Das dores, dois estranhos
Era final de algum campeonato idiota de futebol em uma quarta-feira de vento seco, em que as árvores balançavam os galhos desesperadas e se ouvia aquele farfalhar das folhas como se fosse o anúncio do fim do mundo. Estou exagerando? Devo estar, mas pra mim era como se fosse o dia do fim dos tempos gritado naquela poeira toda que se erguia e que ninguém se importava. As pessoas bebiam loucamente nos bares e pulavam abraçadas nas calçadas totalmente alheias àquela sensação esquisita na rua. Mas esquisita era eu mesmo.
Eu ainda percebia um silêncio incrustado na zona toda. Me apegava a ele enquanto ia caminhando e desviando o meu corpo dos torcedores fanáticos que entoavam coros provocativos uns aos outros. Tantas vezes suspirei condoída da distância que eu encarava até minha casa... Por aqueles dias era mais longo ainda. Pior em dias insuportáveis como aquele. Tinha a impressão de que arrastava um peso no pé esquerdo. Algo assim.
Então notei que o vento todo anunciava chuva. Fiquei aborrecida e apertei o passo. Nem o céu iluminado pelos lampejos esbranquiçados e o aspecto fantasmagórico da rua amansava a fúria dos telespectadores do futebol. Fui mais rápida, mas mais abobada. Tropecei num relevo na calçada. Praguejei. Em seguida senti as primeiras gotículas tocarem minhas maçãs do rosto. Bufei. Abracei meus livros e ajustei melhor a bolsa no ombro e continuei os passos como se fosse me preparar para uma corrida.
Não deu dois minutos e as gotículas se transformaram em tormenta. Tive que, praticamente, me jogar no primeiro bar abarrotado de gente que vi pra me proteger. Fiquei encostada no vidro, olhando a rua, rezando pra que parasse logo. O juiz apitou e a partida teve início. A galera delirava e eu também. De ódio.
Fiquei ali com uma mão apoiada no vidro, quase beijando a porta, e aquela marca do abafado próximo à minha narina se forma. Só falto começar a desenhar, tamanho meu enfado, mas fico distraída com a chegada de outro ser humano que aparentava ser tão alheio como eu àquela palhaçada toda. Entra corrido também, com a trágica ideia de cobrir a cabeça com um jornal que já vinha mais molhado que a própria chuva.
Entrou todo se sacudindo feito cachorro. Tirou a jaqueta e ficou olhando em volta, numa tentativa de buscar um pensamento solto no ar o que fazer. Nossas vistas se esbarraram por segundos breves. Ele foi se embrenhando na multidão do bar e desapareceu. Voltei a atenção para a rua molhada. De repente saiu um gol e vi um torcedor devidamente bêbado correndo pela rua com a bandeira do time amarrada ao pescoço como se quisesse ser um super-herói. A gritaria só faltou fundir-me o cérebro.
Eu permaneci ali durante todo o primeiro tempo da partida. Confesso que deu fome. Fui até o balcão e pedi um salgado com um suco de morango. Um rapaz me cedeu o lugar e eu agradeci emocionada, pois minhas pernas doíam. Coloquei os livros e a bolsa no colo e, desastrosamente, tudo despencou. Eu estava sensível naquele dia. Os livros caírem esparramados e escancarados enquanto todos vibravam por futebol, muito me endoideceu. Estava vendo a hora de pisarem neles. Fui tentando sair rápida do banco alto e estreito para alcançá-los, mas a criatura divina, devidamente mais seca, apareceu e os recolheu do chão para mim.
Leu meu nome na capa de um dos livros e me entregou dizendo:
- Esses livros estão perdidos aqui neste bar, Amanda.
- É... – respondi sem jeito – Assim como eu, posso afirmar.
Sorrimos um para o outro. O jogo começava de novo. Eu recebi o lanche e ofereci com toda minha educação. Ele, cheio de cerimônias, agradeceu, mas negou. Ficou parado atrás de mim, os braços cruzados, de frente para a TV junto com todos os outros.
Terminei de comer e paguei. A chuva ainda caía sem ressentimento lá fora. Eu estava no inferno, claro que estava. Chamei um garçom e perguntei se não me arranjaria uma sacolinha plástica, na camaradagem. E pronto! Enfiei os livros na sacola, dei dois nós e os coloquei bem abraçados contra o peito. Antes de sair, toquei no ombro do rapaz e disse:
- Você não tem cara de que está interessado no jogo de futebol.
- Não mesmo, aliás nem sei o que estão decidindo hoje.
- Muito menos eu.
- Na verdade preciso de uma informação... Você sabe como eu chego na rua Cardeal Arcoverde? Andei um monte e ainda não sei onde estou. Fui surpreendido pela chuva.
- Ei, você não é daqui! É do sul? Estou notando o seu sotaque...
- Isso... – e ele sorriu com certa lisonja pelo reconhecimento – Cheguei ontem para encontrar uma amiga, mas tudo vem dando errado... – e cessou de falar, pois certamente percebeu que acabaria falando demais.
Eu fiquei esquisita naquele minuto. Senti que havia alguma tristeza em comum entre a gente. Só pelo caminhar daquele tom na frase cortada, eu me identifiquei. Vi com certo romantismo aqueles olhos arruinados, apoiados numa diagonal íngreme, direto ao chão. Só faltei oferecer um abraço, mas preferi dizer:
- Pra chegar na Cardeal você tem que descer aqui a rua Girassol toda, depois pegar a Horário Lane... vai sair ali no cemitério, na Cardeal mesmo. Está próximo... Bom, eu vou embora mesmo com esta chuva. Eu não aguento essa bagunça... passarei por lá, se quiser me acompanhar...
- Poxa, estive doente todos estes dias, seria um abuso ir caminhando na chuva...
E naquele segundo o bar inteiro tremeu por que mais um gol tinha saído. Fiz careta por conta da sensibilidade de meus ouvidos. Na mesma hora, ele mudou de ideia e apressou-se em me acompanhar.
Saímos do bar despreocupados com aquela água toda em nossas cabeças. Íamos até devagar. Boa parte do caminho em silêncio. Acho que nos observávamos mutuamente.
Confesso que o meu dia tinha sido difícil, que a semana estava sendo dolorosa e que o último mês fora daqueles para esquecer, mas incrível como dissipei a tristeza naquela situação engraçada. Vi muita dor naquele homem com mãos nos bolsos e cabeça baixa. E eu tinha uma forte sensação de que ele era o tipo que a gente pensa que não merece atrocidade alguma da vida. Eu me senti na obrigação de tentar mediar alguma coisa e falei, assim que paramos no sinal:
- Só precisa chegar até a Cardeal, mais nada?
- Isso.
- Sua amiga mora lá?
- Foi o que me disseram.
- Mas e se não for? Vai voltar pra casa?
- Vou procurar de novo.
- Onde você está hospedado?
- Vou me hospedar na casa dela.
Eu preferi ficar em silêncio a partir daí. Eu tinha a impressão de que ele estava mentido pra si próprio. Comecei a pensar que se tratava de um louco vindo atrás de uma namorada que veio fugida pra estes lados. Ou até poderia ser uma amiga mesmo, mas com certeza ela deveria estar fugindo dele. Como assim “disseram” que ela morava na Cardeal? Se o endereço não saiu da boca da pessoa, como confiar nesta informação?
A chuva foi dando trégua e, então, seguíamos mais tranquilos. Nossos passos sincronizados. Ele parou para tirar um papel do bolso. Ficou em choque quando percebeu que o papel estava quase desfeito e com todas as letras borradas. Gritou: “CARALHO! PUTA QUE PARIU!” e chutou o muro do cemitério. Segurava o papelzinho com a ponta dos dedos e olhava praquilo com indignação, como se fosse um golpe inesperado vindo de onde menos se esperava: sua única informação concreta.
- E agora, não lembra o endereço? – perguntei com certo receio. Ele estava no pico do nervosismo.
- Não sei, não sei... – e levou as mãos à cabeça, pondo todo o cabelo para trás.
- Olha, acho que esta noite você deve ficar em um hotel, por que...
- NÃO! CLARO QUE NÃO!
O grito acompanhado pela expressão de loucura me gelou o estômago. Abracei ainda mais os meus livros e engoli seco. Eu não quis dizer mais nada e virei as costas praquele doido. Continuei andando. Poucos metros depois percebi que ele vinha me acompanhando de cabeça baixa.
Eu já ia chegando no portão de casa quando tornei a falar:
- Escuta, daqui não posso te ajudar mais. Boa sorte aí com a sua amiga. Tchau.
E apressei o passo. De repente eu comecei a ter medo dele. Tudo permaneceu em silêncio até que ele resolveu falar, e eu já estava quase atravessando a rua junto de uns torcedores barulhentos:
- Obrigada, Amanda... e me desculpe.
E aí, eu e o meu coração mole nos derretemos quando voltamos os olhos para ele. O rapaz tinha se encostado ao muro, ficou com a cabeça erguida olhando o céu, braços cruzados. Deu leve tossidas enquanto ia escorregando as costas na parede. Resolveu se sentar. Eu resolvi voltar o meu caminho. Não sei a cada quantas passadas eu parava e olhava para trás, mas em todas as vezes que fiz aquilo, eu sentia o coração ainda mais encolhido. Ele não saía do lugar. Lembrei que reclamou que andava doente. Meu Deus, quem era essa amiga que largava um amigo nas ruas de uma cidade desconhecida?
Cheguei em casa e encontrei minha amiga Silvia acordada. Contei tudo para ela. Tudo mesmo, inclusive as minhas impressões. Ela ouvia fazendo caretas e totalmente desenganada do valor que eu dava praquilo tudo deu sua sentença:
- Pelo amor de Deus, Amandinha... vai saber quem é esse cara? Às vezes aprontou uma bem feia pro lado da tal da amiga e ela está fugindo. Já pensou nisso?
- Mas ele era um bom homem, eu garanto.
Silvia suspirou e levantou da cadeira que estava. Foi até a cozinha buscar o leite costumeiro de todas as noites. Quando voltou, foi dizendo:
- Rodrigo ligou.
Voltei à realidade depois que ouvi aquele nome. Meu corpo murchou, minha mente se distorceu. Aos poucos a revolta foi envolvendo meu coração e eu soltei um grunhido de raiva. Eu tinha que perguntar o que ele queria:
- Não entendi muito bem, estava com a voz esquisita.
Fui para o chuveiro e deixei a água cair por longos minutos, buscando algum tipo remédio, mentalizando uma salvação praquele tormento mimado do término de um relacionamento. Eu não sabia cuidar de mim mesma. Desde os meus 13 anos eu não sabia o que era ser sozinha. Já estava velha pra me aceitar daquele jeito. Chorei bastante. Me apoiei na janela do banheiro enquanto escovava o cabelo. Era quase meia noite e ainda tinha gente comemorando a vitória do futebol. Minha feição era de extremo desprezo praquelas coisas todas. Queria abrir a janela e sair caminhando num infinito longe do desgosto daquele cômodo, quem sabe do corpo...
Lembrei-me do rapaz que deixei a algumas quadras antes de casa. Será que tinha conseguido encontrar a amiga? Tentei lhe enviar o pensamento mais positivo que eu tinha, mas não sei se seria forte o suficiente para alcançá-lo.
Silvia já brigava comigo pelos corredores dizendo que eu estava fazendo barulho e que a luz do banheiro não a deixava dormir. Mas eu não tinha sono. Fiquei me olhando no espelho por longo tempo, daí resolvi mexer no armário e passar perfume. Até hoje não sei de onde veio aquele instinto, pois nunca me perfumava para deitar.
Saí do banheiro e apaguei a luz. Ficou um breu no apartamento todo. Fui andando no escuro e no silêncio. Quando ia me aproximando da cama, ouvi um barulho forte vindo da rua. Parecia briga. Imaginei alguém sendo jogado de encontro a um portão de ferro. Foram repetidas vezes e o meu coração pulava alto a cada estrondo. Parecia próximo e cada vez mais desesperador. Olhei para Silvia na outra cama e ela já dormia profundo.
Fui até a sala e encostei no parapeito da janela. Fiquei olhando pela fresta da cortina. Alguns rapazes iam passando em algazarra. Fiquei irritada e meus pelos estavam arrepiados com aquela bagunça toda. Já tudo ia se acalmando quando vi um rapaz vir sozinho depois daqueles outros. Era ele. Não tinha achado a tal da amiga ainda.
Fiquei eufórica no apartamento. Andei de um lado para o outro feito uma demente indecisa. Vesti um casaqueto qualquer e resolvi descer. Já era bem tarde e tudo ia deserto naquela rua.
Fui meio que hesitando, olhando em todas as direções. Finalmente o vi quase perdido no horizonte já a duas esquinas dali. Eu quis gritar, mas então percebi que não sabia o nome dele. Apressei o passo e fui. Nem sabia o que eu queria indo atrás dele, mas continuei. Chegando mais perto, eu disse:
- Moço! – já esbaforida pela corrida.
Ele pareceu assustado quando me viu. Estava com o lábio inferior sangrando. Muito suado e aparentemente mal. Ficou cismado e franziu o cenho quando disse:
- Amanda? Mas... o quê...
- Ah, é que eu moro aqui perto, tá tudo tão silencioso que ouvi uma bagunça na rua... fui ver na janela e te vi passando bem na hora, foi isto.
- E o que você quer?
- Eu acho que você não está bem, vim ver se precisava de algo.
- Não, tô ótimo. – e me respondeu isto me dando as costas, seguindo em frente.
Atônita, coloquei a mão no peito, como se quisesse controlar a minha respiração e a vergonha por aquele tratamento arredio. Me peguei sem saber o que fazer. De repente alguns fogos explodiram no céu. Fiquei assustada com o clarão. Cheguei a ensaiar dar dois passos para atrás, mas antes que me virasse completamente para o caminho oposto, notei que ele diminuía o ritmo da corrida. Parei. Mais um pouco adiante, ele também. Iniciou um choro nervoso, e aquilo trucidou o meu mais puro sentimento. Ver um homem chorar é algo arrasador, indecente, dolorido de se admirar!
Fui devagar como se fosse tentar amansar uma fera. Toquei em seu ombro. Apertei firme e deslizei o toque pelo braço. Ele me enternecia. Sentamos na guia e ficamos em silêncio. Esperei o choro cessar, mas estava difícil de minguar.
Do outro lado da rua um boteco imundo estava fechando as portas. Tive uma ideia louca e saltei da guia, atravessando a rua sem olhar para os lados, com uma demanda urgente. Dali da calçada, de frente para o bar, eu pedi vodka. “Já estamos fechando, fia!”, respondeu o homem apagando a luz. Implorei pra que me vendesse. O homem me encarou e, em seguida, observou o meu amigo quase caído na guia do outro lado da rua. Eu completei o pedido com: “Precisamos afogar umas mágoas, sabe como é?”. O homem riu e respondeu jocoso: “sei bem... aposto que o time de vocês caiu pra segunda divisão!”. E me entregou uma garrafa da vodka mais barata, dizendo que era por conta da casa.
Parei de frente para aquele rapaz triste e o encarei enquanto abria a garrafa. Depois do meu primeiro gole, quando direcionava a garrafa para ele, perguntei:
- Qual é o seu nome?
- Adriano. – e tomou-me a garrafa da mão.
Como se estivesse sedento no deserto, bebeu feito água. Desgrudou os lábios do gargalo e fechou os olhos com profundo prazer. Suspirou o regozijo amargo da resignação. Olhou para mim tristemente e me ofereceu a bebida.
- A Miriam não quis me receber. – disse de repente.
- Ah, então você conseguiu encontrar o endereço?
- Eu sabia que era por volta do 200 e alguma coisa... fui batendo nos portões. Daí, quando cheguei no 287 tive absoluta certeza de que era lá. Toquei o interfone e ela atendeu... quando disse que era eu, ela pediu pra eu ir embora.
- Mesmo sabendo que você estava na rua? E que veio pra São Paulo por causa dela?
- Mesmo... – respondeu envergonhado – Só que eu insisti, sabe? Não deixei barato. Atormentei mesmo, chutei o portão, sacudi tudo aquilo... eu não sabia que ela dividia aquela casa com mais três... eles saíram e me socaram a cara.
- Então era exatamente você e o seu showzinho que eu ouvi de lá do meu quarto em casa...
Adriano não quis mais responder. Pegou a garrafa da minha mão e foi bebendo. Continuei:
- Aqueles três que te pegaram no portão da sua amiga... ainda estão pela rua, não é? Acho perigoso a gente ficar aqui.
- Eu quero que se dane... que mais tenho a perder por aqui? Estou destroçado...
- Nada disso, vamos lá pra casa. – e estendi minha mão pra que ele se ancorasse.
Entramos em silêncio absoluto. Silvia teria um verdadeiro troço se descobrisse que eu estava levando um homem para o apartamento e, principalmente, um estranho. Mas não teve jeito! Eu estava tocada por aquele semblante sofrido e impaciente. Eu o levei até o quarto de visitas e me sentei frente a ele. Limpei o machucado no lábio. Ouvi toda a história daquela amizade atormentada. A dor que ele exalava tinha o gosto da minha. Eu queria estar ali ajudando da mesma maneira como eu gostaria que alguém me ajudasse. Eu jamais poderia deixá-lo na rua lamentando aquela ferida enquanto vagabundos passavam gritando pela rua comemorando a vitória de um time de futebol. Tem hora que a felicidade alheia é o pior drama de quem sofre, e não falo no sentido da inveja, mas sim no quesito da quase falta de respeito da vida por nos esfregar esta alegria barata em nossa cara enquanto pelejamos em nosso íntimo.
Depois de falarmos de Miriam, a amiga fugida, falamos de Rodrigo, meu ex-noivo. Ele foi paciente ao ouvir e aquilo me aliviou tremendamente. Faz bem falar a uma pessoa estranha sobre nossos temores. Soam menos infantis, me parece. Nos desarmamos das convenções e falamos todos os nossos receios. E o mais incrível é que os estranhos sabem e entendem muito bem estes dramas, por que também estão desarmados. Os amigos às vezes nos pressionam neste sentido e dizem coisas do tipo: “eu não acredito que você fez isso”, “você se rebaixou a isto?”, “você tem que fazer isso, isso e isso”. Como se nunca os amigos estivessem predispostos a errarem quando apaixonados. Todos somos iguais no sentido da burrice sentimentalóide! Basta esbarrarmos em um estranho pra saber.
Quando terminamos a garrafa, fui até a cozinha e peguei cervejas. Foi engraçado abrir as latinhas tentando abafar o barulho, mas conseguimos. Ríamos da situação e já estávamos bem alcoolizados perto das quatro horas da manhã. O sono não chegava nunca e eu ouvi muitas histórias interessantes sobre ele. E, depois do primeiro silêncio embaraçoso que nos acometeu naquele quarto, ele disse, um pouco desconcertado:
- Amanda... você não precisa de um Rodrigo.
Eu sorri e inclinei a cabeça feito uma mocinha encabulada diante de um elogio. Em seguida, senti os olhos marejarem quando perguntei:
- E por que você acha isso?
- Você é linda e sensível. Coração bom, cabeça boa... Sabe? Já esgotou teu tempo com ele, Amanda.
- E o que você me diz dessa sua coisa com a Miriam? Pelo menos o Rodrigo não me virou as costas nem fugiu de mim. Está percebendo? Um ano que você vai onde ela está e ela se esconde. Como você aguenta? Pensa que merece isso?
- Não mereço.
- E digo isto pelos mesmos motivos que me deu.
- Acho que agora estamos falando como dois amigos. – riu ele.
E, naturalmente, pegou a minha mão direita e a beijou na palma. Foi fechando cada um dos meus dedos como se quisesse que eu o guardasse. Depois, pousou minha mão em minhas coxas. Ficou assistindo à minha reação. Eu senti que realmente existia um beijo guardado ali. E o espalmei em meus lábios com os olhos fixos nos dele.
- O seu perfume me acalma... – respondeu sorrindo leve.
Fui me aproximando aos poucos, levemente zonza, e ríamos um do outro assim que nos sentíamos no ar denso. Selei os lábios nos dele. Um toque suave que Adriano repeliu. Lembramos que a boca estava machucada. Passei a mão pelo rosto dele e concentrei aquele beijo sincero apenas no lábio superior. Eu o sentia tremer enquanto nosso coração estava começando a aquecer. Vínhamos sofridos e nos completávamos, eliminando, por ora, aquele suplício de longos dias.
De repente, ele se afasta e me diz cheio de amargura:
- Aquele desafeto me desalojou, despedaçou meu espírito... foi um desprezo muito severo, Amanda. Como se aquele desdém me deixasse nu, me vulgarizou como homem, meio que me amaldiçoou... Não consigo me consertar disso.
- Mistura com o meu desafeto. Despedace o seu espírito junto ao meu, junta teu desprezo e esta vulgarização com as minhas iras. Junta tudo isso e deixa num canto. Hoje você está aqui e estamos cuidando um do outro das dores. E é só isso.
- E se juntar toda a nossa querência de amor, dá certo, Amanda?
- Tente! Pelo menos agora. Nós dividimos a nossa agonia com essa bebida... Agora viramos faísca...
E seguimos até o sol ficar ardendo na janela. Até matarmos a inércia do nosso corpo. Um lábio ferido foi o único cuidado que tomamos para não doer mais. De resto, ali, toda dor era consentida conquanto que partilhada e partida.