A perfeita

Eu não sei porque ousei ir àquele restaurante aquela noite. Fazia só um mês que tinha terminado tudo entre mim e ... enfim, não era porque aquele cara do trabalho dava em cima de mim que eu deveria aceitar jantar com ele. Sempre tão solícito, gentil comigo no trabalho, e eu pensei "por que não?". Mas logo ele mostrou porque não. Porque sabia que eu tinha acabado de sair de um relacionamento mas queria me forçar a entrar em um novo, porque era a primeira vez que nos víamos fora do trabalho e ele queria me levar pra casa (ou cama). Era por isso que "não".

Estava eu, então, só, andando pela calçada em busca de um último táxi perdido (pra casa dele eu ganharia carona, pra MINHA casa, não). Andando no frio da noite, pensando em todas as merdas daquele mês de merda nessa merda de vida de merda, que fingia levar tranquila. Foi neste ponto que Deus mostrou que devemos dar graças pelo jeito que as coisas estão, porque sempre podem piorar. Um carro buzinou, não dei atenção. Buzinou de novo, chato! Mas uma voz que eu conhecia tão bem chamou "EI", só aquele simples "ei" me fez parar no lugar, me fez parar no tempo. Mas não olhei.

- Ei, tá fazendo o que aí?

Olhei rapidamente, fingi que meu coração, minhas pernas, meu cérebro continuavam funcionando normalmente e segui em frente, devagar, coração fazia: tututututututututu, rápido, rápido...

O dono da voz desceu do carro, veio até mim. Senti até a pulsação do coração dele, muito perto de mim. Perto demais... não devia se aproximar de mim. Puxei o braço com força.

- ME DEIXA EM PAZ! QUE MERDA! SERÁ QUE ALGUMA COISA PODE FICAR PIOR?

Podia.

Choveu.

Pode ficar pior. Sempre pode.

Então eu estava ali, sozinha, com frio, na chuva e com o desgraçado que ferrou minha vida há um mês.

Não consegui dizer mais nada, porque as lágrimas não permitiam mesmo. Não consegui sequer fingir que não queria aquele abraço. Não consegui parar de chorar encostada no peito dele... eu já tinha passado muito tempo encostada nele, daquele mesmo jeito. Mas nessa época eu estava feliz.

Fui conduzida aos pouquinhos pro carro.

Sentei no banco do carona, coloquei o cinto, apoiei os cotovelos no joelho, o rosto nas mãos e comecei a chorar.

Chorei de verdade.

Não eram os choros fingidos de sempre. Eu chorei MESMO.

Eu solucei de chorar. Acho que nunca chorei tanto.

Chorei o trajeto todo, até que ele estacionou o carro. Parecia não saber o que fazer com todo o meu choro.

- Ana, olha...

- Cala a boca Hugo. Pelo amor de deus, cala a droga da boca.

Levantei um pouco o olhar, porque já tinha chorado ao ponto de secar as lágrimas. Aquele ponto, você sabe... em que parece que lavamos a dor de dentro da gente, e a gente pode agir com mais firmeza, pensar com mais calma, e nos vingar com mais maldade.

- Se você tá assim pelo que aconteceu... escuta, aquela mulher...

- Não tô chorando por isso. Não tô chorando por você. Tô chorando por tudo, Hugo, por tudo... Porque meu projeto de vida desmoronou Não adiantou tudo o que fiz, esses anos todos...

Eu falava olhando através do retrovisor... Era como se eu visse aquilo que estava falando.

- Esses anos todos, Hugo, eu fiz de tudo. Eu fiz de tudo por você, eu fiz de tudo pela minha mãe, pelas minhas amigas, eu fiz de tudo Hugo. E o que foi que deu? Meu projeto de vida perfeita: acabado. Eu fui inteligente, eu fui magra, eu me vesti bem, eu comi direito, eu fiz exercícios, eu neguei o que eu queria, eu neguei as coisas e as pessoas só pra não contrariar a visão de mulher perfeita que todos vocês tinham de mim. E adiantou? - Olhei pra ele, estupefato - adiantou, Hugo? Me fala. Todos esses anos, 27, pra ser mais específica, eu tentei. Eu juro que tentei ser boa, ser tão boa quanto queriam que eu fosse. Mas eu não fui, e eu não sou agora também. Eu era a filha que não conseguia casar e agora sou a filha que não segurou um casamento. Eu era forte, eu SOU forte, Hugo. Mas uma coisa só que saiu errada, ACABOU COM TUDO. Eu não fui boa o suficiente pra você.

- EU cometi um erro, eu acabei com tudo, você não fez nada de errado. Eu errei. - ele disse como se tentasse se justificar, mas eu não queria explicações. Explicações me fariam perdoar. Estava acabado, eu já havia chorado e eu ia voltar a ser aquilo que eu sempre fui. Perfeita? Não. Uma fortaleza.

Calei e esperei chegar em casa... em "casa", não era casa sem Hugo, mas nunca mais seria uma casa com ele. Naquele momento, se eu tivesse seguido meu coração eu teria aceitado o pedido de desculpas, eu teria jogado tudo o que a sociedade diria pro ar. Eu viveria meu amor.

Mas minha ânsia de ser perfeita pra todos me impediu de ser perfeita pra mim.

Desci do carro e agradeci a carona. Tchau Hugo. Tchau amor.

Karine Maria Lima
Enviado por Karine Maria Lima em 04/12/2012
Reeditado em 05/12/2012
Código do texto: T4019886
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