mundo de lembranças

pegou novamente o celular. era a vigésima vez que ouvia a mensagem naquele dia. ficou ali em sua cama, com a cabeça sobre o travesseiro. era o único local onde se permitia pensar nela. onde não era interrompido por ninguém, local onde, sozinho, se sentia acompanhado. tinha se acostumado a isso, vivia de lembranças. lembranças não magoavam, não feriam. o tempo leva a esperança, o apego, mas as lembranças permanecem. ninguém é capaz de tirar as lembranças de alguém sem que este lhe permita.

não se falavam mais, era o terceiro dia desde que a decisão fora tomada. - melhor nos afastarmos de vez, antes que algo mais venha a acontecer. eu não quero, você não quer, e ambos queremos, mais que qualquer outra coisa. - disse a ela num dia chuvoso de novembro. ela concordou, era o que queria ter proposto dias antes, mas que sempre lhe fugia da mente quando se abraçavam.

ouvir sua voz pelo telefone era algo indescritível. causava nele um misto de dor e prazer. o som do seu sorriso e as palavras doces ditas por ela, tão naturalmente, o transportavam para um outro universo. aquelas chamadas o faziam se sentir vivo. aquelas chamadas, mesmo tão curtas às vezes, o faziam sentir gratidão pela vida.

mas tudo havia chegado ao fim. restavam-lhe apenas as boas lembranças dos dias quentes, um celular que não mais recebia chamadas, e aquela mensagem na caixa postal, mensagem que ele ouvia incansavelmente por dias e dias, desde que a descobriu entre as muitas outras perdidas na caixa de entrada.

colocou o pequeno telefone próximo ao ouvido e fechou os olhos. os batimentos cardíacos acelerados mostravam que nada havia de fato chegado ao fim. por mais que dissesse o contrário, ele ainda a desejava lá, ao seu lado. e ia ser assim enquanto as memórias estivessem vivas. ia ser assim para sempre.

alguns minutos se passaram e, por fim, estava decidido, não ouviria mais aquela mensagem. após repeti-la por três vezes seguidas e ouvir o doce som do jamais vou te esquecer no final, clicou na opção excluir. sim, seria mais fácil dessa forma. afinal de contas, quem é que sente falta assim de alguém o tempo todo? que necessidade é essa de falar com alguém a todo instante que não pode ser controlada? quem é que precisa tanto assim da voz de outra pessoa para sentir-se efetivamente feliz? a resposta era simples e objetiva, ele precisava.

guardou o aparelho no bolso. pegou a carteira e as chaves do carro. saiu às pressas. no caminho, as memórias voltaram a invadi-lo. o beijo abrasador e o abraço repleto dos mais intensos sentimentos naquela manhã de domingo, seus olhos sempre tão inquisidores, o mais belo e verdadeiro de todos os sorrisos que ele conhecia. sorriu diante da loucura que estava prestes a fazer, ou de nervosismo, talvez. acelerou, mais e mais, queria vê-la o mais rápido possível, antes que aquela insanidade momentânea chegasse ao fim.

enfim, chegou ao seu destino. conhecia bem aquela rua, os postes, a calçada, as casas geminadas, tudo era nostálgico e convidativo. tocou a campainha. uma, duas, três vezes. não conseguia se controlar, suava frio, estava ansioso, impaciente.

ouviu passos e o som familiar de uma gargalhada. sorriu mais uma vez. ele a amava. sim, ali, prestes a ver novamente aquele lindo rosto, percebeu isso nitidamente. ele a desejava mais que qualquer outra pessoa. ele precisava dela. da seu voz, seu rosto, corpo, seu sorriso.

a porta foi aberta. sentiu seu coração palpitar, estava ofegante com a expectativa. porém, em um segundo seu sorriso se desfez. seu rosto transformou-se em uma máscara de surpresa e dor. percebeu que aquela gargalhada que ouvira tantas vezes há pouco tempo atrás nada tinha a ver com sua presença ali ao lado de fora. aquela gargalhada contagiante, tão gostosa de se ouvir, era dessa vez dirigida a um outro alguém. alguém a quem ela estava abraçada, afável e intimamente ali, bem em sua frente.

fechou os olhos. foi um erro ir até lá, sabia. desejou estar sonhando, não podia ter fraquejado assim. o que diabos ele estava fazendo ali? mãos em punho, cerrou as pálpebras e, com todas as forças, desejou voltar para o seu solitário e inabalável mundo de lembranças.