O suicídio
Indagada daquela forma, Malú não sabia como responder. Pensou que foi uma idiotice ceder aos pedidos do esposo e procurar uma ajuda médica. Só porque ela passou anos estudando, lendo a respeito do assunto, não quer dizer que ela saiba exatamente qual o problema das pessoas.Muito menos tem a capacidade de passar alguma medicação para diminuir os sintomas.Para Malu, não era uma doença, porque doença a gente vê, a gente sente a dor na pele, o que ela sentia estava muito além disso, era uma dor na alma, e não havia remédio no mundo que a pudesse curar.
-Foram dois.Dois comprimidos de Alprazolam. Respondeu Malu.
-Só dois te fizeram apagar por três dias?Tente lembrar. dizia a Dra Augusta
-Dra, ao lado do corpo dela encontrei uma caixa de Alprazolam,uma de Diazepam e outra de Amitriptilina.respondeu Eduardo seriamente.
Um silêncio total dentro do consultório enquanto a médica pacientemente digitava em seu computador.
-Além dos medicamentos controlados você ingeriu mais alguma substancia?Cocaína, alcool,heroí...
Antes mesmo que a dra terminasse a frase malu respondeu: sim, veneno para matar ratos, daqueles granulados.
Eduardo olhou assustado para a esposa.Disso ele não sabia.Aliás, desde que Malú saiu do hospital, o casal ainda não havia parado para conversar sobre o assunto.Melhor assim, pensava Malu.Afinal, foi uma tentativa frustrada de suicidio, onde os três dias de inconsciência só a fizeram sentir vergonha e constrangimento.
Malú não se lembra de quanto tempo mais ficou naquela sala e nem sobre o que mais conversaram, passou todo o tempo observando a decoração do consultório.Muito requintado por sinal.Lembrou da adolescencia, da época em que queria ser arquiteta e montar o seu próprio ateliê.Nem sabe o porque mudou de idéia.Talvez, desde aquela época já apresentava alguns sintomas de depressão que passaram despercebidos aos seus olhos e aos olhos de todos a sua volta. Era tão irreverente, a melhor amiga de todos,sempre divertida,cheia de pessoas a sua volta.Lembrou do André, seu primeiro namorado sério.Uma lágrima escorreu do seu rosto.Como pode ter esquecido daquele acontecimento aos dezesseis anos?Daquele feriado de corpus christi na casa de praia de Jana, do teste de farmácia, dos acontecimentos que se seguiram a partir dalí.
Imediatamente em sua cabeça veio a imagem da varanda da casa de Jana.Estava sentada numa cadeira de balanço que pertencia ao avô da amiga enquanto André a convencia a tirar aquela criança.
-Mas tirar André, estou com dois meses. dizia chorosa.
André havia acabado de passar no vestibular para engenharia. Iria mudar de cidade, talvez o namoro nem iria para frente, sendo assim, não poderia pensar em filhos. Não naquele momento, e tampouco com uma pessoa como Malú. Sabia o quanto a namorada era pegajosa,o quanto podia trazer problemas. Neste caso, o aborto era a única solução.
Malu também não queria decepcionar a mãe. Também era filha de mãe solteira e sabia o quanto a mãe lutou para criá-la, seria uma grande decepção para a família, certamente ela seria motivo de chacotas entre a vizinhança também. Naquela noite, Malu não dormiu.Nem ela, nem André e nem Jana.Passaram a noite inteira pensando nas consequencias de se fazer um aborto.Malu tinha medo de passar mal, de ter que ser levada a um hospital e que no fim todos descobrissem a atrocidade.Apesar da rigidez da mãe, Malú sabia que ela jamais a abandonaria.
As quatro da manhã introduziu os quatro comprimidos comprados por André.Todos foram dormir, menos ela.Malú ficou na cama, deitada, pensando no que acabara de fazer.De certa forma se arrependeu, mas não havia mais nada a ser feito, uma vez que a decisão já havia sido tomada. Pela manhã, enquanto todos tomavam café para descerem para a praia, Malu começou a sentir cólicas fortíssimas.Os amigos que estavam hospedados na casa de Jana não desconfiaram de nada.Afinal, que menina nessa idade não sente cólicas? Jana resolveu ficar com a amiga. Sabia que ela iria precisar. Quando já era nove horas da manhã, malu sentiu vontade de ir ao banheiro, foi quando sentiu que estava tenho uma hemorragia. Ainda no banheiro sentiu um volume descendo, mas não tinha coragem de olhar, queria acabar com aquilo tudo logo. Passou todo o feriado deitada na cama da amiga, sentindo fortes dores e com uma febre de 38 graus. Perdeu a conta de quantos analgésicos tomou para aliviar a febre e as dores.
Duas semanas mais tarde descobriu que Jana e André estavam tendo um caso. Foi uma decepção muito grande. Ficou sabendo ainda que a pseudo-amiga tinha espalhado para o grupo de amigos sobre o aborto de Malú, mas que havia dito que a amiga não sabia quem era o pai. Para Malu foi o golpe mais duro que recebeu da vida.Não teve coragem de procurar Jana e nem André.Não quis se justificar com os amigos, não contou para a mãe. Apenas se calou.
Lembrou que nessa mesma época pela primeira vez na vida questionou a mãe sobre o seu pai.Dona Marlene ficou bastante magoada com a filha. Não queria que a menina procurasse um pai que nunca se preocupou com a sua existência.De nada adiantou as súplicas da mãe, Malú queria a todo custo encontrar o pai. E foi o avô, seu Heleotério que deu o endereço a Malú.O encontro foi alegre, o pai era uma pessoa estudada, de classe média, com um bom emprego e que podia dar uma vida melhor a filha. Nada mais justo já que Malu passou toda a infancia vestindo as roupas que não serviam mais nas primas maiores e calçando os sapatos que apertavam-lhe os dedos.
Lembra de quantas vezes teve que passar dias na casa dos avós porque não tinham alimentos em casa. Lembra das humilhações que Dona Marlene passava por ser mãe solteira. Na cidade pequena em que Malu fora criada, ser mãe solteira era como ser uma prostituta.Jamais arrumaria um casamento com um homem decente.Lembrou também como foi sair da casa da mãe para viver em outra cidade com seu pai e sua família. Dona Marlene não derramou uma lágrima, mas prometeu que dalí em diante, Malú tinha morrido para ela. Mais tarde a má fama de malú se espalhou pela pequena cidadezinha e sua mãe logo ficou sabendo do acontecimento. Diziam ainda que a menina havia saido da cidade para trabalhar como garota de programa.E dona Marlene sofria calada, e Malú nunca se justificou.
Na casa do pai podia tudo. Tinha um irmão de dezoito anos e uma irmã da mesma idade.Malú curtiu bastante a nova família.Adotou o estilo gótico, desfiou os cabelos, pintou-os de preto e curtiu intensamente o rock.Experimentou muitas coisas, desde bebidas até drogas pesadas.Não entende porque não se viciou.O seu organismo não aceitava muito bem.
Mesmo com a insistência do pai e da madrasta em faze-la procurar pela mãe não foi o suficiente. Malú só foi procurá-la, aos vinte e um anos, para entregá-la o convite da formatura do curso de Comunicação Social.
A cidadezinha em que viveu e cresceu havia mudado, e muito. Algumas casas foram derrubadas e transformadas em grandes prédios. A escola que estudou foi reformada, estava muito bonita.A praça do bairro também parecia ter recebido uma boa reforma nos ultimos meses.
A rua em que foi criada estava lá, completamente modificada, a casa onde morou com a mãe havia sido demolida e agora era uma sorveteria. Mais a frente avistou a casa de seus avós.Resolveu tocar a campainha.Desceu pelas escadas um homem negro, alto, aparentando ter uns cinquenta anos de idade.
-A Dona Malva e Seu Heleotério estão em casa?
- Faz dois anos que eles faleceram moça, já estavam bastante velhinhos.Mas quem é você?
- Eu? Maria de Lourdes.Na verdade vim procurar pela filha deles, a Marlene.O senhor sabe de alguma coisa, tem alguma notícia?
-Ah sim, entre por favor, ela está no ateliê terminando umas encomendas.Ela mexe com costuras, sabe?
Malú subiu as escadas, estava ansiosa em encontrar a mãe. Não sabia qual seria sua reação, mas esperava ser bem recebida depois de tanto tempo longe de casa.
Dona Marlene apesar do seu bondoso coração, nutria uma revolta muito grande pela filha.Revolta pela sua ida para a casa do pai, e depois pelas notícias que rondavam a cidadezinha.
-Marlene, essa moça veio procurar por você. Dizia o senhor
-Oi mãe...
Marlene permaneceu calada por alguns segundos.Malú naquele momento se arrependia de ter ido procurar pela mãe.
-Eu não tenho filha. dizia marlene com lágrima nos olhos.-Desde o dia em que você saiu de casa para morar na casa daquele monstro que você chama de pai, eu deixei de ter filha.E já sei todos os motivos Maria de Lurdes.Já sei que você foi para fazer a vida, já sei da monstruosidade que você fez antes de sair daqui feito bicho.
-Mãe, deixa eu te explicar, eu vim trazer meu convite de formatura para a senh...
-E desde quando mulher da vida se forma?Vá embora,saia daqui.Não sabe que seus avós morreram de desgosto?Que seus primos tiveram que mudar de escola?E que por muito tempo tive que ficar trancafiada dentro de casa para não ser humilhada na rua.Vá embora.
Malú não tinha mais nada a dizer, simplesmente virou as costas e foi embora enquanto o senhor ia atrás dela dizendo: Não leve a sério moça, Marlene tem um coração de ouro, e ela vai te perdoar.
Que ideia mais patética tinha sido aquela, de voltar para a casa da mãe depois de tanto tempo longe, sem dar notícias,sem dar um telefonema.
-Malú, Malú, você não está ouvindo o que a dra Augusta está dizendo?
- Ah, sim, o que a senhora disse mesmo?
-Perguntei Maria de Lurdes, com que intuito você tomou todos esses remédios?
-Para me acalmar, pois havia acabado de brigar com o meu chefe.
-Você tentou se matar Maria de Lurdes, e isso é fato, não existe um motivo, você é como uma bomba pronta para explodir.
Maria de Lurdes saiu do consultório de mãos dadas com seu esposo com várias receitas de medicamentos controlados e uma requisição para acompanhamento psicológico.
-Porque sempre estrago tudo, Eduardo?Porque sempre destruo as boas amizades e faço quem me ama sofrer? perguntou malú sem conseguir conter o choro.
-Me dá um abraço.pediu o esposo e pela primeira vez Maria de Lurdes conseguiu se abrir e contar porque sempre troca o dia pela noite, porque parece sempre tão transtornada, tão anti social.
Contou sobre o seu sonho de ser mãe, e contou que morreu um pouco após o aborto provocado.
Malu pela primeira vez na vida não boicotou seu tratamento, ao contrário, levou tudo muito a sério. Teve outras crises depressivas, umas leves, outras severas.Um dia ficava muito letargica e no outro eufórica.Foram muitas medicações diferentes, até acertar o remédio certo para o seu organismo.Ouvia de muitos que depressão era falta de Deus, e de outros que era frescura, mas Malú não desanimava. Ela não queria o suicídio, nem quando tentou, ela queria a vida, o fim daquele pesadelo.A cada dia no consultório conhecia diferentes tipos de pessoas: dependentes químicos, viciados em alcool, compulsivos por compras e comidas, anorexicas.
Com o humor estabilizado, deixou de ser anti social e transtornada.
Quando a depressão já estava quase superada, recebeu a visita de uma senhora. Era dona Marlene acompanhada do senhor que abriu a porta na casinha de seus avós já falecidos.Com eles tinha também três crianças, uma menina e dois meninos.Aquele senhor era Joel e as crianças filhos do casal, irmãos de Malú.
Malú queria justificar, contar tudo o que aconteceu a mãe e deixar bem claro que a história não foi da forma como ela ficou sabendo. Mas dona Marlene só queria abraçar e beijar a filha esquecida por tanto tempo.
Aquele dia, foi o dia mais feliz da vida de Malú.O dia também que soube ela semanas mais tarde que guardava uma linda criança em seu ventre.