UMA FOTO EM PRETO E BRANCO
Sempre pedia que, se pudesse, arrumasse o próprio quarto, Charles, meu netinho lindo. Doze anos, completando treze no fim do ano, mas o menino era como todos os meninos, sabia Helena, assim como fora Israel seu filho, até mesmo Jennifer que sendo mulher, fora sempre uma menina assim descuidada, gostava de encontrar as coisas prontas para ter o seu tempo. Invadindo o quarto do neto, afinal ele estava na escola esta hora, ela tinha aquele momento de folga, o marido, já há anos aposentado, à toa por ai pelas ruas, ou ali mesmo no playground do edifício.
O quarto parecia entregue a certa penumbra, as cortinas e a janela cerrada, e por isto ela acudiu em abrir, deixar que a luz do sol irradiasse, revelasse as paredes claras repletas de pôsteres de bandas de rock, filmes; roupas amarfanhadas pelo chão, um pé de tênis aqui junto à cômoda e outro lá junto à cama quase debaixo dela. A cama desfeita, revistinhas em quadrinhos jogadas sobre ela. Ela precisava ser rápida. A mulher que fazia a limpeza geralmente chegava as dez, não era sempre, mas aquele era seu dia. Reclamara da outra vez, assim mesmo lançando os olhos sonsos para a porta do quarto cerrada, Não arrumei o quarto do menino, pois estava fechada, e eu não pude entrar né. Mas oras, quem disse que era para ela arrumar o quarto do garoto, não, não, pensou Helena depois, não sem um pouco de raiva, sentada a sua escrivaninha a sala ampla, enquanto, Alfredo, seu marido, sentado em sua poltrona junto à porta, lia o jornal, e os dedos de Helena segurava imprecisa a caneta cor de ouro que deveria agir implacável sobre as provas discursivas de seus alunos universitários, mas ela abria aquele sorriso seco, antigo e malicioso de mulher vivida, e seu rosto branco de súbito acometia-se de um rubor nada discreto, fazendo Alfredo levantar os olhos lentos de trás do jornal, sob as lentes de seus óculos, e se perguntar da onde vinha aquele rubor novo nascendo de um sorriso antigo e malicioso da mulher com a qual vivia junto há mais de trinta anos.
Helena ajeitou não somente a colcha sobre a cama larga do garoto, dobrou as roupas jogadas sobre o espaldar assim como as espalhadas e amarfanhadas pelo chão, mas também não resistiu a espionar as gavetas da cômoda, debaixo do colchão, mas não fez nada além de sorrir do mesmo modo que sorrira à escrivaninha, nascendo lhe o rubor súbito, então Dona Cida queria descobrir as “coisas” do garoto, mas Helena suspirou, ajeitou como pode as mídias espalhadas em cima da TV e pela banquetinha, ficou enrolada como aquele monte de fios espalhados, o controle do Game, o radio estéreo ali pelo chão mesmo, mas ela cuidou em colocar o aparelho sobre a cabeceira. O guarda-roupa estava devidamente fechado. Tinha estampas e fotos de músicos de banda de rock em paisagens nebulosas, sombrias, enfeitando sobre todas as duas portas. Abriu-o; alguns cabides vazios pendiam soltos, e que deviam ser das roupas que antes se encontravam atiradas ao chão. Charles seguia um gosto secreto pelo gótico. Seus cabelos loiros, assim cheinhos, num crescer redondinho e a franjinha quase cobrindo os olhos, enchia-a da vaidade de ser avó dele a frente das amigas, que não resistia a apertar-lhe as bochechas, o queixo, e o menino se melindrava, afastava-se como que arredio enchendo ainda mais as senhoras de mimo. Mas ele já estava um rapazinho. Não era chegado a jogar bola o que o deixava menos popular ali no prédio, embora sua estampa por si só já lhe era grande atributo para a popularidade.
Ajeitou um ou outro cabide, preencheu os vazios com as roupas que antes se encontravam atiradas, mesmo juntou o par de tênis, conformando-os na parte inferior junto com outros. Percebeu que rasgara a calça jeans novinha, azul, assim a moda que ainda fora de Israel, e lembrou-se de Leopoldo, um amigo seu do colegial, e o rubor ardeu lhe as bochechas mais vivo e mais intenso, mas não por que tão somente se dava conta que uma peculiaridade de alguém da sua geração fosse a mesma do seu neto agora e tinha sido assim do seu próprio filho, mas por que se lembrara de um rapaz cuja lembrança agora só era de alguém quase que a mesma idade do seu próprio neto, e que se dera a conta que o tempo havia passado, mas ela ainda se lembrava, sim, e mesmo tomou do cabide nas mãos, olhou a calça, e até parecia, assim a estendendo sobre a cama, notando os rasgos entre as coxas e os joelhos da peça que até estes traços eram os mesmos. Sacudia os ombros enormemente impressionada. Seria impressionada o termo certo? Ela nem sabia o que se passava em sua fisionomia ou o que lhe assomava a alma neste estado de coisa nova, algo como perplexidade. E por que lhe veio a lembrança de Leopoldo? É por que ele era o rapaz mais estranho da sua juventude, na vanguarda, passava viajando as férias no exterior com os pais, usava os cabelos compridos como os Beatles, e ela não passava de uma garota tímida, cheia de modos, buscando decência, conversas dignas de uma moça, sim, mas Leopoldo sempre tinha aquele olhar para ela, mas ela nunca falara de Leopoldo para ninguém, nem mesmo para Alfredo, na verdade Helena aprendera esquecê-lo, mas de súbito com a visão daquela calça jeans rasgada do seu neto vinha lhe a recordação de Leopoldo. De que ele fora importante para ela, mas que entre os dois sempre houve o silencio e a distancia, era apenas aquele olhar de soslaio, o dela assustado, protegendo seus cadernos e livros contra o seio, entre as amigas burguesinhas, era o termo que com certeza ele se referia a ela e suas amigas, mas não era ele também burguês, viajando sempre para o exterior enquanto a maioria do país vivia abaixo da linha da pobreza. Mesmo ouvira sua irmã Yolanda contar certa vez, Helena, o Leopoldo é filho de um grande comerciante aqui de Pelotas, e pouca importância ela demonstrou, embora tivesse curiosidade jamais quis dar o braço a torcer para fazer indagações. Leopoldo, Leopoldo, quem era Leopoldo? Mas mexera com o coração dela um bom tempo, mesmo lhe desviara do sono tão tranquilo, da concentração em álgebra ou da divertida leitura de um romance de Jane Austen.
Pegou a calça, os lábios levemente franzidos, pendurou-a sobre o cabide devolvendo-a ao armário, fechando a porta. Bom, nada tinha assim tanto haver, afinal Leopoldo devia ter uns dezesseis anos, e de nada parecia com Charles, fora apenas aquela calça jeans rasgada que ele teimava em aparecer nas aulas, desrespeitando as regras rígidas daquela escola tradicional e paga, mas o pai dele pagava bem, e acho que todos os professores eram obrigados a aturar a certa indisciplina de Leopoldo.
Fechou a porta do quarto do neto, e chegando a sala deu um profundo suspiro. As janelas abertas para um dia claro, os moveis austeros e elegantes exibiam o gosto conservador da senhora de cabelos loiros que ali estava, os braços cruzados sobre o peito, empertigada, admirando o recorte azul do céu. Acudiu em dirigir-se ao próprio quarto, e mergulhada na atmosfera de ordem, penumbra e perfume que se encontrava o cômodo, Helena lançou um olhar em conflito para ultima gaveta da cômoda. Ali guardava em uma antiga pasta preta. Pegou-a por baixo de algumas outras mais usadas de outra cor, ficou a alisando como se perguntando se devia, seria mesmo que o tempo havia acostumado. Mas por que agora aquilo, era seu coração aflito, pois havia se passado tantos anos, e tantos anos aquilo morto dentro de si, até ontem a noite era como se nem existisse, e embora seu coração batesse tão forte, a veia pulsasse forte nos punhos, Helena parecia estar vivendo em algo que começava agora, algo novo consigo mesma de um fato que ocorrera no passado.
Sentou-se na cama, assim mesmo na penumbra das janelas fechadas, as cortinas claras e cerradas, com a pasta entre os joelhos, já aberta. Cadernos antigos, a capa amarelada assim como as folhas de seu miolo, canetas já sem tinta, livros didáticos – hoje obsoletos – do tempo em que estudara no ginasial; o volume de Jane Austen, sim Orgulho e preconceito , livro de cuja historia ela conhecia de cor, pois o lera e relera; aquela capa colorida, de uma estampa antiquada como feita a giz de cera, o cheiro meio embolorado de coisa antiga, e dentro dele bem ao meio... Helena abriu um sorriso tremulo de lábios franzidos, quase deixou a pasta escorregar de sobre seus joelhos, e logo afastou esta sobre a cama, e pondo-se de pé com a fotografia na mão, indo em direção a janela envidraçada, afastando as cortinas, trazendo irradiação de luz matutina para dentro do quarto. A fotografia era antiga em preto e branco, mas era de rosto até os ombros, assim como quem pousa para documento. Os cabelos compridos, escuros, ou seriam claros, aloirados, a foto em preto e branco impedia a revelação, tinha que contar com a memoria, mas engraçado, assim franzindo os lábios numa careta emocionada, Helena acreditava que eram cabelos escuros, não estava bem certa. Podia ser lembrar bem do ar petulante, bonito, atrevido, moleque de Leopoldo, seu ar de desdém ao olhá-la assim de soslaio, mas não conseguia ter a certeza absoluta se seus cabelos eram mesmo escuros ou se era mais para claros. Mesmo aquela foto, só por que ela tão certa sabia que era uma fotografia dele, mas não se recordava dele assim como naquela foto, aquele nariz aquilino num rosto anguloso, os cabelos um pouco compridos – disto se recordava bem – se botasse em cores aquela fotografia talvez ficasse até parecido com Charles, seu neto.
Levando a fotografia ao seio, admirando o “lá fora” como se dentro de um aquário, Helena pegou-se a refletir, pensando se Leopoldo ainda estaria vivo, se talvez fosse avô, sabe-se lá. Não conseguia imaginá-lo velho, assim como ela, e o tão engraçado é que em sua mente se via a mesma de agora observando de um canto escondido o rapaz atrevido que ele fora, sempre fingindo ignorá-la. Mas se recordava bem como conseguira aquela foto, e se lembrando disto suas bochechas enrubesceram como se tomada de calor de súbito. Todos haviam tirado fotografias individuais nos últimos dias de aula do fim do colegial, com um fotografo que viera a escola com esta intenção. Tiraram grupos juntos, com professores, toda turma, e aquela fotografia individual. Acontece que Leopoldo nunca reclamou nenhuma fotografia, assim ela soube, e aquela veio parar em sua mão por intermédio de uma amiga, que ela ainda tinha noticias e vivia em Portugal com o marido, mesmo Helena recebera dela há poucos meses o convite para ir a Portugal, passar uns dias em sua residência em Lisboa, e dissera ela com a voz machucada, Heleninha não repare em minha pessoa, os anos mexeram bastante comigo. Os anos mexeram bastante com sua grande amiga Beatriz, e de que maneira, perguntava-se, não a via há cerca de quase trinta anos, mas reatara o contato por meio da internet com o auxilio de sua filha Jennifer que era sempre bem antenada com estas coisas, mesmo seu netinho Charles. Mas por que Beatriz deixara com ela aquela fotografia, foi se lembrando do queixo duro dela naquele dia, num ricto amargo de desdém, Você acha este patife bonito, Heleninha, então fica com esta foto dele, ele me deu, mas não quero fotografia deste patife. Como não pude me perguntar, acho que nunca, inquiriu-se, voltando a sentar na cama, tonta, admirando a velha fotografia novamente, ele e Beatriz namoravam, mas éramos tão amigas, mas tão pouco abertas uma com a outra assim como acontece com Jennifer, com os jovens de hoje. Quase nunca falávamos de namorado, mas do que falávamos, perguntou-se assustada, reconhecendo um hiato como um grande abismo em sua vida, como se ela precisasse buscar dados que a levasse a realidade da própria existência, e certo tremor assomou-lhe as faces, mesmo tornou-se lívida, paralisada, como se descobrisse que de repente sua existência era um fatal engano, ou que ela corria risco na eminencia de um presente que na verdade estava escondido num futuro obscuro.
Guardou a fotografia dentro do livro, respirando fundo, ainda tremula, um pouco desnorteada, desconsertada, quase não reconhecendo a estranha luminosidade que refletindo no vidro cristalino da janela aquarelava as paredes do quarto, mesmo os moveis tingiam-se de uma claridade matizada. Parecia acordando-se em pleno mundo novo. Mas embora desabada, um pouco destruída por dentro, pois não se reconhecia e se desconhecia agora, era preciso voltar o quanto antes, sacudir a própria alma machucada, agora magoada, assim como agia rápida e esconder aquela pasta preta na gaveta ultima daquela cômoda, e abandonar aquele quarto. Torceu o nariz, mas sua pele arrepiava-se, seus leves pelos dos braços se eriçavam, e a acudiu o toque do interfone. A voz do outro lado anunciava, Sou eu, dona Helena, a Cida, hoje é dia de cuidar da cozinha, hem. Helena sorriu grandiosamente, suspirando, ainda revolvida e machucada, mas o que era demais? Cida subia pelo elevador, pois a escada era cansativa para ela, cumprimentava-a com a cerimonia e polidez de uma boa empregada para a bondosa patroa, e Charles não demorou pouco chegou assim arfante, largando a mochila no sofá, beijando-a, trazendo um amigo com ele, um garoto moreno, cabelos crespos e alvoraçados e compridos, que se mostrou tímido num ricto de riso meio irritante, e ela teria que voltar para Faculdade, tinha aulas a ministrar as seis da tarde, e era preciso chegar com antecedência, pois gostava de influenciar nos assuntos da gestão, sempre pediam sua opinião. Era um renome seu nome, o que havia de ferida que a destruísse, pois não havia sombra de duvidas sobre sua retidão, algo que maculasse seu nome, a importância que ele tinha, embora existissem muitas Helenas, ela era aquela, que aos sessenta anos quase ainda ministrava aulas e palestras em faculdades, depois de anos lecionando em escolas publicas, dinâmica, profissional e objetiva, ela não se aferroava a passado, a efeméride de um cotidiano cheio de artificialidade e colorido. Ela era como aquela fotografia em preto e branco, dizia algo dentro de si, mas fungava, empertigando-se a frente de uma sala ampla, iluminada e plena de jovens curiosos para saber, alcançar, dados, ocultos, mas todos pretensiosos e de queixo caído pela determinação augusta que já revelava seu semblante num sorriso profissional e discreto, mas um sorriso, e na fronte ora séria presa em uma ruga e ora aberta num tom modesto e cheio de reserva escondia-se o atrás do pensamento numa face fotografada, sem cor, guardando a ambiguidade das revelações que se amarelavam como as paginas do livro que o cerrava e o escondia, e com o próprio coração levaria aquele silencio para o tumulo.
Rodney Aragão