Encontro
A placa, como flecha, zunindo ao lado do espelho retrovisor, indica a distância a ser percorrida até o destino escolhido. Faltam 29 quilômetros até que o momento há muito desejado se cumpra. A estrada, antes reta surfando sobre os montes, agora me parece travada, como se tivesse sido revestida de algum tipo de goma que gruda em contato com os pneus de meu carro.
Meu coração pulsa de maneira descompassada, a emoção surgindo sem planejamento ou autorização prévia diante da placa de entrada da cidade. Sigo a indicação e tomo o estreito caminho em direção ao que parece ser o centro comercial. Uma antiga casa de esquina me recebe logo na entrada da cidade, com arbustos na calçada recortados em forma de pássaros. Esta é uma cidade antiga, cheia de recordações, como ela um dia comentou.
O ranger dos pneus nas ruas de paralelepípedos me remetem à minha cidade de infância no interior, e causam um sentimento nostálgico e puro. Estaciono na Rua Coronel José Júlio. Quero andar um pouco pela cidade, sentir seu ar, olhar para as pessoas que passam misteriosas.
O jeito antigo chique do restaurante me convida a entrar. “Companhia de Minas”. O galpão, novo querendo fazer ar de velho por charme, faz par com o muro, de antigos e enormes tijolos à vista recém pintados, que querem aparentar serem novos. Sento-me na mesa que dá uma visão de todo o galpão. Observo de maneira atenta cada olhar e fisionomia, como que procurando em cada rosto uma pista, ou ponto de contato com quem é motivo único de minha visita na cidade. Pergunto sem falar a cada um sobre ela, e procuro sua fisionomia em cada rosto desconhecido.
Escrevera sobre minha intenção de estar na cidade, mas não indicara o dia. O motivo era bem simples, talvez respeitoso. Como sempre, desde o início de nossa relação ela estabelecera de maneira clara os limites de nossa aproximação. No mundo de sonhos que vivemos, os limites atravessavam as profundezas infinitas do coração e do desejo. Mas não no outro mundo. Não indicar o dia da visita foi a forma que encontrei para conciliar o respeito ao limite dela com o meu desejo de alguma forma estar mais próximo de sua vida do lado de cá de nossa existência.
Ando pelas ruas à procura de um local. Os dados são vagos, não sei mais se desde a nascente, ou se no decorrer dos anos as informações recebidas foram se dissolvendo, como água evaporada pelo tempo. Um local onde ela estacionava o carro nos dias tristes e chorava. Havia uma paisagem à vista? Um parque? Pergunto à moça da sorveteria. Talvez o horto, ou quem sabe o Cristo.
Quero encontrar este endereço. Fora do tempo e sem sua presença, assim mesmo quero estar neste local, para estar ao seu lado, para dizer a ela que sempre estarei ao seu lado.
Contorno a área do horto. Não encontro área de estacionamento, e seu interior me parece escuro e rústico. Subo em direção ao Cristo. O portão fechado está fechado.
Desço escorregando pela rua de terra na tarde escura, iluminado por um raio que desce furioso, anunciando uma grande tempestade. Tomo a rua que leva à estrada. Na altura do horto, nuvens carregadas começam a se desmanchar em torrentes de lágrimas. Dentro do carro, uma chuva silenciosa turva minha visão. É multicolorida: existe catarse, empatia, tristeza, alegria, os sentimentos misturados e fazendo um arco-íris no firmamento de meu espelho retrovisor enquanto me esforço para ficar atento ao movimento da estrada.
Desde sempre convivemos com limitações, e aprendemos a tirar das frestas possíveis do tempo e das circunstâncias momentos inesquecíveis. Também foi assim hoje: bebi de sua presença possível como que em conta gotas, desejando que ela, como chuva torrencial, me cobrisse por inteiro. Mas cada gota que extraí dela hoje estará guardada em meu corpo e alma. Para sempre.