Erro, tristeza, perdão e outros conceitos.
- Eu errei.
- Errou sim. E errou feio.
- Eu sei...
Era difícil olhar em seu rosto. Sabia que era impossível para ela olhar no meu, por nojo, por despeito, por incredulidade, até... Era difícil aceitar aquilo. Já eu... Não conseguia olhar em seu rosto por motivos bem diferentes. Por culpa... Por vergonha... Mas acima de tudo, por saber que aquela boca, a qual eu me deleitava em ver sorrindo, agora me fitava retorcida de repulsa. Isso eu não conseguia aguentar.
- Me perdoa...
- Não.
Vê-la virando as costas e indo embora era ainda mais doloroso. Por Deus, como eu podia tê-la magoado tanto? Magoado alguém por quem eu mesmo daria corpo e alma para não ver triste?
E por um momento, eu penso em tudo o que havíamos passado até ali. Tanta coisa... Tanta coisa pra lembrar, tanta coisa boa, tão pouca coisa ruim, mas mesmo assim ela se afastava, e tudo o que eu podia ver eram suas costas. Tanto... E tudo em vão.
Volto para casa cabisbaixo. Impressionantemente, em cada esquina eu vejo casais indo e vindo, alguns rindo, alguns de mãos dadas, outros sentados em mesas de cafés se beijando, ou simplesmente olhando um para o outro. É cruel saber que o Universo nunca vai deixar de querer te derrubar... Depois de tantos anos esperando por aquela chance de fazer tudo dar certo, lutando contra esse mesmo Universo ao lado dela, eu mesmo ser o imbecil que atira no próprio pé. Irônico... De uma ironia particularmente dolorosa.
Ao chegar em casa, vou diretamente à prateleira da adega. Pego a garrafa de Jack Daniel's já pela metade e preparo uma dose generosa, já que minha sorte não me concedeu generosidade. Nesse momento, quando já estou pronto para levar o copo à boca e começar a noite de bebedeira que, pensava eu, me faria esquecer de toda aquela situação, é que aconteceu a mágica.
Na verdade, foram vários fatores que se juntaram ali. Primeiro, eu olhei para o rótulo do whisky. Instantaneamente, parei com o copo já tocando meus lábios, e lembrei do quanto ela havia gostado daquela camisa que eu havia comprado pouco tempo atrás, e que eu havia feito invejinha com ela. Com um leve sorriso, fecho os olhos e sinto as lágrimas chegarem quentes. Penso no beicinho que ela fazia sempre que eu fazia algo do tipo... Era lindo, tão lindo... Ela poderia conseguir qualquer coisa de mim com aquele beicinho.
Ao abrir os olhos, vejo a minha mochila largada a um canto. Na alça, um smiley ensanguentado sorri para mim. Novamente, as lágrimas correm aos olhos, e dessa vez é difícil segurar. Lembro de todos os momentos discutindo como duas crianças sobre aquele tema, concordando e discordando, mas sempre rindo muito no final, e sorrindo um pro outro... Afinal de contas, Watchmen sempre foi nosso item de cultura pop favorito.
Lentamente, me aproximo da mochila. Abro-a devagar, e lá dentro, vejo o envelope amarelado dos Correios com os nossos nomes escritos, um de cada lado. Dentro dele, haviam uma folha de pautado, uma cartinha menor, uma caixa com fundo falso e um presentinho nesse fundo falso. O que cada uma dessas coisas continham, primeiramente, era o cheiro. O cheiro de cereja, de coisas boas, o cheiro de lembranças, de perfume, de sorrisos, o cheiro de amor... E depois, os significados. Cada letrinha escrita no pautado, cada letrinha escrita na cartinha, e cada fiozinho de renda no presentinho tinham seu significado. E então não consegui mais me segurar. Chorei, chorei como criança, gemendo o nome dela e me martirizando pelo que havia feito.
Foi então que a mágica realmente surtiu efeito. Em um segundo, eu não chorava mais. Só havia determinação na minha mente, e nos meus olhos. Agarrei a mochila, coloquei dentro a camisa, juntamente com o bottom, e saí correndo de casa. Com sorte, ainda a encontraria no calçadão da praia, onde havia deixado-a ir.
Nunca corri tanto na vida. Não me importava com o suor, com as pessoas olhando assustadas, não me importava com nada. Tudo o que importava estava naquela bolsa, e também estava me esperando naquele calçadão. Olhava ao redor como louco, procurando, mas a orla era grande, e ela parecia se esconder de mim.
Começaram então as imagens na minha cabeça. Será que ela realmente não me quer mais? Aqueles caras que a rodeavam vão agora ter chances de tomá-la de mim? Aquilo me deixou ainda mais frenético. Agora eu sabia como ela se sentia, como devia ter doído para ela. Era mais uma coisa pela qual eu devia desculpas, pensei.
Nessa correria, fui do comecinho da Beira-Mar e percorri boa parte da praia de Iracema, ainda sem sinal dela. Já devia estar de língua de fora de tanto correr, mas não conseguia parar para descansar. Eu precisava encontrá-la, precisava me jogar de joelhos aos seus pés e dizer que eu faria qualquer coisa para tê-la de volta. Qualquer coisa.
Foi então que eu pensei no mais lógico: ela estava triste... Logo, devia estar na casa da Tafnes. Me dirigi para lá no ato, esperançoso. Era um tanto longe, ainda que fosse uma linha reta, mas tive que antes passar pelo Centro até chegar na Fátima. Já estava molhado de suor quando finalmente toquei a campainha.
Quem atendeu foi uma figura que eu não via a muito tempo. Morena, cabelos cacheados e soltos pelas costas e um olhar de reprovação que me bateu com força na cara.
- O que você quer?
- Ela te contou?
- Óbvio, né?! Século XXI, meu amor, SMS, conhece?
- Eu tô arrependido, Taf. Preciso falar com ela.
- Não acho que ela esteja muito a fim de falar contigo.
- Cê não entende... Eu PRECISO falar com ela.
- Bem, veio ao lugar errado, ela não tá aqui.
- Não...?
- Não, e não me pergunte onde. Se soubesse, não diria.
Acho que não fiquei surpreso de tomar uma porta na cara. Não se pode dizer que eu não mereci... Mas não havia tempo pra autopiedade, eu precisava encontrá-la. A Marynna morava mais longe, mas não custava ligar.
- Alô?
- Marynna?
- Quem é?
- Você não sabe?
- Sei, mas tô pra acreditar que você ainda tem a cara-de-pau de ligar.
- Eu preciso vê-la pelo menos mais uma vez. Não posso obrigá-la a ficar comigo depois disso, mas preciso dessa vez.
- Boa sorte então, eu não posso te ajudar.
- Ela não está aí?
- Não.
Onde ela estaria? Não com a Claryce, elas não eram tão próximas... E com certeza não com a Camila. Tentei novamente ligar, e novamente a mulherzinha irritante da operadora insistia em me dizer para deixar recado.
Mas eu não desistiria. Reviraria aquela cidade até encontrar, mesmo que levasse o dia todo.
Foi então que me lembrei. É CLARO, ELA SÓ PODIA ESTAR LÁ!
Eram duas da manhã, e isso me fazia ter ainda mais certeza de que a encontraria lá. Dessa vez peguei um táxi, precisava ser rápido.
Entrei pela portinha do bar mais ou menos às duas e meia. Era um lugarzinho temático, um ambiente aconchegante, mas eu não parei para olhar a decoração. Fui até o reservado, e encontrei.
Ela vestia uma blusa branca, shortinho jeans, e uma maquiagem já borrada pelas lágrimas. Mas seus lábios ainda estavam vermelhos... Vermelhos como sempre, mas dessa vez não me encaravam com repulsa, e sim com tristeza e surpresa.
- Como você me achou?
- Eu procurei.
- Onde?
- Por todos os lados.
- Mas são duas da manhã...
- Não importa. Eu não podia esperar mais.
- Queria esquecer você.
- Não vou deixar você me esquecer.
- Como?
- Assim.
De repente, eu sabia o que fazer. Segurei-a contra mim, e lhe dei aquele que provavelmente foi o beijo mais necessitado, mais ardente e apaixonado de todos os que eu já pude dar. Ainda que a princípio ela tentasse me afastar, logo também não resistiu e me puxou contra si, e ficamos nessa por mais tempo do que eu poderia contar. Aquele momento parecia não acabar... Levantei-a do chão, sentei-a na mesa a puxei ainda mais contra mim, de modo que quase não pudéssemos mais diferenciar um corpo do outro. As pessoas ao redor olhavam com espanto, algumas com sorrisos de canto de boca, outras até mesmo com desaprovação, mas nós não víamos mais nada exceto um ao outro. De olhos fechados, mas de coração aberto.
Quando finalmente afastamos nossos lábios, eu tirei da bolsa o smiley e prendi-o na blusa dela. Ela me olhou, sorrindo, e disse:
- Eu sabia que você viria.
- Nunca conseguiria ficar longe.
- Ainda não te perdoei.
- Não tenho pressa.
Foi nisso que puxei dois anéis do bolso e coloquei um deles no seu dedo. Quase que imediatamente, ela recomeçou a chorar. Eu disse:
- Eu te amo. Sempre vou te amar. Sei que errei, sei que vacilei, mas meu sentimento nunca foi nem será mentira. Quero que tenha tudo o que eu amo, porque você vale ainda mais que tudo isso. Você é nada menos que tudo pra mim, Isabelle. Quero ter você do meu lado, para sempre. Aceita?
- Aceito.
E o resto, meu amigo... É história.