amar (uma pitada autobiográfica)

olhar no espelho e não mais se reconhecer. procurar em todos os cantos motivos pra sorrir novamente e se frustrar ao não encontra-los. pra onde foram os sonhos? como traze-los de volta? não sabia. as respostas para todas essas perguntas ela levou consigo, dentro das malas.

já não sabia o que fazer. cada cômodo tinha um pedaço dela. seu cheiro, sua voz. seu sorriso estava presente em todos os lugares. no quarto, na sala, cozinha. nas xícaras ainda com as marcas de um café da manhã perfeito. em sua memória.

ansiava pelo dia em que conseguiria se libertar de uma vez por todas. se libertar da saudade, das marcas deixadas e, acima de tudo, do desejo de poder voltar atrás e fazer tudo diferente.

estava mais uma vez sozinho em seu quarto. acompanhado apenas pelos sons que vinham de fora. carros que passavam pela rua, crianças brincando, sorrisos que ele almejava serem seus. não sorria mais. não se alimentava direito. desde que ela se foi nada mais era como antes. o sol já não brilhava tão forte. o azul do céu era acinzentado, efeito da ausência daquela que fazia dos seus dias os melhores e da persiana que permanecia fechada, da forma que ela deixou desde que partiu.

sabia que esse estado de latência somente o tornaria mais fechado e amargo, mas não tinha forças pra se reerguer. entregue ao álcool, mantinha-se refém das lembranças, era o que tornava a vida, ainda que difícil, suportável. de olhos fechados podia imaginar uma outra vida. podia ser quem quisesse. um homem bem sucedido, com uma esposa que o amava e o respeitava acima de tudo. podia sentir seu toque. seu corpo nu, a pele delicada, seu abraço acolhedor capaz de fazer esquecer qualquer estresse do dia-a-dia corrido. ao fechar os olhos podia voltar no tempo e ser quem ele era quando ainda a tinha ao seu lado.

ao acordar, descobria que tudo não passou de uma grande mentira. era assim todos os dias. aquela que estava ali do seu lado o tempo todo na verdade somente fingia estar, por conveniência, ou talvez, no início, por amor. sim, porque não? melhor acreditar que pelo menos em algum momento ela o quis de verdade. uma linda mentira. quão cruel foi perceber tudo isso após uma noite de amor tão aparentemente verdadeiro. e, ainda mais cruel, saber que viveria tudo isso de novo se fosse possível, sem pensar duas vezes.

o amor é mesmo uma coisa inexplicável. num dia tudo é lindo e as coisas são perfeitas, no outro você percebe que nada daquilo era o que parecia ser. o mais difícil para ele foi descobrir que não conseguiu ser para ela nem metade do que ela ainda significava em sua vida. hoje sabe, melhor que ninguém, que amar de verdade não é uma coisa tão boa assim quanto dizem por aí.