MÃE DAS MADRUGADAS.
Por Carlos Sena
Aeroporto do Recife. Voo 3586 com destino a Brasília, com previsão de saída para as 5h22 minutos. Às quatro horas e trinta minutos estávamos na fila do acesso ao RX, considerando que já havíamos feito o check-in via internet. Um guarda sisudo fazia seu serviço de leitura do código de barras, mas não se via no seu rosto um sorriso sequer. Minha vez se aproximava e eu, pacientemente, fui chegando perto do acesso ao tal do RX. As pessoas que entravam ficavam sem comunicação com os que, por ventura, estivessem se despedindo ddelas. Quase ninguém se despedindo, não fosse uma senhora lá no cantinho pelo lado de fora – ali onde uma corda separa quem entra de quem fica. Discreta, enxugava os olhos contritamente. Procurei um gesto de riso em seu rosto – daqueles que se misturam entre a alegria da partida e a tristeza da separação. Procurei ver entre os que entravam, se alguém tentava, olhando pra trás, retribuir aquele gesto de despedida daquela senhora, mas não identifiquei ninguém que pudesse associar. Já na hora de adentrar propriamente dito no recinto do Raio X (o mesmo que dá acesso aos portões de embarque) dei uma olhadela em sua direção e ela, circunspeta, continuava enxugando uma discreta lágrima que saia em cada olho – dava a impressão que elas (as lágrimas) tinham combinado cair uma após a outra. O guarda continuava sisudo e eu me apresentei, fiz a leitura do código de barras e tive que, definitivamente, perder o foco daquela senhora que, certamente, sequer imaginou que alguém a observara. Pensei comigo: “se a pessoa por quem essa senhora estiver chorando foi tão incapaz de lhe retribuir pelo menos um aceno, eu, anonimamente estaria ali, simbolicamente fazendo esse papel”.
No acesso da aeronave, costumo sempre entrar por ultimo. É mais tranquilo e fico dispensado de presenciar alguns passageiros cheios de bagagens que, por comodidade, não as despacham no check-in; também alguns novos ricos que por um nada fazem confusão e se esgoelam de falar ao celular. Finalmente tenho acesso ao “corpo” do avião para localizar minha poltrona – lembro que era a 15 D, no corredor. Quando a gente não é mais passageiro da primeira viagem, perde um pouco o encanto de viajar na janela. Prefiro o corredor, mesmo sabendo que em caso de emergência o risco é de todos, mas prefiro o corredor pelo acesso rápido ao banheiro. No trajeto vagaroso em busca de localizar a cadeira, tento identificar algum rosto triste, talvez até com uma lágrima discreta escorrendo, que me pudesse fazer a relação com a senhora que ficara chorava na entrada do embarque. Nenhum rosto triste. Algumas pessoas dormiam outras liam o jornal, mais outras com o ipod ligado ou ao celular, mas ninguém que me pudesse relacionar à tristeza daquela mulher. Finalmente, encontro meu lugar e me sento, posto que o corredor tem essa facilidade. Fico matutando me lembrando da mulher, mas fui interrompido por um passageiro que ocupou a janela. Fiquei na espreita, esperando o que pudesse vir para ocupar a cadeira do meio – essa é a mais odiada por todos por motivos óbvios. Mas, pra minha surpresa, não apareceu ninguém pra me atrapalhar o pensamento que não parava de querer me colocar no lugar da senhora: seria um filho que partira pra ganhar a vida em Brasília? Ou o marido que estava partindo sem dia marcado pra voltar? Mesmo um amante que estivesse retornando para a casa da “titular”, pensei. Talvez alguém da família que estivesse indo fazer algum tratamento de saúde, mas recuei, pois Recife é o segundo polo médico do Brasil e, certamente, essa possibilidade era remota.
O avião decola. Ah, deixa essa mulher pra lá, que “cada um em seu canto chora seu pranto”, pensei. Afinal, eu devo mais me preocupar com o que vou fazer lá naquelas bandas do Planalto Central; melhor do que tá pensando numa mulher que ficou chorando, quem sabe, pela morte da bezerra? Mas, eu acho cruel colocar uma bezerra morta numa história humana de tanta sensibilidade, me puni. Afinal, partir é sempre doloroso e parece que essa é uma das piores faces do “existir como gente que pensa”. Mesmo quando a gente parte numa boa, sempre se deixa algo que pode nos entristecer ou entristecer alguém. Das partidas de amor, essas nem se fala. É dor que a gente pensa que não acaba, embora passe. Era esse o consolo que eu busquei para compreende aquela mulher que chorava por alguém que, certamente, poderia não “tá nem aí” pra ela. Ou ter tudo pra e por ela, só que eu não poderia ter essa certeza.
Senhoras e senhores preparem-se para aterrisagem, disse o comandante da aeronave. Poxa, pensei. A viagem terminou, eu estou chegando, mas não identifiquei por perto de mim ninguém que me pudesse fazer a “ponte” com o choro daquela senhora na hora do embarque em Recife.
O tempo passou, eu me esqueci do episódio, até aí tudo normal. Só que foi um esquecimento meio que “pro forma”, pois eu vez por outra, sempre que adentrava noutros voos me lembravam do episódio. Certo dia, no Distrito Federal mesmo, o avião que eu iria viajar com destino a Roma, atrasou-se além da conta. Fui a livraria e comprei um livro pra ocupar o tempo. Fui pelo título, pois não tinha em mente um livro recomendado por amigos, ou mesmo da minha predileção. Por isso fui pelo título. Gostei desse, pensei comigo e vou leva-lo, pois deve ser interessante. Tinha o seguinte título: “Mãe da Madrugada”. Comecei ler o livro na viagem e, não demorando muito quem chorava fui eu. O livro contava a história de uma mãe de um filho único. Belo dia ele diz a ela que vai embora, pois falava inglês, francês e alemão e, por dificuldade de emprego em Recife, recebera uma proposta de trabalho nos Estados Unidos. A mãe fez de tudo pra impedir, mas o rapaz não dissuadiu da ideia. No dia do embarque ele implorou a sua mãe que fosse leva-lo ao aeroporto, pois afinal, eles eram sozinhos e não poderiam se separar sem ao menos se despedir. A mão disse que não ia, porque o lugar dele era perto dela, mas ele foi. O seu ideal era ganhar dinheiro e vir buscar a mãe ou fazer dela uma “rainha”, mesmo que fosse lá, no Recife, mas com todo conforto. A mãe não quis acordo, mas ele se foi. Sozinho, adentra no avião que fazia conexão em Brasília com destino a América do Norte. Quis o destino que esse rapaz tão preparado não concretizasse seu desejo. O avião sofre uma pane e cai nas águas do mar, ainda na costa brasileira. Inconsolável, a mãe não encontrando alternativas, ficou indo todos os dias ao aeroporto do Recife, à mesma hora da madrugada (entre 4 e cinco da manhã) e no mesmo portão de embarque. Num cantinho do portão ela chorava, mas por dentro ela se despedia do filho que já não vinha mais, nem partia mais. Ela, partida, permanecia morta viva, chorando por quem não vinha e se despedindo de quem não partia. Assim, ela ficou conhecida, tal quais as mães da Praça de Mayo, como a mãe das madrugadas, no aeroporto dos Guararapes, no Recife.
Entre Recife e Brasilia, no avião, no dia 13 de novembro de 2012. A dez mil metros de altitude.
Por Carlos Sena
Aeroporto do Recife. Voo 3586 com destino a Brasília, com previsão de saída para as 5h22 minutos. Às quatro horas e trinta minutos estávamos na fila do acesso ao RX, considerando que já havíamos feito o check-in via internet. Um guarda sisudo fazia seu serviço de leitura do código de barras, mas não se via no seu rosto um sorriso sequer. Minha vez se aproximava e eu, pacientemente, fui chegando perto do acesso ao tal do RX. As pessoas que entravam ficavam sem comunicação com os que, por ventura, estivessem se despedindo ddelas. Quase ninguém se despedindo, não fosse uma senhora lá no cantinho pelo lado de fora – ali onde uma corda separa quem entra de quem fica. Discreta, enxugava os olhos contritamente. Procurei um gesto de riso em seu rosto – daqueles que se misturam entre a alegria da partida e a tristeza da separação. Procurei ver entre os que entravam, se alguém tentava, olhando pra trás, retribuir aquele gesto de despedida daquela senhora, mas não identifiquei ninguém que pudesse associar. Já na hora de adentrar propriamente dito no recinto do Raio X (o mesmo que dá acesso aos portões de embarque) dei uma olhadela em sua direção e ela, circunspeta, continuava enxugando uma discreta lágrima que saia em cada olho – dava a impressão que elas (as lágrimas) tinham combinado cair uma após a outra. O guarda continuava sisudo e eu me apresentei, fiz a leitura do código de barras e tive que, definitivamente, perder o foco daquela senhora que, certamente, sequer imaginou que alguém a observara. Pensei comigo: “se a pessoa por quem essa senhora estiver chorando foi tão incapaz de lhe retribuir pelo menos um aceno, eu, anonimamente estaria ali, simbolicamente fazendo esse papel”.
No acesso da aeronave, costumo sempre entrar por ultimo. É mais tranquilo e fico dispensado de presenciar alguns passageiros cheios de bagagens que, por comodidade, não as despacham no check-in; também alguns novos ricos que por um nada fazem confusão e se esgoelam de falar ao celular. Finalmente tenho acesso ao “corpo” do avião para localizar minha poltrona – lembro que era a 15 D, no corredor. Quando a gente não é mais passageiro da primeira viagem, perde um pouco o encanto de viajar na janela. Prefiro o corredor, mesmo sabendo que em caso de emergência o risco é de todos, mas prefiro o corredor pelo acesso rápido ao banheiro. No trajeto vagaroso em busca de localizar a cadeira, tento identificar algum rosto triste, talvez até com uma lágrima discreta escorrendo, que me pudesse fazer a relação com a senhora que ficara chorava na entrada do embarque. Nenhum rosto triste. Algumas pessoas dormiam outras liam o jornal, mais outras com o ipod ligado ou ao celular, mas ninguém que me pudesse relacionar à tristeza daquela mulher. Finalmente, encontro meu lugar e me sento, posto que o corredor tem essa facilidade. Fico matutando me lembrando da mulher, mas fui interrompido por um passageiro que ocupou a janela. Fiquei na espreita, esperando o que pudesse vir para ocupar a cadeira do meio – essa é a mais odiada por todos por motivos óbvios. Mas, pra minha surpresa, não apareceu ninguém pra me atrapalhar o pensamento que não parava de querer me colocar no lugar da senhora: seria um filho que partira pra ganhar a vida em Brasília? Ou o marido que estava partindo sem dia marcado pra voltar? Mesmo um amante que estivesse retornando para a casa da “titular”, pensei. Talvez alguém da família que estivesse indo fazer algum tratamento de saúde, mas recuei, pois Recife é o segundo polo médico do Brasil e, certamente, essa possibilidade era remota.
O avião decola. Ah, deixa essa mulher pra lá, que “cada um em seu canto chora seu pranto”, pensei. Afinal, eu devo mais me preocupar com o que vou fazer lá naquelas bandas do Planalto Central; melhor do que tá pensando numa mulher que ficou chorando, quem sabe, pela morte da bezerra? Mas, eu acho cruel colocar uma bezerra morta numa história humana de tanta sensibilidade, me puni. Afinal, partir é sempre doloroso e parece que essa é uma das piores faces do “existir como gente que pensa”. Mesmo quando a gente parte numa boa, sempre se deixa algo que pode nos entristecer ou entristecer alguém. Das partidas de amor, essas nem se fala. É dor que a gente pensa que não acaba, embora passe. Era esse o consolo que eu busquei para compreende aquela mulher que chorava por alguém que, certamente, poderia não “tá nem aí” pra ela. Ou ter tudo pra e por ela, só que eu não poderia ter essa certeza.
Senhoras e senhores preparem-se para aterrisagem, disse o comandante da aeronave. Poxa, pensei. A viagem terminou, eu estou chegando, mas não identifiquei por perto de mim ninguém que me pudesse fazer a “ponte” com o choro daquela senhora na hora do embarque em Recife.
O tempo passou, eu me esqueci do episódio, até aí tudo normal. Só que foi um esquecimento meio que “pro forma”, pois eu vez por outra, sempre que adentrava noutros voos me lembravam do episódio. Certo dia, no Distrito Federal mesmo, o avião que eu iria viajar com destino a Roma, atrasou-se além da conta. Fui a livraria e comprei um livro pra ocupar o tempo. Fui pelo título, pois não tinha em mente um livro recomendado por amigos, ou mesmo da minha predileção. Por isso fui pelo título. Gostei desse, pensei comigo e vou leva-lo, pois deve ser interessante. Tinha o seguinte título: “Mãe da Madrugada”. Comecei ler o livro na viagem e, não demorando muito quem chorava fui eu. O livro contava a história de uma mãe de um filho único. Belo dia ele diz a ela que vai embora, pois falava inglês, francês e alemão e, por dificuldade de emprego em Recife, recebera uma proposta de trabalho nos Estados Unidos. A mãe fez de tudo pra impedir, mas o rapaz não dissuadiu da ideia. No dia do embarque ele implorou a sua mãe que fosse leva-lo ao aeroporto, pois afinal, eles eram sozinhos e não poderiam se separar sem ao menos se despedir. A mão disse que não ia, porque o lugar dele era perto dela, mas ele foi. O seu ideal era ganhar dinheiro e vir buscar a mãe ou fazer dela uma “rainha”, mesmo que fosse lá, no Recife, mas com todo conforto. A mãe não quis acordo, mas ele se foi. Sozinho, adentra no avião que fazia conexão em Brasília com destino a América do Norte. Quis o destino que esse rapaz tão preparado não concretizasse seu desejo. O avião sofre uma pane e cai nas águas do mar, ainda na costa brasileira. Inconsolável, a mãe não encontrando alternativas, ficou indo todos os dias ao aeroporto do Recife, à mesma hora da madrugada (entre 4 e cinco da manhã) e no mesmo portão de embarque. Num cantinho do portão ela chorava, mas por dentro ela se despedia do filho que já não vinha mais, nem partia mais. Ela, partida, permanecia morta viva, chorando por quem não vinha e se despedindo de quem não partia. Assim, ela ficou conhecida, tal quais as mães da Praça de Mayo, como a mãe das madrugadas, no aeroporto dos Guararapes, no Recife.
Entre Recife e Brasilia, no avião, no dia 13 de novembro de 2012. A dez mil metros de altitude.