OS TRÊS AMORES DE CLARICE
Por Carlos Sena
Clarice era uma criança normal. Fazia tudo que qualquer criança da sua idade fazia. Gostava de estudar, gostava de brincar de boneca, mas não gostava de ser tratada como gente grande como alguns pais às vezes fazem. Aos dez anos, Clarice já tinha a noção exata de que ser menina era diferente de ser menino. Também já imaginava que os adultos namoram e que se amam e que se amando podem fazer filhos. Os pais de Clarice não alcançavam seu sentimento, porque ela não fazia questão de verbalizar certas coisas que talvez os adultos começassem a vê-la como criança prodígio. De fato ela não era prodígio. O diferencial é que ela, logo cedo, alcançou que as pessoas são crianças e são adultos e, certamente, serão velhos. No decorrer natural, não era difícil entender que Clarice tivesse já a noção da morte.
Os natais de Clarice eram tranquilos como agua da fonte. Seus pais, afortunados financeiramente, sempre procuravam lhe dar o melhor presente. Ela os recebia sem muito entusiasmo, pois não era deslumbrada como, certamente, seus pais gostariam que fosse. Certo natal, ela ganhou de presente um IPOD. Fez um riso amarelo, o guardou e nunca se interessou por ele. Às vésperas de um dos seus natais, pediu aos pais autorização para dar o seu ipod à escola, pois o natal das crianças pobres da vizinhança era sua escola quem bancava e era preciso fazer uma rifa de alguma coisa para angariar fundos. Se ela ofertasse aquele objeto, haveria uma sorteio e com o dinheiro arrecadado, seriam comprados centenas de presentes. Os pais ficaram chocados com o pedido da filha, mas concordaram. A partir desse fato, pai e mãe começaram a querer compreender melhor sua filha única. Será que Clarice não sente falta de um irmãozinho, perguntou o pai. Pode ser, respondeu a mãe, mas talvez seja o caso de leva-la a um Psicólogo. Nessa noite, após o jantar, foram dormir e conversaram exaustivamente sobre sua filha. Nenhuma conclusão objetiva puderam tirar, exceto o pensamento equivocado de leva-la ao Psicólogo.
Alice, após o “de acordo” dos pais para sortear o Ipod, foi toda feliz para a escola. O dito sorteio permitiu uma boa arrecadação e os arredores da escola tiveram um natal cheio de brincadeiras, comidas e muitos presentes. Mas nada disso levava a menina Clarice a exigir tratamentos diferenciados dos professores e da direção da escola. Certo dia, seu nome foi citado numa solenidade de final de ano – ocasião em que as turmas fazem festinhas e convidam os pais dos alunos, entregam as notas, etc. Ela não gostou e procurou os diretores da escola para não fazerem mais isso, pois não queria ser vista pelos colegas como “diferente”. Os professores ficaram boquiabertos com a atitude de Clarice. Mas prometeram que seu desejo seria atendido.
Certo dia, numa reunião de pais e professores, eis quem aparece: os pais de Clarice. Nunca eles foram a reuniões dessa natureza, embora sempre tivessem sido convidados. Pela primeira vez eles ouviram opiniões dos professores acerca da sua filha e de seu sentido comunitário, não obstante ser uma boa aluna – Clarice não tinha preocupação em ser primeira de turma! Certo dia, diante de uma discussão entre seus colegas pra ver quem tinha tirado a menor nota, ela foi enfática: “nota não é tudo se os alunos não fizerem a sua parte prática diante do que aprende na escola, por isso eu não tenho problema em tirar nota baixa ou ser primeira de turma”. Dessa forma, ela foi conseguindo uma proeza pra uma criança de dez anos: ser uma líder de turma naturalmente, embora sem ter a noção exata do que seria isso.
Os pais desistiram de levá-la ao Psicólogo, depois que perceberam mais amiúde que sua filha era perfeitamente normal. O tempo passa e, como num passe de mágica, os ditos pais, despreparados, sentem que Clarice adolesceu. “Nossa filha já é uma moça”, comentou o pai na hora do jantar. “É. Precisamos falar com ela certas coisas de mulher, refutou a mãe”. Nem se deram conta de que a filha já menstruara, já usava sutiã e, provavelmente, já estava com namoradinho. Ouvindo essa conversa, Clarice chega, senta-se à mesa, começa a tomar café e entra na questão. Vocês estavam falando de mim não era? Bobagem. Se vocês não falam de vocês agora querem falar de mim! Os pais ficaram “beges” como se diz na linguagem da rapaziada cor de rosa. Ela, embora jovem, aprendera com a vida mais rápido do que se imaginava. Desfilou um corolário de lições aos pais que eles foram dormir sem, sequer olhar um para o outro. No fundo, Clarice disse que eles tinham um casamento por conveniência e que, por conveniência tiveram que “fazê-la” vir ao mundo.
No dia dos quinze anos dela, os pais quiseram fazer uma festa de “arromba”, mas logo ela disse que não. Preferia uma viagem, falou aos pais. No dia seguinte, seus pais chegam com uma passagem a Disney com tudo pago em uma excursão de primeira com todo luxo. Ela disse que não pediu pra ir a Disney, nem se considerava com perfil dos novos ricos que fazem isso com os filhos sempre que eles aniversariam. Os pais tentaram dissuadi-la, mas não houve acordo. Filha, mas você não disse que queria uma viagem? – Disse sim, mas desde que eu escolhesse o destino. Afinal, eu tenho até hoje escolhido meu destino sozinha, por que não agora? Quero uma viagem ao circuito histórico de Minas Gerais. Quero conhecer Diamantina, Sabará, São João Del Rei, Tiradentes e demais cidades. Os pais congelaram, mas não havia alternativa. No decorrer da conversa foi logo se adiantando: no dia dos meus quinze anos, nada de festa aqui em casa. Vou chamar meus amigos e vamos assistir a um filme – Luiz Gonzaga de Pai pra Filho, dizem ser muito bom. Depois a gente vai tomar sorvete a vontade na Free Sabor. Mas, à noitinha estarei aqui para a gente tomar o café juntos. Nessa hora eu quero meu bolo de aniversário. Só nós três, combinado? Por que você não chama sua tia, falou sua mãe. – Por que você não trata sua irmã de irmã, prefere dizer ser ela minha tia? Já pensou no dia em que eu me dirigir a você, papai, dizendo: “papai, cadê sua esposa” me referindo a mamãe? Tá bom, tá bom, retrucou o pai. A gente janta só nos três e acende suas velinhas como você quer filha! Assim fizeram. Ah, mas tô sentindo falta de uma sobremesa, disse Clarice. Não seja por isto, disse a empregada conduzindo uma torta alemã deliciosa. Após o jantar dos quinze anos da filhinha, todos se recolheram, mas Alice ficou. Sua mãe, tristíssima com o aniversário sem glamour. Ela já havia programado essa festa num cruzeiro, com direito a cascata de fogos em alto mar e com a presença de atores globais para apresentar a festa. Os burros morreram antes de chegarem a água, pensou a empregada que defendia o pensamento de clara.
Clarice apaga a luz da sala e se recolhe ao quarto. De repente um barulho no quarto dos seus pais. Ela desperta – estava adormecendo lendo um livro de Carlos Pena Filho – poeta pernambucano dos melhores de sua geração. Clarice era assim: se envolvia tanto quando lia que, dependendo da poesia ela “viajava” até dormir... Mas, desperta, correu para mais perto do quarto dos pais e ouviu que se tratava de uma discussão acalorada. Inesperadamente um grito lá de dentro sai em estampido: “Sua puta”, eu lhe mato! Era seu pai dizendo isso da sua mãe. “Se você abrir o bico eu lhe mato, já disse”! “Pois eu vou dizer e quero ver você me matar seu safado”! Temendo ser morta pelo marido, a mãe de Clara se acalma. De repente a luz do quarto se apaga e a paz parece reinar naquele recinto de intimidade do casal.
No dia seguinte, o pai de Clarice, de Claridade como ele carinhosamente gostava de chamá-la, levanta-se mais tarde. Pergunta a empregada pela esposa, mas a esposa não sabia direito pra onde ela tinha ido. Disse ao patrão que a tinha visto sair com uma blusa de frio nos ombros, uma pequena mala de viagem e me pediu pra lhe dizer que nada dissesse do seu paradeiro. Na hora do café da manhã, sentados à mesa apenas Clara e seu pai – Mamãe não levantou? – Já respondeu. – Pra onde foi? – Não sei, respondeu... Cada um sentado na frente um do outro mais pareciam dois estranhos. Clarice levanta, dá um beijo insosso na careca do seu pai e vai pra aula de Francês. Francês, perguntou o pai. Sim. Deixei a aula de inglês, na verdade eu troquei. Tchau, fui.
Clarice estudava Francês no mesmo colégio em que cursava o ensino fundamental. Suas aulas terminavam meio dia e ela lanchava com as colegas por ali. Algumas vezes acompanhava as colegas a um shopping de bairro aí pertinho, mas, 14h estava lá na sua aula preferida – a de Frances. Ela gostava tanto de estudar francês que já se interessava pela história da França. Paris, então, lhe encantava. Seu grande sonho era conhecer a Notre Dame e subir na Torre Eiffel. Esse interesse repentino pelo idioma francês até espantou a ela mesma. Belo dia ela foi à casa da sua professora pra ela lhe indicar livros de autores importantes. Lá, teve oportunidade de perguntar a professora se ela já conhecia Paris e o que mais gostou. Nem esperou a professora dizer o que mais gostava, foi logo se adiantando: ”no dia em que eu estiver lá, a primeira coisa que quero ver é o Rio Sena – ficar horas vendo aquelas paisagens bucólicas e tentar avistar a torre Eiffel, talvez no cair da tarde”... Um momento, disse a professora de francês! Tenho uma encomenda pra lhe dar. Sua mãe, sabedora do seu interesse por estudar francês, me procurou na escola pela manhã e entregou essa carta pra você. Clarice ficou como já disse, “bege”. Pegou a carta e, em silêncio, foi saindo de fininho e sequer deu tchau à professora. No primeiro taxi que passou ela foi embora pra casa. Trancada no quarto, começou, emocionada, a abrir o envelope da carta. Parecia que ela tinha tanto medo que dava a impressão que ela pudesse estar abrindo uma carta bomba. E estava mesmo. “Minha filha querida: conheci seu pai quando fazia mestrado em Paris. Por ele me apaixonei e ele por mim disse estar apaixonado. Contudo, (sempre tem um, contudo), ele morava com uma francesa que era bibliotecária na Universidade em que ele ensinava. Ela engravidou e eu só fiquei sabendo de tudo, inclusive que ele morava com ela quando a criança nasceu. Quando eu soube da verdade, decepcionada, terminei o namoro e esperei chegar o fim daquele ano pra terminar o mestrado e retornar ao Brasil. No final do ano, ele, sabendo disso, me chamou e disse que deixaria tudo e voltaria comigo pra cá, pra terrinha. Mas e a criança?. – Eu levo comigo. Quando a mãe dela soube que tinha um caso com você sumiu de casa e até hoje não tive notícias dela. Procurei na casa de uma única tia que ainda possuía, uma senhora de quase 80 anos, mas ela não sabia também do paradeiro da sobrinha. Aquela criança era você, Clararice”. Nós te trouxemos, registramos e mantivemos o nome Clarice que foi o nome que sua mãe lhe dera. Esse nome ela o pôs, segundo seu pai, em homenagem ao clarear do dia em Paris. Ela se acordava cedinho e ficava da janela do quarto vendo o dia clarear. Isso ela fazia todo dia. Foi num desses dias que seu pai chegou junto dela e perguntou o porquê de todo dia ela se acordar, ir pra janela e ficar vendo aquilo tudo. Ela disse que não sabia explicar, apenas que gostava daquele clarear lento, em que a noite era vencida pelo lindo dia que tomava conta da cidade Luz. “Se eu tiver um filho, seu nome tem que ter “claridade” no meio. E assim fez. Seu pai ainda hoje, quando eu não estava por perto lhe chamava de Claridade, lembra? Ele não fazia isso sempre porque temia que eu ainda achasse que ela não se esquecera da sua mãe. E é o que de fato eu acho. Seu pai só teve um grande amor na vida: Edite, esse era seu nome. Pronto. Agora estou com a consciência tranquila. A esta hora, quando você estiver sabendo toda sua verdade, eu deverei estar voando com destino a Santiago do Chile. Lá, deixei um grande amor que irei vê-lo e também assumir uma cadeira de professora numa Universidade de lá. Saiba que lhe amo muito, mas quando o tempo passar a gente se encontra, quem sabe?
Diante dessa avalanche de fatos, a adolescente Clara age com firmeza. Como quem, do alto dos seus apenas quinze aninhos, já imaginava que aquilo fosse acontecer? Chorou tudo que teve direito, mas logo se recompôs, pois era uma garota de um senso prático impressionante e, o que não tinha mais jeito, jeito já estava dado, pensava sempre assim.
O pai de Clarice não morria de amores por sua esposa. Por isso, fez pouco caso da separação, pois isso pra ele já era coisa por demais esperada. Antes que ele procurasse a filha para algum tipo de conversa em função do que sua mãe, em carta, lhe dissera, foi enfática: “já sei de tudo”. O problema de vocês são vocês que irão resolver. Agora eu quero saber do meu. Você, papai, vai me ajudar a encontrar minha mãe? Claro, filha, a gente vai localizá-la em Paris. Ela deve permanecer por lá, pois sempre me dizia que não moraria em outra cidade. Contudo, Clarice não ficou apenas no aguardo do pai. Entrou na internet e começou fuçar as redes sociais. Uma amiga que residia por lá, também foi solicitada a ajudar nessa busca. Certo dia, essa amiga pede para Clarice ir passar uns dias por lá, pois havia alguns bons indícios acerca do local em que sua mãe poderia ser encontrada. Pediu uma passagem ao pai e ele concordou. Clarice pega o primeiro avião daquele inicio de dezembro de 2010. Não foi difícil localizar Edite. Ela, bibliotecária de formação, fizera mestrado e doutorado e se consagrava como uma das principais autoridades em Biblioteconomia do mundo. Foi localizada através de uma associação de classe que informou estar ela lecionando numa imponente universidade francesa. Passando-se por uma aluna, não conseguiu acesso. Foi várias vezes tentar outra forma de contato, mas em vão. Quase desesperada, Clarice teve uma “luz”: conheceu uma aluna da professora Edite que lhe contou acerca de uma festa de confraternização da turma. Edite teria confirmado a presença, disse a aluna. Clarice pega o endereço, veste a melhor roupa e vai com sua amiga a essa comemoração. Clarice se sentou no restaurante com a amiga. Pediram um champanhe e ficaram observando quem chegava para a então comemoração. Havia uma mesa toda decorada, reservada para isso. A professora Edite foi uma das primeiras a chegar. “É ela, disse Clarice a sua amiga”! A amiga confirmou, pois pareciam ser irmãs gêmeas tamanha era a semelhança. “Outro champanhe”, pediu Clarice, nervosa. Pacientemente preferiu esperar um pouco até que todos os alunos da professora Edite chegassem – assim ficava mais fácil o contato, pois Clarice não sabia de que forma seria recebida por sua mãe. Quando todos os alunos já haviam sentados Clarice chega na cabeceira da mesa e, de pé, solicita um momento de atenção pois gostaria de dizer algumas palavras em nome da Universidade. Ela fez esse preâmbulo todo em francês fluente o que deixou a todos maravilhados. Foi um discurso cheio de lirismo e de lições de autoestima, causando forte impacto em todos. Antes de terminar suas palavras foi interrompida por um aluno: “Professora Edite, por que a senhora nunca nos disse que tinha uma filha”? A professora, aos prantos, levanta-se e abraça aquela para quem não havia dúvidas – era sua filha! A confraternização continuou, mas as professora Edite não se desgrudava da filha. Todos os alunos queriam saber um pouco da história e já tinha alguns rapazes de “olho” na beleza e inteligência de Clarice. No final do jantar de confraternização, mãe e filha foram conversar e raiaram o dia atualizando o “HD”. No meio da conversa entremeada por champanhe francês e patê com Baguete, um telefonema do pai de Clarice: “filha, amanhã chegarei em Paris”. Gostaria de vê-la no aeroporto. Alguma novidade? Alguma pista da sua mãe? – Não, pai, mas estou no caminho certo. Não se preocupe que amanhã estarei te esperando no Charles Degaulle. Quando seu pai adentrou no saguão do aeroporto viu logo a carinha de sua filha com um sorriso de felicidade que jamais vira. Abraçaram-se e foram jantar nas proximidades do Champs Elisè – num restaurante luxuoso famoso por suas ceias de natal primorosas. Quando adentraram no restaurante, o clima de natal tomava conta de todos. Clarice se dirigiu a uma mesa em que já se encontrava uma pessoa sentada. Mas, seu pai foi avisado que seria a amiga na casa de quem ela, Clarice, estava hospedada. Pegadinha de Clarice: era sua mãe, a ex-esposa do seu pai. Nessa hora, prefiro pedir socorro a Gal Costa: “assim se passaram dez anos, sem olhar teus olhos, sem beijar teus lábios. Assim foi tão grande a pena que sentiu a minha alma, ao recordar que tu foste meu primeiro amor. Recordo junto a uma fonte nos encontramos, e alegre foi aquela tarde para nós dois. Recordo quando a noite abriu seu manto, e o canto daquela fonte nos envolveu. O sono fechou meus olhos me adormecendo, senti sua boca linda a murmurar: abraça-me por favor minha vida. E o resto desse romance, só sabe Deus...”
Por Carlos Sena
Clarice era uma criança normal. Fazia tudo que qualquer criança da sua idade fazia. Gostava de estudar, gostava de brincar de boneca, mas não gostava de ser tratada como gente grande como alguns pais às vezes fazem. Aos dez anos, Clarice já tinha a noção exata de que ser menina era diferente de ser menino. Também já imaginava que os adultos namoram e que se amam e que se amando podem fazer filhos. Os pais de Clarice não alcançavam seu sentimento, porque ela não fazia questão de verbalizar certas coisas que talvez os adultos começassem a vê-la como criança prodígio. De fato ela não era prodígio. O diferencial é que ela, logo cedo, alcançou que as pessoas são crianças e são adultos e, certamente, serão velhos. No decorrer natural, não era difícil entender que Clarice tivesse já a noção da morte.
Os natais de Clarice eram tranquilos como agua da fonte. Seus pais, afortunados financeiramente, sempre procuravam lhe dar o melhor presente. Ela os recebia sem muito entusiasmo, pois não era deslumbrada como, certamente, seus pais gostariam que fosse. Certo natal, ela ganhou de presente um IPOD. Fez um riso amarelo, o guardou e nunca se interessou por ele. Às vésperas de um dos seus natais, pediu aos pais autorização para dar o seu ipod à escola, pois o natal das crianças pobres da vizinhança era sua escola quem bancava e era preciso fazer uma rifa de alguma coisa para angariar fundos. Se ela ofertasse aquele objeto, haveria uma sorteio e com o dinheiro arrecadado, seriam comprados centenas de presentes. Os pais ficaram chocados com o pedido da filha, mas concordaram. A partir desse fato, pai e mãe começaram a querer compreender melhor sua filha única. Será que Clarice não sente falta de um irmãozinho, perguntou o pai. Pode ser, respondeu a mãe, mas talvez seja o caso de leva-la a um Psicólogo. Nessa noite, após o jantar, foram dormir e conversaram exaustivamente sobre sua filha. Nenhuma conclusão objetiva puderam tirar, exceto o pensamento equivocado de leva-la ao Psicólogo.
Alice, após o “de acordo” dos pais para sortear o Ipod, foi toda feliz para a escola. O dito sorteio permitiu uma boa arrecadação e os arredores da escola tiveram um natal cheio de brincadeiras, comidas e muitos presentes. Mas nada disso levava a menina Clarice a exigir tratamentos diferenciados dos professores e da direção da escola. Certo dia, seu nome foi citado numa solenidade de final de ano – ocasião em que as turmas fazem festinhas e convidam os pais dos alunos, entregam as notas, etc. Ela não gostou e procurou os diretores da escola para não fazerem mais isso, pois não queria ser vista pelos colegas como “diferente”. Os professores ficaram boquiabertos com a atitude de Clarice. Mas prometeram que seu desejo seria atendido.
Certo dia, numa reunião de pais e professores, eis quem aparece: os pais de Clarice. Nunca eles foram a reuniões dessa natureza, embora sempre tivessem sido convidados. Pela primeira vez eles ouviram opiniões dos professores acerca da sua filha e de seu sentido comunitário, não obstante ser uma boa aluna – Clarice não tinha preocupação em ser primeira de turma! Certo dia, diante de uma discussão entre seus colegas pra ver quem tinha tirado a menor nota, ela foi enfática: “nota não é tudo se os alunos não fizerem a sua parte prática diante do que aprende na escola, por isso eu não tenho problema em tirar nota baixa ou ser primeira de turma”. Dessa forma, ela foi conseguindo uma proeza pra uma criança de dez anos: ser uma líder de turma naturalmente, embora sem ter a noção exata do que seria isso.
Os pais desistiram de levá-la ao Psicólogo, depois que perceberam mais amiúde que sua filha era perfeitamente normal. O tempo passa e, como num passe de mágica, os ditos pais, despreparados, sentem que Clarice adolesceu. “Nossa filha já é uma moça”, comentou o pai na hora do jantar. “É. Precisamos falar com ela certas coisas de mulher, refutou a mãe”. Nem se deram conta de que a filha já menstruara, já usava sutiã e, provavelmente, já estava com namoradinho. Ouvindo essa conversa, Clarice chega, senta-se à mesa, começa a tomar café e entra na questão. Vocês estavam falando de mim não era? Bobagem. Se vocês não falam de vocês agora querem falar de mim! Os pais ficaram “beges” como se diz na linguagem da rapaziada cor de rosa. Ela, embora jovem, aprendera com a vida mais rápido do que se imaginava. Desfilou um corolário de lições aos pais que eles foram dormir sem, sequer olhar um para o outro. No fundo, Clarice disse que eles tinham um casamento por conveniência e que, por conveniência tiveram que “fazê-la” vir ao mundo.
No dia dos quinze anos dela, os pais quiseram fazer uma festa de “arromba”, mas logo ela disse que não. Preferia uma viagem, falou aos pais. No dia seguinte, seus pais chegam com uma passagem a Disney com tudo pago em uma excursão de primeira com todo luxo. Ela disse que não pediu pra ir a Disney, nem se considerava com perfil dos novos ricos que fazem isso com os filhos sempre que eles aniversariam. Os pais tentaram dissuadi-la, mas não houve acordo. Filha, mas você não disse que queria uma viagem? – Disse sim, mas desde que eu escolhesse o destino. Afinal, eu tenho até hoje escolhido meu destino sozinha, por que não agora? Quero uma viagem ao circuito histórico de Minas Gerais. Quero conhecer Diamantina, Sabará, São João Del Rei, Tiradentes e demais cidades. Os pais congelaram, mas não havia alternativa. No decorrer da conversa foi logo se adiantando: no dia dos meus quinze anos, nada de festa aqui em casa. Vou chamar meus amigos e vamos assistir a um filme – Luiz Gonzaga de Pai pra Filho, dizem ser muito bom. Depois a gente vai tomar sorvete a vontade na Free Sabor. Mas, à noitinha estarei aqui para a gente tomar o café juntos. Nessa hora eu quero meu bolo de aniversário. Só nós três, combinado? Por que você não chama sua tia, falou sua mãe. – Por que você não trata sua irmã de irmã, prefere dizer ser ela minha tia? Já pensou no dia em que eu me dirigir a você, papai, dizendo: “papai, cadê sua esposa” me referindo a mamãe? Tá bom, tá bom, retrucou o pai. A gente janta só nos três e acende suas velinhas como você quer filha! Assim fizeram. Ah, mas tô sentindo falta de uma sobremesa, disse Clarice. Não seja por isto, disse a empregada conduzindo uma torta alemã deliciosa. Após o jantar dos quinze anos da filhinha, todos se recolheram, mas Alice ficou. Sua mãe, tristíssima com o aniversário sem glamour. Ela já havia programado essa festa num cruzeiro, com direito a cascata de fogos em alto mar e com a presença de atores globais para apresentar a festa. Os burros morreram antes de chegarem a água, pensou a empregada que defendia o pensamento de clara.
Clarice apaga a luz da sala e se recolhe ao quarto. De repente um barulho no quarto dos seus pais. Ela desperta – estava adormecendo lendo um livro de Carlos Pena Filho – poeta pernambucano dos melhores de sua geração. Clarice era assim: se envolvia tanto quando lia que, dependendo da poesia ela “viajava” até dormir... Mas, desperta, correu para mais perto do quarto dos pais e ouviu que se tratava de uma discussão acalorada. Inesperadamente um grito lá de dentro sai em estampido: “Sua puta”, eu lhe mato! Era seu pai dizendo isso da sua mãe. “Se você abrir o bico eu lhe mato, já disse”! “Pois eu vou dizer e quero ver você me matar seu safado”! Temendo ser morta pelo marido, a mãe de Clara se acalma. De repente a luz do quarto se apaga e a paz parece reinar naquele recinto de intimidade do casal.
No dia seguinte, o pai de Clarice, de Claridade como ele carinhosamente gostava de chamá-la, levanta-se mais tarde. Pergunta a empregada pela esposa, mas a esposa não sabia direito pra onde ela tinha ido. Disse ao patrão que a tinha visto sair com uma blusa de frio nos ombros, uma pequena mala de viagem e me pediu pra lhe dizer que nada dissesse do seu paradeiro. Na hora do café da manhã, sentados à mesa apenas Clara e seu pai – Mamãe não levantou? – Já respondeu. – Pra onde foi? – Não sei, respondeu... Cada um sentado na frente um do outro mais pareciam dois estranhos. Clarice levanta, dá um beijo insosso na careca do seu pai e vai pra aula de Francês. Francês, perguntou o pai. Sim. Deixei a aula de inglês, na verdade eu troquei. Tchau, fui.
Clarice estudava Francês no mesmo colégio em que cursava o ensino fundamental. Suas aulas terminavam meio dia e ela lanchava com as colegas por ali. Algumas vezes acompanhava as colegas a um shopping de bairro aí pertinho, mas, 14h estava lá na sua aula preferida – a de Frances. Ela gostava tanto de estudar francês que já se interessava pela história da França. Paris, então, lhe encantava. Seu grande sonho era conhecer a Notre Dame e subir na Torre Eiffel. Esse interesse repentino pelo idioma francês até espantou a ela mesma. Belo dia ela foi à casa da sua professora pra ela lhe indicar livros de autores importantes. Lá, teve oportunidade de perguntar a professora se ela já conhecia Paris e o que mais gostou. Nem esperou a professora dizer o que mais gostava, foi logo se adiantando: ”no dia em que eu estiver lá, a primeira coisa que quero ver é o Rio Sena – ficar horas vendo aquelas paisagens bucólicas e tentar avistar a torre Eiffel, talvez no cair da tarde”... Um momento, disse a professora de francês! Tenho uma encomenda pra lhe dar. Sua mãe, sabedora do seu interesse por estudar francês, me procurou na escola pela manhã e entregou essa carta pra você. Clarice ficou como já disse, “bege”. Pegou a carta e, em silêncio, foi saindo de fininho e sequer deu tchau à professora. No primeiro taxi que passou ela foi embora pra casa. Trancada no quarto, começou, emocionada, a abrir o envelope da carta. Parecia que ela tinha tanto medo que dava a impressão que ela pudesse estar abrindo uma carta bomba. E estava mesmo. “Minha filha querida: conheci seu pai quando fazia mestrado em Paris. Por ele me apaixonei e ele por mim disse estar apaixonado. Contudo, (sempre tem um, contudo), ele morava com uma francesa que era bibliotecária na Universidade em que ele ensinava. Ela engravidou e eu só fiquei sabendo de tudo, inclusive que ele morava com ela quando a criança nasceu. Quando eu soube da verdade, decepcionada, terminei o namoro e esperei chegar o fim daquele ano pra terminar o mestrado e retornar ao Brasil. No final do ano, ele, sabendo disso, me chamou e disse que deixaria tudo e voltaria comigo pra cá, pra terrinha. Mas e a criança?. – Eu levo comigo. Quando a mãe dela soube que tinha um caso com você sumiu de casa e até hoje não tive notícias dela. Procurei na casa de uma única tia que ainda possuía, uma senhora de quase 80 anos, mas ela não sabia também do paradeiro da sobrinha. Aquela criança era você, Clararice”. Nós te trouxemos, registramos e mantivemos o nome Clarice que foi o nome que sua mãe lhe dera. Esse nome ela o pôs, segundo seu pai, em homenagem ao clarear do dia em Paris. Ela se acordava cedinho e ficava da janela do quarto vendo o dia clarear. Isso ela fazia todo dia. Foi num desses dias que seu pai chegou junto dela e perguntou o porquê de todo dia ela se acordar, ir pra janela e ficar vendo aquilo tudo. Ela disse que não sabia explicar, apenas que gostava daquele clarear lento, em que a noite era vencida pelo lindo dia que tomava conta da cidade Luz. “Se eu tiver um filho, seu nome tem que ter “claridade” no meio. E assim fez. Seu pai ainda hoje, quando eu não estava por perto lhe chamava de Claridade, lembra? Ele não fazia isso sempre porque temia que eu ainda achasse que ela não se esquecera da sua mãe. E é o que de fato eu acho. Seu pai só teve um grande amor na vida: Edite, esse era seu nome. Pronto. Agora estou com a consciência tranquila. A esta hora, quando você estiver sabendo toda sua verdade, eu deverei estar voando com destino a Santiago do Chile. Lá, deixei um grande amor que irei vê-lo e também assumir uma cadeira de professora numa Universidade de lá. Saiba que lhe amo muito, mas quando o tempo passar a gente se encontra, quem sabe?
Diante dessa avalanche de fatos, a adolescente Clara age com firmeza. Como quem, do alto dos seus apenas quinze aninhos, já imaginava que aquilo fosse acontecer? Chorou tudo que teve direito, mas logo se recompôs, pois era uma garota de um senso prático impressionante e, o que não tinha mais jeito, jeito já estava dado, pensava sempre assim.
O pai de Clarice não morria de amores por sua esposa. Por isso, fez pouco caso da separação, pois isso pra ele já era coisa por demais esperada. Antes que ele procurasse a filha para algum tipo de conversa em função do que sua mãe, em carta, lhe dissera, foi enfática: “já sei de tudo”. O problema de vocês são vocês que irão resolver. Agora eu quero saber do meu. Você, papai, vai me ajudar a encontrar minha mãe? Claro, filha, a gente vai localizá-la em Paris. Ela deve permanecer por lá, pois sempre me dizia que não moraria em outra cidade. Contudo, Clarice não ficou apenas no aguardo do pai. Entrou na internet e começou fuçar as redes sociais. Uma amiga que residia por lá, também foi solicitada a ajudar nessa busca. Certo dia, essa amiga pede para Clarice ir passar uns dias por lá, pois havia alguns bons indícios acerca do local em que sua mãe poderia ser encontrada. Pediu uma passagem ao pai e ele concordou. Clarice pega o primeiro avião daquele inicio de dezembro de 2010. Não foi difícil localizar Edite. Ela, bibliotecária de formação, fizera mestrado e doutorado e se consagrava como uma das principais autoridades em Biblioteconomia do mundo. Foi localizada através de uma associação de classe que informou estar ela lecionando numa imponente universidade francesa. Passando-se por uma aluna, não conseguiu acesso. Foi várias vezes tentar outra forma de contato, mas em vão. Quase desesperada, Clarice teve uma “luz”: conheceu uma aluna da professora Edite que lhe contou acerca de uma festa de confraternização da turma. Edite teria confirmado a presença, disse a aluna. Clarice pega o endereço, veste a melhor roupa e vai com sua amiga a essa comemoração. Clarice se sentou no restaurante com a amiga. Pediram um champanhe e ficaram observando quem chegava para a então comemoração. Havia uma mesa toda decorada, reservada para isso. A professora Edite foi uma das primeiras a chegar. “É ela, disse Clarice a sua amiga”! A amiga confirmou, pois pareciam ser irmãs gêmeas tamanha era a semelhança. “Outro champanhe”, pediu Clarice, nervosa. Pacientemente preferiu esperar um pouco até que todos os alunos da professora Edite chegassem – assim ficava mais fácil o contato, pois Clarice não sabia de que forma seria recebida por sua mãe. Quando todos os alunos já haviam sentados Clarice chega na cabeceira da mesa e, de pé, solicita um momento de atenção pois gostaria de dizer algumas palavras em nome da Universidade. Ela fez esse preâmbulo todo em francês fluente o que deixou a todos maravilhados. Foi um discurso cheio de lirismo e de lições de autoestima, causando forte impacto em todos. Antes de terminar suas palavras foi interrompida por um aluno: “Professora Edite, por que a senhora nunca nos disse que tinha uma filha”? A professora, aos prantos, levanta-se e abraça aquela para quem não havia dúvidas – era sua filha! A confraternização continuou, mas as professora Edite não se desgrudava da filha. Todos os alunos queriam saber um pouco da história e já tinha alguns rapazes de “olho” na beleza e inteligência de Clarice. No final do jantar de confraternização, mãe e filha foram conversar e raiaram o dia atualizando o “HD”. No meio da conversa entremeada por champanhe francês e patê com Baguete, um telefonema do pai de Clarice: “filha, amanhã chegarei em Paris”. Gostaria de vê-la no aeroporto. Alguma novidade? Alguma pista da sua mãe? – Não, pai, mas estou no caminho certo. Não se preocupe que amanhã estarei te esperando no Charles Degaulle. Quando seu pai adentrou no saguão do aeroporto viu logo a carinha de sua filha com um sorriso de felicidade que jamais vira. Abraçaram-se e foram jantar nas proximidades do Champs Elisè – num restaurante luxuoso famoso por suas ceias de natal primorosas. Quando adentraram no restaurante, o clima de natal tomava conta de todos. Clarice se dirigiu a uma mesa em que já se encontrava uma pessoa sentada. Mas, seu pai foi avisado que seria a amiga na casa de quem ela, Clarice, estava hospedada. Pegadinha de Clarice: era sua mãe, a ex-esposa do seu pai. Nessa hora, prefiro pedir socorro a Gal Costa: “assim se passaram dez anos, sem olhar teus olhos, sem beijar teus lábios. Assim foi tão grande a pena que sentiu a minha alma, ao recordar que tu foste meu primeiro amor. Recordo junto a uma fonte nos encontramos, e alegre foi aquela tarde para nós dois. Recordo quando a noite abriu seu manto, e o canto daquela fonte nos envolveu. O sono fechou meus olhos me adormecendo, senti sua boca linda a murmurar: abraça-me por favor minha vida. E o resto desse romance, só sabe Deus...”