A Navalha de Occam e o Uísque.

O sangue escorria vermelho vivo, da ferida para a lâmina da navalha. Naquela tarde de domingo, fazia minha barba, meio atarantado, meio perdido. Olhava no espelho, não reconhecia o homem do outro lado. O toque do telefone me distraiu e assim, errei o corte. Segurei um pouco a ansiedade e não atendi. Estanquei o ferimento com um algodão e terminei o serviço sem pressa. Voltei ao meu quarto e joguei-me em minha cama. Minutos depois, o telefone tocava de novo. Apesar do revirar do meu estômago, da sensação de urgência e de toda a agonia que me acometeu, deixei o aparelho tocar indefinidamente. Não atendi.

Sabia quem era e não queria ouvir sua voz. Aquela jovem, que agora me ligava com certa insistência, era também capaz de desaparecer e passar meses sem me dar a mínima atenção. Imprevisível, egoísta e adoravelmente cínica. Eu sabia que atendendo a ligação, correria o risco de ceder ao seu encanto. Aquela mulher tinha a capacidade de ser sincera até quando proferia a mais solene das mentiras. Conseguia incutir dúvida em todas as minhas certezas. Ao ouvi-la, toda a minha resolução se desmancharia e eu terminaria em seus braços. Tanto me custara deixar de pensar nela. Não estava disposto a voltar àquele círculo vicioso onde era certo que eu sairia perdendo. Tão certo como a navalha cortara minha carne, tão certo como minha pele cedera ao aço, a razão cederia ao desejo e eu me veria novamente à mercê de seus caprichos.

Não era a primeira vez que aquilo acontecia na minha vida. Eu colecionava mulheres inconstantes em meu passado. Aquela era diferente, mas ao mesmo tempo previsivelmente igual às outras. A mesma situação em circunstâncias diferentes. O mesmo tipo de mulher... Só variava o nome, RG e CPF. Pois bem, a mulher da vez era um pouco mais jovem que eu. Bastante bonita, carinhosa, maternal e de boa conversa. Fazia questão de aparentar conservadorismo, caindo em contradições engraçadas em suas tentativas de me convencer disso. Ganhou-me rapidamente. Hoje mal sei como aconteceu, nem quando. Só me apercebi do buraco onde havia me enfiado quando já estava com areia até o pescoço. Viciei-me... Viciou-me.

A tive por inteira por um mês, não mais que isso. O resto foi vício e crise de abstinência. Tentava me afastar e ela puxava-me de volta. Nos primeiros dias, mudei planos, ergui castelos e sonhei como um adolescente. Ela achava graça. Quando sumiu pela primeira vez, vi tudo que imaginei desabar e virar pó. Planos, castelos e sonhos nada mais fez sentido. Esse era o tipo de drama que eu constantemente repetia em minha vida. Tudo tão familiar e repetido...

Por muito tempo, tentei entender o ela pensava, o que ela sentia. Tentei entender. Procurei, em vão, explicação para aquele comportamento tão errático. A resposta estava na minha frente. Não queria aceitá-la, portanto multiplicava premissas em busca de uma resposta mais amena.

O amor não é cego, é estúpido. A resposta certa era a mais simples. “Lex Parsimoniae”. Eu era um passatempo. Queria-me à sua conveniência. Quando me queria, se dava intensamente. Quando não, oferecia-me palavras rudes ou silêncio.

Cansei-me.

Naquele momento, com minha face ardendo ainda do corte, resolvi acabar com aquilo tudo. Cortaria o drama, cortaria a angústia. Cortaria o peso extra. Não mais aceitaria o inaceitável.

Saí à rua naquele domingo. Num bar qualquer, me embriaguei sozinho, pelo menos, até que um homem de uns quarenta e tantos anos sentou-se ao meu lado. Olhou-me, sorriu, e pediu uma dose de um uísque barato com gelo.

“Uísque ruim é mais fácil de tragar se misturado com gelo.” , disse-me.

“Certamente”, respondi.

O homem sorriu novamente e tomou um gole da bebida. Pensou calado por uns instantes. Olhou-me e disse-me em tom solene.

“A embriaguez do Uísque ruim é a mesma do Uísque bom. A diferença está no dia seguinte. Assim como na dose. Nunca se embriague de uma bebida ruim. Mas, não se embriagar, não quer dizer que você não possa tomar um ou dois goles. Mulheres são como o Uísque, garoto. Só se embriague delas, se tiver certeza da qualidade.”

Levantou-se e deixou-me com a cabeça cheia de considerações...

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 20/10/2012
Reeditado em 24/06/2013
Código do texto: T3943280
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