AS BAILARINAS
Será que o verão não iria embora, perguntou-se com os dedinhos pequeninos e gordinhos passeando pelos teclados, deixando uma leve canção ecoar pela atmosfera abafada. Já fazia um bom tempo que o sol se ocultara entre nuvens cor de chumbo que conspiraram de um lado a outro formando uma camada escura e pesada, que apesar de tudo não trouxe nenhum vento fresco. O calor descia pesado e denso, deixando as calçadas e ruas pavimentadas do subúrbio ausentes das bicicletas, mesmo dos passos, mas aconteceu de um ronco de moto que levou a menina debruçada ao piano negro virar o pescocinho mínimo na direção da janela aberta; as cortinas claras intactas, oprimidas pelo calor, e tal eram os moveis bem lustrados aquela manhã aos poucos engordurando seus brilhos que foram lustros caprichosos de mãos dedicadas.
Ducha ergueu-se do tamborete, suspirando, agitando as mãozinhas como asas, fatigada daquele calor insuportável, e Deus, a tempestade, foi espantada olhando pela larga janela diagonal, encarando o céu plúmbeo e pesado. O ar estava pesado; respirava-se a própria cor do céu!
Sua avó estava imersa na banheira do banheiro do seu quarto, e o silencio era tão pesado que ela podia ouvir os gemidos da velha, confortada com a agua já morna, com uma garrafa de vodca com gelo na mão, certamente, a bruaca velha, pensou num riso amargo, sádico, vingativo. Aquela velha não morria. Velha estupida, envergonhava a família tentando se comportar como uma garotinha, o pai não via como a mãe dele era, que nojo! Que ideia ter aquela velha em sua casa. A casa era grande. O irmão Danilo estava na concessionária onde trabalha, lida com motos, anda de moto, tem cabelos ainda longos, usa jaqueta quando sai a noite. O lobo mau, pensou, riu, levando uma das mãozinhas a boca num pequeno ar de quem se constrangera, mas era a velha safada que dizia, ele não falava assim, tinha namoradas, nunca as trazia em sua casa, esta coisa de apresentar a família, ainda continuava com o projeto falido da banda sempre funcionando no velho galpão aos fundos do terreno, onde ainda jazia sua casinha de bonecas toda talhada em madeira. Charles morara lá, Vinicius também. Vinicius, Vinicius, mordeu a mão em punho, tentando respirar fundo debruçada a janela, o calor denso, opressor, saturada atmosfera. Subiu os degraus da escada, trancou-se em seu quarto cor de rosa, fechou a janela, ligou o ar, e aos poucos foi se sentindo melhor, respirando, como subindo uma montanha em um periférico, mas estava sentada ao meio da cama, o vestido rodado, cor de rosa cobrindo as pernas, ah, sentia-se etérea, magica. Sentiu uma leve picada de medo, virando-se a olhar o vidro da janela, as cortinas afastadas, é que o céu raiava seu cinza plúmbeo por raios que ora era vermelho, ora era azul, assim cambiantes e cortantes. Escutou a voz da velha resmungando, assustada, lá embaixo, fechando a casa com medo, mesmo um estrondo de uma porta batendo e um grito agudo da velha era sinal que o vento rajava trazendo a tempestade. Virou-se de borco na cama, as mãozinhas fechadas por sob o rosto, buscando conforto, buscando um pensamento. Vinha-lhe a mente coisas novas, experimentadas ainda há pouco pela manhã.
Oi dona Ana, dissera em cumprimento, encabulada, à velha de pescoço de peru, sentada ao canto do salão liso que funcionava no terraço bem arranjado da sua casa. Fumava a infeliz, e via-se a fumacinha tênue subindo, embora ela escondesse a mão ossuda assim pelo parapeito do terraço, as pernas dignissimamente cruzadas, era de se espantar a menina socadinha, gordinha, sem pescoço, bem arranjada num corpete cor de rosa, sapatilhas, viera resfolegando, esperara para falar, mas só conseguira aquele Oi, depois de respirar um tanto opressa, pois ainda tivera que subir uns lances de escada. Leticia ainda estava lá, magrela, comprida, negra, tinha vontade de gritar-lhe nas fuças. Nem parecia suar, não tinha expressão de grande esforço, os lábios desenhavam-se num sorriso delgado de queixo firme. Ela é linda, pensou Ducha com amargura, magrela, acentuando bem naquele corpete, no saiote, diáfana, bailando pelo espaço na ponta dos pés ao som da Valsa das flores. As outras saíram, já passava do meio dia, porem Leticia ainda ficara um pouco, por que ela tinha aquilo no próprio movimento: a dança, o balé. Leticia era a bailarina que nunca haveria em Ducha, que tanto Ducha almejava ser.
_Dasha – resmungou a velha levantando-se, apagando o resto do cigarro contra a mureta, jogando-o longe de alcance a calçada, reparando que o gari, magricela e miúdo dentro do sue macacão colorido acudia por ali com uma vassoura maior que ele. Veio vindo à direção dela, crescendo, empertigada, as pernas compridas e magricelas na roupa colante, as meias como pés de ganso, o pescoço de peru balançando, as expressões e gestos de um roto e desgastado donaire.
_Estamos progredindo ao piano – perguntou, inclinando-se sobre a menina, as duas mãos ossudas sobre os ombros dela, logo tocando o queixinho papudo.
_Sim – disse lançando um obliquo e triste olhar para a menina magricela e alta que rodopiava pelo salão, as mãos em arco sobre a cabeça, ora levantando um pé graciosamente, ora outro; inclinando-se em reverencia na ponta dos pés.
_Não precisa ficar assim – foi dizendo a velha professora sorrindo, as mãos na cintura como asas de uma xicara, desviando o olhar com admiração para eximia bailarina - cada uma tem seu talento – e suspirando no peito quase achatado – mas há de convir que Leticia é mesmo um fenômeno de bailarina.
Ducha suspirou vendo que Leticia levantava uma perna ao longo do corpo, num gesto rápido e hábil, encostando-a junto ao rosto. Magrela, elegante, linda, nem tanto, negra, tinha vontade de gritar-lhe nas fuças, tinha os cabelos crespos rebeldes, queria ver que pente ou escova daria jeito naquilo, hum, enquanto os seus eram cachinhos claros, desabou chorando na cama, de bruços, batendo os punhos com força contra o travesseiro, ainda era uma manhã abafada e ensolarada, e as perninhas curtas e gordinhas sacudiam-se junto com o pranto, que adiantava, sebo, era gordinha, sem pescoço, bico de mafagafo, como debochava Vinicius, e aquele safado arrumou aquela garota, está vivendo com ela, quase casado, apaixonado, ouviu mesmo Danilo comentar com os outros, em tom de deboche, que Vinicius andava tão apaixonado e imbecil que ouvia sertanejo, Universitário, e gargalhou alto, Charles, louro, cabelos compridos, ainda estaria namorando a desengonçada da Meida ou já estava com outra? A verdade que ela a Duchinha andava meio sem amigas. Estava se sentindo velha, dezoito anos, era hora de ter juízo né, fazer faculdade filha, hem, era a mãe aconselhando, vendo-a roer uma barra de chocolate, sentada à mesa, com ar melancólico, Fazer novos amigos, acrescentava tentando buscar animo naqueles olhinhos de conta, Maio é dezenove.
Deus, era março, o que ia fazer, foi despertando, tonta, tomada pelo frescor do ar refrigerado, espiando pelo vidro da janela, embaçado pela chuva que descia torrencial, lavando o vidro como lagrimas copiosas. Estava chegando aos dezenove, nem tinha namorado, nada. O que seria da sua vida? Uma solteirona, gorda, sem pescoço, tocando um piano, com um gato negro enrodilhando na manta em seus joelhos, e olhou indignada para o seu gato Lowe, deitado, enrodilhado em cima da escrivaninha, ao lado do computador. Puxou-lhe o rabo, riu amarga vendo o bicho se espichar e pular atônito, sem achar saída enroscando-se debaixo da cama.
As aulas de piano, o francês duas vezes pela semana, mas aquele dia abafado, enfim viera a tempestade, e ocupava-se no portão. James. Por que este não era amigo do Danilo? Claro, claro, foi sentando-se em frente ao computador, mas sabendo que a tempestade rugia com ecos nas paredes e portas que tremia, Ele é muito novinho para mim, que coisa ridícula, ficar apaixonada por um garoto que está no colegial ainda. Ver ele passando, pedalando a bicicleta, de bermuda até o meio da canela, sempre preta, correntinha presa ao cinto, a camiseta do colégio, mochila nas costas, os cabelos claros arrepiados, curtos, piercing nos lábios, assim bem no meio do lábio inferior. Suspirou, suspirou, que ódio, três, quatro vezes, ele já devia estar sacando que ficava ali esperando ele passar, mas nem olhava o metido, cara de azedo igual a do Charles, não, não, ele é bonitinho, muito bonitinho, deve morar lá no final da rua – ou é o começo da rua? Ah, estou atônita, acaba de crer, suspirando, abrindo a janela, desligando o ar, observando o céu se limpar, o sol tentando romper seus raios entre o cinza desvanecido da tempestade que amainara, um arco íris entre o horizonte e um teto retangular de uma casa ao longe. Pode ser a casa dele, e suspira sentindo a brisa fresca de fim de verão. James, escutou a avó cumprimentando-o, quando a velha passava voltando do mercado, no shortinho curto, toda periguete ridícula, Que vergonha! James, James, manda um beijo para sua mãe, diz a ela que estou lá noTom’s amanhã. Tom’s, ficou imaginando Duchinha, mas não se deu ao ar de perguntar à velha, perguntou a Danilo, ele chegando arfante, meio elétrico, sacudindo os cabelos, vaidoso com a franja emo caindo nos olhos, dissera que Tom’s era um clube de mulheres, boate onde homem faz striper. Então a mãe de James frequentava estes lugares, ora, bom, pelo menos não era tão velha quanto sua avó, talvez tivesse uns trinta e cinco no máximo. James devia ter no máximo dezesseis. A velha já andava pelo jardim, tocando as corolas úmidas das rosas, admirada, podia-se ouvir também o espanto da vizinhança que murmurava às calçadas e além dos outros muros admiradas com a densidade da chuva, que lavara tudo, refrescara, desoprimira um pouco a atmosfera. Mas é ela, que era aquilo a sufocando, a ponto de buscar refrigero assim respirando fundo?
Por que você não tenta andar de bicicleta, hem, pedalar é muito bom... Para emagrecer, era isto que Leticia estava tentando dizer, as duas pela calçada aquela noite fresca e estrelada, movimento de gente nesta e naquela calçada, nos portões, as janelas de algumas casas ainda arreganhadas, as salas escuras, iluminadas pela luz da televisão ligada. Vinham da festa à casa da Michelle, uma magricela com cara de criança que estava fazendo dezoito anos, dava para acreditar, era Ducha agora se perguntando, aninhada ao gato em seu colo, sentindo lhe as patinhas a amassar o regaço do vestidinho cor de rosa. James não estava lá como acreditou. Que pura perda de tempo. Esperou com tanta ansiedade que Leticia viesse chama-la ao portão, roendo as unhas caladas, nem prestando atenção no sorriso da mãe que adivinhava a sua ansiedade, “Não estou mostrando ansiedade alguma”, mas estava claro, e sabia disto, tudo por que acreditava que o James estava lá, e como não?, se a festa era a Festa, mas chegando lá acabou de crer que a Festa na verdade era uma festa. Bolo colorido de dois andar, com bandejinhas de cajuzinhos e beijinhos norteando, muitos pasteizinhos quentinhos, batata frita, pipoca, bolinhas coloridas na parede, até mesmo aquele chapeuzinho de cone, Credo!, era aniversário de criança?, e ainda tinha a mãe da magricela, tão mais magricela, com saboneteiras nos ombros, os dentes arreganhados rindo, “Minha garotinha tá virando mocinha”, que bocó, e os garotos, o mais velho devia ter doze anos, tinha ambos os joelhos ralados e exibia com orgulho para um outro dentuço como premio por estar andando de patins. Quanta perda de tempo, se soubesse, se adivinhasse, sebo, jamais poderia ter adivinhado, o que James iria fazer ali?, e ela, sim se acabou nos cajuzinhos e beijinhos antes mesmo que o bolo fosse cortado, mas pediu refrigerante diet ou light, tinha, foi inquirindo com o biquinho de passarinho, pegando com a mãozinha de dedinhos curtos, toda delicada, jardineira cor de rosa não, é macacão!, mas a mulher com saboneteiras veio com esta dizendo, Mas você é ainda a mesma menininha rechonchudinha, e teve uma ânsia de gritar, mas seus labiozinhos curtos estavam quase que colados de glacê.
_E você não mora ali naquela rua – comentou Ducha quando atravessavam o cruzamento, detendo-se mesmo a frente de Leticia, que estava com uma tiara linda nos cabelos crespos um pouco úmidos por creme, brilhantes, e o vestido cinza de alça fina. Achou-a parecida com a Meida, mas não tinha aquele ar desabonado, desengonçado que esta, tinha mesmo era o nariz empinado, a magrela.
_Vou na casa do James – respondeu suspirando, as mãos fortemente cruzadas, como uma adulta.
_James... James – gaguejou confusa Ducha, pestanejando, os labiozinhos tremendo.
_Acho que você conhece ele, por que você me perguntou se ele ia a festa, ontem – sacudiu os ombros – eu disse que achava que sim.
_Não, não, eu não conheço ele – disse num risinho quebrado, tentando disfarçar o embaraço, cruzando as mãos pelas costas – só assim de vista – riu como acometida de cocegas – acho ele bonitinho, uma gracinha, todo estiloso.
_Estamos ficando – respondeu Leticia num tom animado – sei o que você está pensando – foi estalando os dedos juntos aos olhos dela – ele é mais novo que eu – desviou o rosto num gesto meigo – é mesmo, só tem quinze anos, o fedelhinho .
_Credo – respondeu Ducha num tom de voz tremido, cansado, que ódio, que ódio, vontade de esganar aquele pescoço comprido, puxar aquela tiara brilhante daqueles cabelos de Bombril, cabelos de Bombril sim, esbravejava por dentro, o bicho roendo as entranhas, parecia estar engolindo uma pedra a seco – uma criança, Leticia.
_Criança, hem, hum – respondeu num ar petulante, virando os olhos grandes – beija bem – acrescentou num riso suspiroso e soluçante, quase histérico.
_Mas, amiga – foi tentando Ducha num tom de ar notavelmente infeliz, vaga no gesto de tocar a sua interlocutora – você tem dezoito, dezoito – bateu as pestanas, os olhinhos de conta lançando chispas de ódio.
_Dezenove – respondeu num tom decidido a bailarina, girando sobre os calcanhares a andar em direção ao portão de ferro a sua frente, e Ducha mesmo lançou um olhar carregado de sofrimento vendo os dedos compridos daquela apertando a campainha no alto do portão, tratando de se despedir, mas não quer ficar para conhecer ele pessoalmente, perguntou Leticia antes que o portão se abrisse, e ela desabalaria em carreira se suas perninhas curtas permitisse, mas se virou quase arfante, as bochechas inflando, de rosas passando para vermelha e se demorasse mais um pouco estaria roxa, sem ar, precisou morder uma das mãos em punho, a garganta seca, e estava longe, estava longe e ainda pode ouvir os estalinhos de beijos, risinhos, ah, o vento bandido soprou forte trazendo, conspirando para sua infelicidade.
Abraçou mais forte o gato negro e quente como se fosse um bicho de pelúcia contra o rostinho rechonchudo, e o bicho saltou arisco, arranhando-a junto ao punho. Revoltada lançou lhe um pequeno pontapé que apressou o gato em fuga pela brecha da porta entreaberta. Ficou atenta aos ruídos que vinham lá de baixo, a família já se aprontando para o jantar. O que adiantaria comer aquele talo de aipo agora no jantar se passara a tarde toda, depois que voltara do curso, comendo bombons. Havia sonhado que James dava-lhe uma caixa de bombom, destas caixinhas bonitinhas, cheia de bombons enfeitadinhos, em formato de coração, mas qual, James estava com a magrela, negra da Leticia. Uma garota velha, preta, magrela, cabelo de Bombril, pensou cheia de ódio, admirando-se no espelhinho de moldura cor de rosa na parede cor de rosa do seu quarto. Ela tinha um quarto cor de rosa. Seu animal de estimação era um gato negro que a ignorava. Estava velha também, dezenove em maio. Meida namorando o loirinho cabeludo do Charles, azedo!, Danilo todo final de semana sem voltar para casa, Andrea estava noiva, Olga contou a novidade, quando passou como sem querer em frente ao salão onde ela trabalha como manicura, entrou como quem não quer nada. E você Duchinha?, queria saber, resmungou detendo o gesto de roer as unhas, logo ali num salão de cabelereiro e manicura, não, não, e queria saber se ela enfim tinha um namorado, hem, hem, deve estar pensando a Duchinha vai ficar mesmo para “titia”, manta sobre os joelhos, um gato gordo enrodilhado sobre os joelhos, assistindo programas de auditórios, não, não, gritou histérica, e quando ouviu a voz da mãe chamando-a em tom de preocupação no topo da escada, ligou o som, Linkin Park, fez que fazia os berros, então lembrou, Deus, a banda preferida dele, do James, via-o passar de bicicleta com a bermuda preta com a correntinha no cós, a camisa cinza com o logotipo daquela banda, sim e Slipknot também. Namorando a Leticia. Ficando, ela disse ficando, mas da no mesmo, disse amargurada, dando um tabefe no radio, a musica pulou ainda mais num berro agudo, elas falam ficar, mas é só para não dizer namorar, para parecer diferente, bah!
Não tinha mais coragem de conectar-se as redes sociais, pois lá estava os perfis de Andrea, Meida, Charles, todos em um relacionamento sério, e o dela o agudo solteira, livre, solitária, sentada a frente do computador, manipulava o mouse, e se mudasse o seu perfil para viúva, gargalhou, esticou o máximo que pode o bracinho curto para fechar a porta, acabou caindo de quatro no chão, rolando, rindo, bateu a porta, ergueu-se atônita, arfante, isolada em suas quatro paredes cor de rosa, as cortinas balouçando leves e cor de rosa junto à janela aberta. Tinha Leticia como amiga no Facebook, mas se futucasse assim o perfil dela, sim, a foto dela na ponta dos pés no corpete e saiote branco gris, as mãos em arco sobre a cabeça, mas tão pequena, que assim nem se podia ver aquele cabelo de Bombril, nojenta, esbravejou com rancor contra a tela do computador, mas fuxicando os amigos dela, tremeu os labiozinhos juntos como um biquinho, suspirou, era ele James. James. O rostinho imberbe dele, o piercing de argolinha preso ao lábio inferior, a orelha com brinco, ou era alargador, mas ele ainda é tão criança, tão criança, a mãe então frequenta boate de striper, riu cascateante, só, olvidada de um berro que deve ter vindo lá da calçada, atravessou sua janela aberta. Bateram na porta, pois trancara.
_Dasha, estão te chamando ai no portão, é uma amiga sua – a voz da mãe.
Abriu a porta, suspirou, seria Meida, não, não, disse a mãe, mas o irmão havia deixado entrar já, solicito, gentil, cabelinho nos olhos, blusinha de malha preta grudada no corpo. Leticia, dava para crer, quase nove da noite, o que queria ali em sua casa? Aproximou-se a vendo na porta, a rechonchudinha Duchinha em um conjuntinho rosa desmaiado, rosa bebê, pegou-a com as mãos de dedos longos, os cabelos tinham uma trança única presa pra trás, Cabelo de Bombril, pensou num riso cínico nascendo nos labiozinhos curtos.
_Já estava dormindo Ducha – perguntou num tom de quem estava preocupada com o adiantado da hora.
_Imagina, tão cedo ainda, num calor destes – mas sacudiu-se buscando uma explicação.
_Vir pedir se você pode ir comigo ate a casa do James – disse num tom meigo, ainda segurando as duas mãozinhas da menina. James, James, era o coração batendo, as bochechas de súbito tornando-se tão rosadas quanto à cor de seu conjuntinho mostrando as coxas gordinhas das perninhas curtas que demovia de vez o sonho de bailarina da menina.
_Sabe que a mãe dele colocou ele de castigo – foi dizendo Leticia num tom mais adulto, de quem ri constrangida como se fosse com ela, mas Ducha lia algo de vaidade de estar namorando um menino, tão menino que era ainda submetido a castigo materno – não quer que ele saia, mesmo tirou a internet do pobrezinho – e Ducha fez um muxoxo caricato inclinando a cabeçorra para um lado dos ombros – tudo por que descobriu que anda faltando aula para ficar no cyber jogando game, pode – mas o tom de indignação no “pode” Ducha nem conseguiu entender se era pela atitude irresponsável de James ou a autoritária da mãe dele.
Avisou brevemente a mãe, assim aos berros, que estava indo ali e já voltava, mas seu coração estava num descompasso, tambor perdido por uma vereda deserta, seus olhinhos de contas miúdas, tão apertadinhos no rosto balãozinho, sentiam a ardência ao verem-se obrigados a pestanejar, e ia quase saltitante acompanhando a amiga magricela, cabelo de Bombril, não era o que pensava ainda pouco, mas agora ia ao lado dela. A noite tinha uma atmosfera fresca, com jasmineiros cheirando de algum quintal, embora pelos muros fossem dálias de corolas gordas e amarelas que pareciam despencar. Leticia falava rindo, dava saltinhos no ar, os braços compridos indo na frente, Como um garoto como o James fica de castigo, hem, ria lançando a duvida, não podendo acreditar, mas não via que era apenas um menino, um menino, o James, ela não tinha vergonha de namorar um garoto tão novo, hem, quinze anos, e a língua até ousava no labiozinho curto, suspirando, adocicada pela atmosfera de jasmim.
A casa dele é que parecia ter o jasmineiro junto ao portão, atrás do muro não muito alto, pois dali o cheiro era forte, doce, embriagante. Ducha envolveu-se, as mãozinhas cruzadas ao regaço do conjuntinho rosa desmaiado, pensando se levantava os olhos ou não, como daquela vez não cheirara o jasmineiro? Ou seria mesmo um jasmineiro, talvez fosse apenas divagação da sensação apaixonada de estar ali. As atendera uma boa senhora, rosto gordo, cabelos curtos, vestido recatado, era avó do menino, que comentou rindo, alisando o vestido como se ajeitasse alguma ruga, que James estava à mesa da cozinha, estudando, ou parecendo fazer isto, e foi conduzindo as duas meninas pela sala um pouco bem arranjada, mas com estofados simples, com poucos adornos e quadros na parede, foi reparando Ducha, ainda sentindo o doce e persistente cheiro de jasmim ali dentro, e lá estava ele, mas é claro que o corpo magricela de Leticia não o cobriu de todo, ficando de pé assim ao lado de onde ele estava sentado, e Ducha manteve certa distancia, sentia-se acelerada, tensa, suspirosa, mesmo suas bochechas estavam tão rosadas, virou o rosto amargurada notando que Leticia se inclinava para beijá-lo nos lábios, então para isto que trazia ela ali, para ver o quanto namoravam. Ele usava uma camiseta branca, bermuda cinza até os joelhos, tinha pulseirinhas de fitas coloridas num dos punhos e no outro um acessório de roqueiro, e quando Leticia puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dele, pegando-lhe o livro que ele tinha sob seus olhos, ele pode ver que a namorada então tinha trazido uma amiga com ela.
_Está é a Duchinha, James – apresentou convidando a amiga a se aproximar. Ela veio meio sem graça, rindo, tentando na ponta da sapatilha.
_Oi – disse ele apenas, escondendo os olhos, o sorriso, o lábio inferior “ferido” pelo acessório. Leticia agia com um lápis nos exercícios do livro, os joelhos muito juntos, o queixo denotando a altivez dos olhos atentos no que fazia, enquanto James parecia cada vez mais criança ao lado dela, as mãos entrelaçadas e presas entre as coxas, um sorriso bobo, os cabelos entre enroladinhos e espetados, clarinhos, tudo fazendo Ducha suspirar, sorvendo o aroma da atmosfera de jasmim, ali parada, absorvida na imagem do garoto como quem admira uma gravura que a embevece, até que sentiu uma mão sobre seu ombro, inclinou o pescocinho mínimo, sorriu para a senhora, a avó dele, que falou que ela se sentasse, não ficasse assim de pé, estava preparando um bolo, dava para sentir o cheiro, e Ducha agitou o narizinho pequeno entre o rostinho balofo e ruborizado, Era de jasmim este bolo, teve ânsia de perguntar, mas sem virar da atenção do livro, o lápis trabalhando ágil, Leticia disse que Ducha se sentasse, apontando com a testa a cadeira à ponta da mesa, bem ao lado de James também. Ele continuava naquele modo submisso, criança, bobo, assim ao lado dela, vendo-a fazer o seu exercício da escola. Ducha apoiou os braços sobre a mesa, as mãos segurando o queixo, olhou James, ele levantou os olhos, sorriu para ela, sentiu-se desarmada de imediato, Que sorriso lindo, pensou, mas tão menino, tão menino, será que ele faz com esta magrela de cabelo de Bombril, considerou com rancor guardado num sorriso sonso, permanente nos labiozinhos curtos, agora as mãozinhas de dedinhos curtos tamborilando pela mesa, notando que ele estava prestes a abaixar cabeça sobre os braços e esperar obediente, mas então Leticia mostrou-lhe o exercício feito num grande tom decidido, Pronto, é só você cobrir com caneta, com a sua letra, tá tudo prontinho. Ele arrastou o livro até sob seus olhos, sorriu, agradecendo, fechando-o com o lápis dentro, suspirando, virando as costas para Ducha, pegou Leticia pelos quadris, beijou-a nos lábios, mas a menina deu-lhe um tapinha de leve no rosto, mostrou a amiga atrás dele, e pobre Duchinha estava com o rosto em brasa, nem podia disfarçar, mas a mão da mulher fez-se entre os três, depositando a bandeja com o bolo redondo e amarelo ao meio.
_Vou trazer refrigerante – avisou num sorriso boníssimo ainda, olhando cada um à mesa como quem ver crianças inocentes ainda.
O refrigerante tinha sabor doce gelado de borbulhas, o bolo um leve gosto do perfumado cheiro de jasmim, impregnado como que sob a cada movimento e gesto, a brisa em si que correu entre os três no silencio em que comiam, então a avó dele, que ficara observando-os comendo, num ar embevecido, acudiu de imediato a sala ao ouvir a voz da filha que chegava.
_Minha mãe – disse num tom seco de amargura, deixando cuspir alguns farelos, James, com olhos e atenção apenas a Leticia, e Ducha sentia já mordendo um pedaço de esponja que não acabava mais, o cheiroso bolo de jasmim.
Era uma mulher magra, pequena, com ares nervosos e como que descabelada, então era essa que frequentava a boate de striper, pensou Ducha engolindo o bolo esponjoso com auxilio refrescante do refrigerante de borbulhas. Ela conduziu a todos para sala, com seu ar agitado, jogando a bolsa sobre o sofá, inquirindo Leticia, que se sentou no braço do sofá ao lado dela, se tinha visto mesmo ele fazer a lição, hem, olhando-o assim também por sobre os ombros, sobrolho carregado, e James encolhendo-se em si no umbral da porta.
_Fez sim, dona Laila – disse Leticia – eu sou testemunha – e seu ar era tão firme, decidido, adulto como a professora do moleque, ali encostado no umbral divisório, com ar de pouco caso, enfastiado.
_Mãe, a Leticia vai dormir aqui – disse James, e quem se assustou, empalideceu a ponto de ficar da cor de papel foi Ducha, isolando-se em um canto, mesmo procurou equilíbrio junto a uma parede, enquanto a avó saia de fininho pela porta da frente, um pouco encabulada como fosse.
_Olhem lá o que vocês vão arrumar hem, crianças – disse a mulher se levantando num ar esbaforido – se previnam, hem, você é muito novo para ser pai menino – disse pegando no queixo do filho magrelo, praticamente da altura dela, quase a ultrapassando.
Leticia pegou nas mãos de James, os olhinhos de contas de Ducha foram para ali, mas ela iria sozinha para casa, hem, Hã, não, não, James a levaria de bicicleta, hem, linda, obrigada por ter vindo comigo, hem, James leva a Duchinha até em casa, eu fico aqui conversando com sua mãe, enquanto te espero, e sentou-se no braço do sofá novamente.
Ducha sentiu certa emoção, mesmo sendo carregada com dificuldade naquele quadro da bicicleta, mas sentia as coxas dele tão perto dela, mesmo os joelhos dele encostavam ao corpo dela, ela sentia certo frisson; a respiração quente, pois ele arfava no esforço de pedalar, assim em seus cabelos, e reclamando ofegante e debochado – nojento, azedo! – nossa você é bem pesadinha – e cascateou uma gargalhadinha – que ódio – gemeu Duchinha fechando os olhinhos, mordendo os labiozinhos curtos para não xingar.
_Você é bailarina também – perguntou James arfando no esforço de pedalar, olhando para direção, ela desviou os olhinhos perspicazes para os braços dele em torno dela, alcançando os guidões, Sim, sim, sou bailarina.
_Poha, como assim... digo – arfou, riu – gordinha, pesadinha.
Segurou-se para não o acertar com um murro no queixo, derrubaria ele, ela e a bicicleta e não teria pernas longas suficientes para uma carreira, e também, seu coraçãozinho estava em frangalhos, as lagrimas queriam romper dos olhinhos, se ousasse falar algo sairia tão embargado que seria fácil ele sacar que havia destruído com ela. Disse então que tocava muito bem piano, levava Chopin, e a voz saia tremula, quase chorosa. Conhecia Chopin? Não, não, foi ele freando, quando chegaram próximo a casa dela, mas queria aprender piano, disse, assim sentado no selim da bicicleta, as mãos nos guidões, os pés fora dos pedais, em posição de descanso, e ela tinha todo um embevecimento por ele assim.
_Queria aprender tocar as musicas do Evanescence, saca, aquelas já meio “clássicas” – disse num modo assim, a língua brincando com o piercing no lábio inferior.
_Quer que eu te de umas aulas – pediu mais que ofereceu ou perguntou, por que tinha um tom tão agudo de misericórdia que chegava a dar pena, foi pena dela aquele menear de cabeça dele indeciso como quem pode pensar no assunto, e contornando em cima da bike, despediu-se com um aceno vazio, deixando-a tarraxada, cheinha e amargurada ainda ali no portão vendo a rua silenciosa, as portas e janelas fechadas nas vizinhanças, um gato branco desfilando pelos muros com seu rabo empinado, e nem mais vulto dele, que sumira na escuridão da primeira esquina, pois alguns postes se desiquilibravam, e entrou, atravessando a alameda de pedrinhas iluminadas que conduzia seus passos do portão até dentro da casa. Danilo estava deitado no sofá, assistindo um show de rock pela televisão, o som bem baixo; levantou os olhos sob a franja quando ela passou.
_Tá querendo namorar aquele pirralho, é – disse, e ela conteve-se no primeiro degrau da escada, as mãozinhas nos quadris, Então estava espionando ela – ele é muito pirralho para você, carinha de cambaxirra – continuou num tom sarcástico, no mesmo olhar, os pés cruzados, um dos braços pendendo para fora do sofá – e depois, sou obrigado a te contar – pigarreou rindo – ele é veadinho, e nem adianta ficar com está cara de que “não acredito, é despeito seu”, por que sei de fonte fidedigna – acrescentou ainda, mas ela não quis saber nada, precipitou-se o mais que pode escada acima, ainda ouvindo a risada gutural e debochada do irmão a perseguindo, até que se isolou em seu quarto, no seu “paraisozinho cor de rosa”, mesmo as luzes apagadas, um abajur na cabeceira com seu cone em forma de pétalas cor de rosa, atmosfera em penumbra cor de rosa. A janela fechada, sentou-se na cama, abaixou a cabeçorra, contendo, tentando reter as lagrimas, mas ardia-lhe o peito como chamas, facadas, fagulhas, levou as duas mãozinhas em punho sobre o seio, rompeu-se o pranto, no pensamento- coração tocava sonata de Chopin, mas aos poucos seu pensamento – cérebro foi encontrando a musica do Linkin Park, os gritos delirantes, a bateria eletrônica, a guitarra musculosa, e nem soube como ligou o som naquela altura, apenas queria rodopiar na ponta dos pés, as mãos em arcos sobre a cabeça, levantar as pernas na altura da cabeça, ah, a glória, magrela, cachinhos dourados, pequenina, um biscuit... e James dormindo em seu quarto, abraçadinhos, podia saber que ele usava cuecas lindas dessas boxer, tipo shortinho, ele sempre deixava a amostra o cós, a bermuda um pouco frouxa, pedalando sem camisa, o corpinho branquicelo, liso, magérrimo, lindo, lindo, tão menino, tão menino, não pode odiá-lo, não pode, é forte, é forte, estranho, cadê Charles, azedo!, nessas horas, ah e Vinicius com toda aquela bazofia, os sovacos cheirosos, o peito achatado, ah, cadê?
_Dasha, Dasha, você está louca menina, abaixa esta musica – esmurravam a porta cerrada, esbravejavam – está enlouquecendo toda a casa – eram vários tons de vozes, e então ela rodava, rodava, mas era zonza, zonza, pelos cantos das paredes, o gato negro refugiara-se debaixo da cama, assustado e acuado.
O silencio de repente estourou como um pontapé, uma bola de ar se esvaziando a se espremer contra a quina da parede, sentiu certo tremor, desmaio, sono nem sabia, mas se sentiu carregada, confortada, abriu cinicamente um olho, a luz acesa, de súbito, apagou-se de novo, e mergulhou num sono perturbado sem um movimento como se punindo, mas se encontrando num sonho – era sonho? – uma manta cor de rosa desmaiado sobre as pernas, o gato negro, mas de um negro violáceo por causa da luz pobre e opaca, enrodilhado, único ponto negro no desmaiado rosa, e a respiração arquejante marcava o compasso para o término do pesadelo como ponto lucido no presente.
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Rodney Aragão