Manuela

“Tira a mão de mim”.

Não foi “bom dia” que você me disse, foi simplesmente “tira a mão de mim”. Só que, para minha infelicidade, eu não tinha ouvido direito, e me aproximei ainda mais. Você gritou e desfez-se do meu aperto em seu ombro. Logo se levantou em polvorosa e ficou buscando pelo quarto seus pertences. O vestido todo amassado como se estivesse preso há três dias enfiado em uma garrafa caiu sobre seu corpo como uma pluma. Os sapatos estavam escondidos cada um em uma parte na penumbra. Enquanto os buscava, ia alisando os cabelos emaranhados, tentando colocá-los no lugar para aparentar-se como moça decente. D

Pulseiras tiritando eram postas no pulso esquerdo. Os brincos longos, cheio de pedrinhas coloridas e brilhantes estava em minha cômoda, ao meu lado. Você foi buscá-los e sequer direcionou os olhos a mim. Estava como se possuída por uma raiva pontiaguda. Se a tocassem, era certo o machucado, a angústia.

Um sapato encontrado debaixo da cama. O outro ao lado do sofá. Saiu colocando-os, buscando equilíbrio em cada pé. Desta vez, praguejava por não saber onde estava o casaco vermelho. Eu o sabia, tinha pendurado dentro do armário junto aos meus ternos para que não se amassasse, mas eu não ia dizer. Não tinha a menor obrigação. Você sacudiu toda a roupa de cama mesmo comigo ainda deitado e claramente incomodado. Eu queria saber por que você não era uma mulher normal que se levantava como uma dama recém-apaixonada, abraçando o outro e festejando por mais um dia. Mas não. Depois revirava todo o quarto e mexia na roupa deixada no banheiro. Por fim, mesmo com a brisa fria da manhã, pegou a bolsa e saiu sem se despedir. Eu pensei que você fosse morrer congelada na rua.

Era o seu tipo de comportamento estranho que me intrigava. Chegava em casa sempre igual a uma gata de olhos imensos brilhando piedade pela carência. Ouriçava toda a pele e grunhia, misturando-se a mim, mergulhando em meu peito como se quisesse penetrar a alma com o próprio corpo em fricção.

Ah, Manu, nem sei quantas vezes eu perdoei o que jamais teria salvação. Você era terrível e bela, mas sua bondade vivia guardada no fruto da minha imaginação. Sua essência advinha de sorrisos maléficos e seu gozo principalmente das fortunas que jogávamos pela janela. Minha vida sem graça viu em você uma ilusão perfeita, era olhar para você e me maravilhar como se estivesse abaixo de gigantescos arabescos.

Você foi embora sem me dar motivo e eu não sei até hoje quantas vezes isto se repetiu. Foram várias. Vivia tão longe de mim e eu nem sabia com qual jeito você se punha à rua tão corrida. Eu não quis olhar para fora. Fiquei deitado mais uma meia hora com os olhos vidrados na porta do armário que guardava seu casaco pendurado. Dias seguiam que eu me pegava respirando fundo o perfume daquele pano. Nunca mais devolvi. Era a única coisa sua que era devidamente minha.

Dias passaram e eu planejava minha mudança para outra cidade, o quanto mais distante fosse, mais impossível ainda de ser encontrado. Comecei a entender pela milésima vez que você era uma doença, uma espécie de câncer que vinha me consumindo. Uma tremenda louca sem noção dos valores da vida e sem compreensão alguma da boa educação. Falsa e fingida. Manuela da gritaria aguda em meu portão, da choradeira descompassada e do riso diabólico quando saciada. Não mereço isto mais.

Recebo o telefonema de Jonas, meu amigo quase irmão, que diz que o vizinho está de mudança para o exterior e quer alugar o apartamento. Eu já aceito sem ao menos olhar as condições do lugar. Abraço Jonas como minha glória e a alegria de desencanar duma vida cheia de tumores a estourar. Manuela estava de mim longe, em seu devido lugar.

Eu sento ao lado do amigo e conto, tento resumir, no que tinha se transformado minha vida desde que conheci Manu sentada numa praça lendo o meu livro favorito. “Desculpa incomodar, mas este autor muito me agrada!”. A moça do cabelo cacheado em tons de castanho, marrom, bronze e dourado ergue o rostinho pequeno e prontamente sorri enquanto me analisa da ponta dos sapatos italianos até o chapéu argentino. Responde ao meu comentário com “E eu acho o senhor muito bonito.”. Pronto, temos aí, Jonas, o início de uma saga a qual luto pela devolução da minha vida. Jonas está desacreditado e pensa que isso é coisa de homem abobado e principalmente sem brios. Deve ser.

Manu roubou minha vida com os olhos esverdeados. Manu a devorou com a boca carnuda. Manu a triturou com a ponta dos dedos e depois pisoteou com o pezinho 34. Era admirável seu bom gosto pelas coisas e falava com tanta desenvoltura como se não tivesse vergonha de nada. Suas vontades eram prontamente atendidas e ai de mim se me fizesse de desentendido. A filhote de tigre punha a se chamuscar toda, a rasgar-se inteira, a dizer atrocidades, a pôr-se nua na janela. Gritar aos quatro ventos o quanto era desgraçada.

“O que você quer, Manuela?”.

“Ah... quero você! É isto, você!”

“Além disso, sei bem que não é só isso...”

“Primeiro, quero que fique aqui. Depois nos entenderemos.”

Nem cinco minutos que eu estava pronto para o trabalho, a devoradora de lampejos arrancava-me cada peça devidamente passada e jogava pelos ares como se não existisse o dia, e algumas vezes, o amanhã. Todo nu, gritava para que a tocasse, depois para que a mordesse, em seguida amarrava-me, deitava-se em cima de mim toda vestida com seus casacos de inverno enquanto eu mal conseguia mover o pescoço. Abria a janela e o vento me cobria. Era maldita. Beijava todo meu entorno e desacelerava a língua quando lhe convinha. Eu tremia. Depois ficava me olhando. Examinava cada parte de mim. Puxava a poltrona de frente para a cama e quando percebia que eu não tinha mais forças, ah, Manu se ria toda. O riso era vindo direto do inferno. Era ali que morava seu prazer hermético.

Mas você, Manuela, era movida pelos adereços de sua vaidade. Vaidade essa que encobria uma vida miserável que bravamente me era escondida. Como se eu me importasse, menina. Tolo de mim que fui mandar entregar rosas em seu endereço. Apareceu lá em casa com as flores todas despedaçadas e jogou todas em cima de mim. Atingiu a minha cara com tanta força e rapidez que eu mal pude me deter e alguns espinhos e folhagens acertaram-me as vistas.

Fiquei sem poder abrir os olhos, mas tentei buscar-te com as mãos. “Manuela, ajuda-me, meus olhos ardem!”. Você continuava a dizer o quanto meu abuso custara-lhe a paz. Quem tinha me dado ordens de enviar presentes, que despautério era aquele? “Manu, pelo amor de Deus, não consigo abrir os olhos.”. Desde então, acho que ainda tenho aquela sujeira toda nas vistas, pois ainda me dói. “Tenho outro melhor que você. Não mande mais estas porcarias para minha casa, traste!”. Mantive aquela cegueira por muitos anos enquanto perdoava cada absurdo vindo de sua parte. Minhas vistas sangravam a cada vez que se arrancava o vestido e caminhava despida sem escrúpulos pela casa.

Quando bebia era a própria encarnação da maldade. O corpo nu era a exaltação da nobreza em sem pleno desrespeito para com os pobres de alma como eu. Ah, como meus olhos doíam, Manuela! Mas você os beijava demoradamente a cada crepuscular, a cada alvorada. Beijo molhado, boca aberta, saliva grossa e pegajosa. Grudava-me.

Jonas me pergunta qual era o verdadeiro encanto deste ser repugnante, pois veja bem, nem de mulher podemos chamar tal atrocidade. O encanto era a pele branca macia, os seios pequenos e pontudos todo adornado por sardas avermelhadas e miúdas. As mesmas sardas espalhadas pelo ombro levemente rosado. As costas cheias de pintas de todas as formas e tamanhos. Uma cicatriz dos tempos de meninice na cintura. Era um encanto as pernas firmes de moça, tão mais brancas que o corpo todo que deixavam transparecer as veias azuladas quase saltadas. O pezinho de criança que eu tanto gostava de beijar.

Encantado era o pescoço escondido sob aqueles fios volumosos! A cabeça linda cheia de brilho nas miras. Tinha voz grave e sabia mandar. A boca enorme era tão boa para maldizer-me, assim como me amar. Não importava. Era bonita quando possessa, era bela quando carecia de abraço. Quando bem entendia, sabia ser santa, sabia ser bandida.

Comprei-lhe quase todas as roupas que a vi usando nos últimos cinco anos. Troquei todos os seus sapatos. Perfumes vindos de Paris, ela tinha quase todas as novidades. Jantava sempre no italiano mais caro da cidade, comia somente da uva vinda do estrangeiro. As azeitonas eram as chilenas apenas. Fios de seda para enfeitar o cabelo.

Quando ela desaparecia, eu enternecia e meus olhos buscavam no escuro o esboço daquele corpo rebelde. Eu me sentia uma peça solta no mundo sem a minha pequena Manu com suas brincadeiras de pano, algemas e palmadas. Queria que ela aparecesse nem que fosse para me mandar ficar de joelhos diante dela. Eu cheguei a chorar enquanto repetia seu nome na alcova como uma oração.

Triste que tantas vezes a encontrava perambulando pela rua e ela fugia de mim. De repente, virava-se e me gritava meia dúzia de absurdos e alguém aparecia para defendê-la como se eu fosse algum tipo de tarado tentando abusá-la. Se todos soubessem o valor inverso dessa coisa! Prenderiam-na!

Naquele dia ela foi até em casa transtornada.

“Torne a cruzar meu caminho e não sei do que sou capaz, Arnaldo!”

Eu implorava para que você ficasse e não me deixasse mais. Manuela, minha menina, eu te amava, você bem sabia. Eu aguardava sua chegada toda coberta pelas suas doçuras em meu lar, ao meu lado, não apenas nestas noites desenganadas em que você se levantava e se punha a correr. Não preciso de uma loba uivando em minha cama, preciso da mulher forte que você é pra cuidar de mim pela vida toda. Manuela virava as costas, bufava, chamava-me patético.

Metia o chapéu na cabeça e de novo sumia. Às vezes eram meses, às vezes alguns dias. E quando aparecia por conta própria, era sempre roçando o corpo em mim como gata assombrada. Deitava em minha cama e nela serpenteava e me cheirava. Reclamava do perfume. “Quero sua pele de homem”.

Nunca a dominei. Manuela, você me tinha como uma garota virgem desesperada, eu sei, e era disto que você se divertia. Bateu-me na cara diversas vezes sem eu ao menos dar conta do porquê. Chamar-me de “ridículo”, esta era sua incrível diversão. Gargalhava satanicamente vestida de seda azul-bebê enquanto me obrigava a deitar-me no chão frio. Pisoteava-me.

Mas não me doía o salto fino em meu peito. Doía seu desprezo velado do mordaz desejo. Você era cretina, mas eu não conseguia viver longe de você, Manuela! Sina tamanha a minha que me punha debruçado sobre suas vontades diversas! Assassinas! Meus olhos cheios da indignação da minha razão. Eu me perguntava todos os dias do motivo daquele meu amor sem misericórdia, mas bastava vê-la gemer aos risos, suspirar de alívios, rimar poemas de Baudelaire, entoar canções primaveris, despir-se como uma donzela, despejar o corpo em cima de mim e fechar os olhos como uma menina sem refúgio da vida... bastava para que eu perdoasse infinitas vezes a vermelhidão das minhas dores, os arroxeados dos hematomas no peito e nas costas. O pingar de sangue do coração...

Jonas está terrivelmente abalado. Ainda não entende como é que se mantém alguém apaixonado por uma criatura certamente dominada pelo capeta. Faz o lamentado ar de homem resignado perante o sofrimento amoroso. Nele há mais da moral que da paixão. Isto era um absurdo, um desamor, um desrespeito imensamente imperdoável a si próprio. Julga-me. Diz que sou tolo uma centena de vez. Diz que vai orar por mim, mas peço que não o faça. Deus há muito já tinha me deixado sozinho no mundo quando me pôs diante de Manuela.

L Pimentta
Enviado por L Pimentta em 09/11/2012
Código do texto: T3977199
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