezembro de 1991; republicação em 15 de dezembro de 2012.