O semeador e o encantador de lobos

Contaram-me uma história de tempos não mais narráveis, de quando antes da aurora da escrita acontecer e antes da fúria dos céus cair sobre a terra, existia ao norte das grandes montanhas da asia um reino tão rico e tão vasto que só poderia ser comparado às terras atlantianas ou as lendas de Sarnath. Tal reino, disseram, havia sido até tal momento eterno sendo erguido antes mesmo das fundações do mundo a habitado por seres de grandeza e brilho jamais imaginados. Esses seres atemporais viviam em júbilo e aguardavam que a grande obra chegasse. O reino então se tornou real e os seres foram aprisionados na forma de homens grandes e pequenos se esquecendo das maravilhas do espaço antes de tempo ao contemplarem as belezas nascidas daí em diante na terra.

Um dia, ouvindo boatos sobre reinos que se erguiam ao ocidente e ao oriente e de balsas gigantescas que superavam até mesmo a glória de suas embarcações, o povo do norte temeu e clamaram por um rei. Antes da primeira guerra nascer foi forjado o primeiro rei que com a força esquecida dos céus lutou contra forasteiros e trouxe paz a um reino que não pediu pela guerra.

Este rei era poderoso e justo, e o povo o amava. Quando, um dia o rei tomou para sí uma esposa o reino celebrou de uma lua cheia até outra e cantou ao redor de uma grande arvore que crescia ao redor do palácio. Por toda a terra ouvia-se as novas, por onde o rei e a rainha eram aclamados por toda sorte de poetas e cantores.

Um dia, segundo me disseram, a rainha foi tomada de infelicidade e o rei não sabendo como agir para com sua amada deixou ao tempo a tarefa de lhe resolver a dor. Quando a dor se tornou por demais agressiva, a rainha se confessou ao rei e compartilhou sua dor. Esta, ninguém nunca foi capaz de contar ou narrar, pois o rei ao ouvir calou-se e partiu em direção as montanhas.

Naquela noite, luzes de todas as cores dançaram nos céus e sons diversos povoaram o ar e de manhã a grande árvore estava ao chão. Pela última vez o rei foi visto andando pelos palácios do jardim, abraçando seus jardineiros e se prostrando ante seus servos mais amados. Naquela noite pelo conselheiro real foi proclamado a última ordem do rei agora desaparecido. A ordem dizia:

"O povo não precisa de um rei, mas clama por um

O medo do povo enfraquece nossa terra

O medo do rei se esconde de seu povo

O novo rei deve surgir do povo

O tempo lhe será o professor

Aquele que se ergueu antes as montanhas

Antes não será o que governará

Agora a tudo se atém o amor

Antiga profecia esquecida

A quem a rainha por fim amar

A coroa receberá"

O povo se pôs em polvorosa e as reações foram das mais diversas. Alguns pensavam ter agora a chance de receberem a coroa, outros choravam pelo rei, alguns amaldiçoavam a rainha e alguns ainda rezavam pelo casal real. A rainha permaneceu em silencio, impassível diante de sua decisão e aceitando a ordem do rei.

Mas passados seis anos, ninguém atendeu aos desafios do castelo e nem a rainha.

Contam-me que um dia, vindos através das montanhas dois homens chegaram ao reino e procuravam descansar nos bosques antes de entrar na cidade.Eram estes homens, um semeador errante e um conhecido encantador de lobos.

Depois de andarem o dois homens encontraram-se em uma clareira onde a luz do luar iluminava o bastante para permanecerem seguros e uma arvore oferecia proteção e frescor na noite quente.

- Onde vai, viajante? - Perguntou o semeador

- Vou ao castelo sem rei, conhecer a rainha e conquistar seu coração. - Respondeu o Encantador de Lobos

- Ora, se não é também esse o meu destino, mas não pretendo conquistar a rainha. Pois ela mesma me dará seu coração.

- Pelo que ouvi dizer, a rainha não entrega seu coração a muitos.

- Pelo que ouvi, ela já o fez antes.

- Que seja, meu amigo, pela manhã seremos rivais. Mas por hora, seria bom mantermos nossa honra e nos tratarmos por homens civilizados. Tenho aqui alguns pães e queijos que trago da viajem.

- Tenho algumas frutas que trago do litoral. E bastante água das fontes térmicas do oriente.

Os dois dividiram sua comida e sentaram-se abaixo da arvore que balançava ao ritmo de uma brisa que acabara de chegar. Olhavam para os céus e para as copas das arvores tentando encontrar o sono da noite.

Antes que a noite vencesse os viajantes, um brilho fulgaz azul cruzou os céus e o semeador falou:

- Por que vem de longe tentar roubar o coração da rainha.

- Eu creio que não existe mais ninguém que seja tão capaz de domar tal mulher.

- Domar?

- Sim, ela é como uma loba. Difícil de se conquistar, mas depois de conquistada jamais se deixará levar por outro senhor. Já encontrei todas as raças de lobos existentes desde as terras geladas de Pharhir até os desertos de ocidente e nenhuma mulher pode ser mais resistente que a teimosia sangrenta de um puro sangue dos bosques que cercam a terra dos atlantes. Mesmo aquela mulher, cujos olhos são um portal para o infinito.

- Os olhos da rainha? Você os viu? Num sonho?

- Como sabe?

- Não sei, estou lhe perguntando.

- Sonhei com ela algumas noites atrás, a vi em seu leito chorando e não me atrevi a me aproximar. Andei por todo o castelo e ví os quadros do antigo rei rasgados nas paredes. Acordei e ví que todos os meus lobos haviam desaparecido e comecei a andar. Tenho andado desde então e cheguei aqui, como se meus passos estivessem sendo guiados.- Disse o encantador

- Eu ouvi uma voz enquanto estava a lançar sementes nos campos do litoral dos intocáveis. Fui chamado a esta terra para me tornar um rei antes que os povos do ocidente, de uma nação jovem chamada Babilônia, ataque estas terras. A voz me disse que se um rei se assentasse no trono os reinos teriam medo e o povo seria poupado da escravidão e morte.

- E a rainha?

- Sonho com seu rosto desde o primeiro sonho que me lembro. Nunca soube quem ela era, nem por que cantava uma canção a cerca de sua beleza e sabedoria. Um canto triste enfim, pois ela sempre me pareceu um tanto sobrecarregada com o peso das suas responsabilidades. Isso me assusta, pensar que para amá-la de verdade eu tenha que carregar este fardo e talvez não ter força para tal.

- E pensa que pode conquistar uma mulher tão forte, se fazendo tão fraco?

- Não a conquistarei, não sou um domador e nem acho que uma mulher deva se tratar como se trata um animal selvagem. Sou um semeador, eu deixo que as sementes tenham seu tempo para germinar e brotar. Assim penso que é o amor de uma mulher tão fantástica.

- Tolo.

- Talvez o seja, mas tal formosura merece respeito e não dominação.

- Talvez o respeito deva ser um pouco auto imposto para que seja justo.

-Talvez.

A lua se movia no céu lentamente, mas a cada vez que os olhos dos homens se cruzavam ela acelerava em direção ao seu poente. As lembranças pouco a pouco se completavam diante da conversa, enquanto o luar de tornava azulado e se escondia por trás da grande árvore cobrindo os dois homens e projetando suas sombras distante além do bosque, até a cidade murada e chegando ao castelo como um homem gigante. Os dois homens conversavam enquanto o brilho antigo se acendia nos corações dos homens e mulheres da cidade e a rainha sentia enfim a liberdade que o rei encontrou no passado e que ele tarde demais quis lhe entregar. Ela acordou em seu quarto no palácio, e ao ver a sombra e o poder antigo que muitos haviam esquecido tocou seu coração numa prece, a sombra que se projetava na cidade já não pertencia àqueles dois homens. Era a sombra de um rei amado.

Isso ao menos, foi o que me contaram.