Revelação

Naquele dia ela veio com um vestido violeta. Aquele era seu manto de guerra. Ele sabia que quando vestia-se assim era um sinal de perigo. Nenhum colega e nem seu chefe ousaria chegar perto dela. Ele achava curioso que seu humor influenciasse tanto como se vestiria ou que sua roupa tivesse influência sobre seu humor. Ninguém sabia o motivo, nem sequer em que sentido isso funcionava, mas todos concordavam que havia alguma ligação sinistra entre os dois.

Como todas as vezes que ela se vestia assim, ninguém chegaria perto dela. Mas ele teria que lhe apresentar um relatório nesse dia fatídico. Ele era o responsável pelas vendas do setor e ela sua superior. Com a crise, independente da estratégia publicitária adotada, as pessoas consumiam menos. Ele quase desmaiou quando a viu entrar no escritório, o viram fraquejar e, sem exceção, sentiram compaixão pelo colega. Para piorar seu caso, ele sempre tinha tido dificuldades em falar com ela, independente de sua roupa. Se conseguira chegar onde estava, à frente de uma pequena equipe, é porque era inteligente o suficiente para administrar tudo sem precisar falar, não porque sabia falar. Tanto quanto ele não sabia falar, ela era intimidante. Poucos eram aqueles que não sentiam um certo choque e muitos se sentiam inferiores.

Não houve surpresa quando ele foi visto sair completamente arrasado da sala dela. Nesses dias em que vestia violeta sua sala era como uma masmorra, onde os subalternos e até alguns superiores entravam e pareciam esperar a guilhotina ou ser lançado publicamente aos leões. Ninguém jamais dizia o que ali acontecia mas todos podiam entender apenas com um olhar à vítima da vez. Nesse dia, apesar de não ter sido sancionado de alguma forma, ele decidiu que teria de contar aos colegas o que tinha acontecido. Aquele dia era um dia de festa na empresa e todos iriam jantar e ir a um bar juntos, onde passariam a noite. Seria no bar, coberto pelo burburinho, que ele contaria a seus amigos mais próximos o ocorrido, de forma que ninguém mais pudesse ouvi-lo.

No bar, quando todos pareciam se divertir, bebendo com seus amigos, contando as novidades do fim de semana e fofocas, ele aguardava a hora certa. Ela estava isolada perto do balcão. Além de não ser aproximada por ninguém, nesses dias ela também evitava os outros. De onde estava, apesar de isolada, podia acompanhar os movimentos de seus colegas, admirar a dança das outras mulheres e medir a velocidade com que cada homem esvaziava seus copos de cerveja e relacioná-la com o índice de participação na conversa. Ao fim de seu copo, ela decidiu que era aquela a hora certa e foi do lado de fora respirar um pouco. Ele estava fora de sua vigilância e poderia enfim fazer seu relato. Mas nessa história ele e seu relato não têm tanta importância.

Naquele dia ela veio com um vestido violeta. O rumor se espalhou e passou pelas fronteiras do terceiro andar – o setor dela era estabelecido no primeiro e segundo andares e no terceiro era nosso ponto de contato, os serviços contábeis e tesouraria de nossos setores respectivos – e chegou até mim. Nesse instante gelei. De todos os doze andares – eu trabalhava no quarto – eu era provavelmente o mais tímido e que mais sofria com sua intimidante presença. Eu nunca tinha tido coragem de lhe falar nesses dias. Havia esperado por esse dia há tempos e me preparado a tudo, menos a isso. Não era possível se preparar à eventualidade do vestido violeta. Eu nem sequer cogitara essa possibilidade, sabia que se isso acontecesse não haveria chance alguma e meus planos deveriam ser abortados.

Tive dificuldades para me concentrar naquela manhã. Não podia acreditar que tantos preparativos não levariam a nada. Às dez, após travar na correção de um texto, abandoná-la, e emperrar numa tradução que não me satisfazia, decidi ir dar uma volta. Caminhei, sentei-me num banco no primeiro parque que encontrei, observei os transeuntes. Por uns instantes agora eu era aquela dona-de-casa que buscava desesperadamente um presente e os ingredientes para o almoço que faltava. Eu não poderia voltar pra casa sem meu tempero e sobremesa ideais para receber meus primos que vinham me visitar, ainda mais depois de passarem tantas horas na estrada. Minha tradução faltava esse tempero.

Eu agora era o policial à paisana que espreitava os batedores de carteira. Mas eu era incompetente. Se eu fosse esperto o suficiente para pegá-los, eu não hesitaria em trocar meu trabalho pelo deles. Eu não sou nem esperto e nem me arrisco. O batedor de carteira está sempre se arriscando e sendo visto, menos pelo policial, e sempre vive um tempo de glória. Eu reparei então que os batedores são espertos e rápidos, com média de idade baixa. Um batedor tem que ser jovem, estar sempre inovando e saber parar. O policial só pega batedores com mais de trinta anos. A maioria deles é esperta o suficiente para se converter antes que seja tarde demais. Eles então viram policiais, vendedores, geram o crime de longe, viram intelectuais. Com meus quase vinte e oito anos, uma conversão para batedor de carteira era impossível. Eu sempre fui furtivo, mas não o bastante, e todos os outros requisitos me faltavam.

Me levantei e caminhei mais um pouco. Almocei mais cedo, sozinho, e voltei para o trabalho quando os outros começavam a sair para o almoço. Foi então que a cruzei, na porta do elevador. Paralisado, esperei que ela saísse, seguida de meus colegas, antes que eu pudesse me mexer. Não sei o que aconteceu exatamente nesse instante, mas pude ver seu olhar congelante e algo que parecia ser um esboço de primeiro sorriso do dia. Eu tinha tendência a acreditar em minhas percepções mesmo sabendo que depois descobriria estar errado, mas dessa fez não poderia acreditar em algo tão improvável. Despertei e voltei ao trabalho, sem mais pensar naquilo. Ainda assim, regularmente colocava a mão no bolso e palpava a pequena caixa de veludo verde.

A caixinha estava ali desde muito tempo. Ela não tinha ficado esse tempo todo em meu bolso, mas alternava entre a gaveta de minha mesa, tanto a de casa como a do trabalho, bolsos de calça e paletó e por vezes pousava sobre minha mesa em casa, ao lado do meu computador, para que a pudesse vigiar enquanto escrevia. Naquele dia ela veio com um vestido violeta, mas a caixa só ficava em meu bolso, em minha mão. Naquele dia, o veludo verde não entrou em meus escritos.

Mais de dez anos antes eu havia visto essa caixa pela primeira vez numa vitrine. Até então eu não sabia. Mas quando a vi aberta, - expondo seu interior de madeira, um pequeno acolchoado rosado e aquele anel de prata típico - quando o vi, aquele presente dos antigos pescadores, símbolo de saudade, amor e fidelidade, vi um espelho. Na vitrine vi o reflexo de mim mesmo, e aquela criatura disforme e sombria que não conseguia identificar se fez clara. Ela assumiu a forma do anel. Comprei-o sem pestanejar e o guardei nessa caixa com um entrelaçado tradicional, uma flor para sempre de veludo verde. A partir de então tenho tentado entregá-lo.

Naquele dia ela veio com um vestido violeta. Naquele dia eu havia planejado entregar caixa e anel. Naquele dia eu não teria coragem de fazê-lo. Naquele dia eu tinha a desculpa de ser seu aniversário. Naquele dia seria a festa da companhia para a qual trabalhávamos e lhe entregaria o que tinha há tanto guardado. Tomaria coragem suficiente para vencer seu vestido violeta.

Ao fim do dia, enquanto a maioria ia diretamente à festa, consegui dar uma corrida para passar em casa e me preparar para a noite. Coloquei minha camisa amarela para dar sorte. Sempre fui supersticioso. Escolhi uma gravata cinza, combinando com o anel, e até fiz a barba. Há alguns anos havia compreendido barba em meu estilo e desde então não voltei a ficar totalmente pelado. Naquele dia ela veio com um vestido violeta e eu era uma criança.

Eu sempre fui uma criança. Minha barba que acabara de cortar era somente uma máscara. Por trás dela, meu rosto infantil se mostrou. Mas a máscara não era totalmente eficaz; com ela, meus olhos sempre me traiam. Acho que foi por isso que meu rosto não se adaptou à barba. Meus olhos recusavam a mudança e mantinham o resto tal como era.

Naquele dia ela veio com um vestido violeta, mas naquela noite ela veio com um vestido novo. Ela também passara em casa. Durante o jantar falamos pouco. Ela com ninguém e eu apenas escutei e comentei ocasionalmente a conversa de meus amigos do setor informático. Mais tarde ela continuara sozinha. Nos dias em que vestia seu vestido violeta, até suas amigas a evitavam, o que era recíproco. Enquanto isso eu me isolava em meu grupo, participava passivamente e observava ao redor. Numa mesa ao fundo, um pequeno comitê de velhos discutiam nossos destinos. Esses homens em sobrepeso da cobertura eram os diretores executivos, confraria à parte da nossa. Entre eles e a saída, as pessoas se amontoavam pelas mesas e pista, alguns no balcão patrulhando e, perto do banheiro, três homens pareciam falar dela. Um deles havia sido sua vítima do dia e parecia não querer contar o que passara. Ele dizia estar esperando a hora certa. Apesar de minha curiosidade, decidi que era a minha hora certa e saí.

Já tinha tomado uns cinco copos de coragem, mas ainda não era o bastante. Quando saí do bar, pensei que nunca tomaria coragem suficiente para vencer seu vestido. O vento e a diferença de luminosidade me fizeram com que minha cabeça rodasse. A luz do poste me cegou uns instantes. Na verdade, de tão mais forte, ela escureceu minha vista. Sentei no meio-fio e esperei o mundo parar. O segurança ofereceu ajuda, neguei, me levantei, agora eu já me sentia melhor, e caminhei. Contra o vento e seguindo o cheiro do mar, atravessei a rua e andei pela praia. O bar era quase em frente do lugar onde costumava ir com meus amigos nos tempos de colégio. Fui até a pedra sobre a qual gostava de sentar e fiquei ali olhando para o tempo. Não havia mais donas-de-casa a essa hora, os batedores de carteira que restavam se repartiam nos bares e boates. Eu estava sozinho com a música do mar, seu cheiro único e força e seus cavalos.

Pensei no que ela poderia ter feito com o publicitário para que ele parecesse tão nervoso. Pensei no por quê do vestido violeta. Pensei na morte da bezerra e na de carneiros. Pensei de novo nela. Coloquei a mão no bolso. Aquele lugar me fez pensar na caixa e o anel dentro dela. Minha mão tocou o fundo do bolso preto. Havia esquecido de pegar a caixa antes de sair de casa. O plano foi por água abaixo. Mesmo que tivesse a coragem, não poderia fazer nada.

Foi então que ela apareceu. Aparentemente não vira que eu estava ali. Mas quando percebeu, não parou e veio sentar-se ao meu lado. Ela estava diferente. Ela não parecia mal humorada como nos dias violetas, parecia apenas nervosa. De início não me olhou e eu também não ousei olhar. Quando nos olhamos, vi uma pessoa diferente. Ela não era mais a mesma do escritório. Ela também parecia mais nova, mas não era uma criança como eu. Tinha cabelo e jeito de menina, sorriso de menina, mas seus olhos traziam marcas deixadas pelo tempo e seu decote não era o de uma menina. Ela sorriu.

Foi então que percebi que nunca havíamos falado com o outro desde que eu trabalhava no mesmo prédio que ela. Há quase um ano que eu estava ali e nem sequer sabíamos nossos nomes respectivos. Eu tinha a impressão de conhecê-la, nem tinha certeza da pessoa que deveria receber o anel. Mas agora eu sabia. Só existia um sorriso como aquele. Era ela. Não havia mais lugar para dúvidas, mas a hesitação ainda era grande. Ela era realmente quem eu pensava ser, mas nunca tinha demonstrado me conhecer. Por que?

Há muito tempo, muito antes de ver aquele anel, eu tinha me apaixonado por uma menina do colégio. A paixão é algo engraçado. A paixão é trágica, é por isso que tanto se diferencia do amor. Na verdade não estava apaixonado. Às vezes a paixão queima dentro da gente e achamos que amamos isso ou aquilo, mas dessa vez foi diferente. Aquela vez fora única. Não estava apaixonado. Eu a amava. A paixão é contundente, queima e perfura por dentro. O amor é praticamente assintomático. Eu era um policial fardado na época. Hoje, à paisana, consigo perceber umas coisas a mais ao meu redor. Mas na época não sabia que a amava. A paixão só é trágica porque irônica. Apesar de fardado, ficamos um pouco. Muito pouco porque eu era apenas um recruta burro e inexperiente. Terminamos antes mesmo de começar. E minha paixão começou quando tudo terminou.

A paixão é falsa, ela é irmã da imaginação. A paixão é a cultura e legislação de um país. A paixão é a religião dos fanáticos, as letras dos analfabetos. Por algum tempo carreguei um pedaço de minha cruz, mas à medida que o tempo passava sem que meu destino chegasse, o público diminuía, os soldados sumiam. Num instante de lucidez por entre minha dor consegui perceber que aquela era a semana errada. Meu destino estava ainda longe e pude fugir. Consegui prorrogar por um ano, e em seguida por mais tempo, minha sentença.

Já havia passado um bom tempo sem pensar nela quando vi o anel. Por dias depois sonhei com ela. Por anos sonhei com ela. E quando virei cabo, quando passei a patrulhar em civil, percebi que desde o início eu a amava. Paixão já não havia mais. Ainda que me doesse a distância, sabia que minha paixão não tinha o destino que eu pensava. Por mais que eu olhasse para trás e visse aquele meu caminho patético, sabia que meu destino era para frente, que eu havia abandonado a cruz e o que me restava era a vida.

E ali ela estava, diante de mim, sem demonstrar reconhecimento. Eu sabia que no passado ela sentira algo. Ainda que fosse apenas mais uma ilusão patética, sabia que sentira algo. Mas ela não parecia saber quem eu era. Ou melhor, ela não parecia saber que eu era. Foi então que descobri o motivo de minha juventude eterna. Enquanto eu me apegava a meu amor juvenil, ele se refletia em meu rosto. Meu corpo não poderia envelhecer enquanto eu não envelhecesse.

Sem desfazer seu sorriso, ela me encarou.

Oi.

Aparentemente não era só eu quem tinha dificuldades de locução. Diálogos não são o meu forte e demorei antes de responder, devolvendo-lhe o “oi”. Ali ficamos por um tempo. Diálogos não são meu forte. Eu estava travado. Toda a coragem havia sido dissipada quando soube quem era e que não me reconhecia.

Ela me perguntou se nos conhecíamos. Demorei a responder e ela disse enfim que me achava familiar.

Quando te vi pensei que talvez nos conhecêssemos. Você me lembrou de alguém que conheci e que não vejo há muito tempo.

Era isso. Ela lembrava, mas não me reconhecia. Afinal de contas agora eu estava à paisana. Ela me falou de seu amigo. Há um tempo já não sabia por onde andara e o por quê de passar tanto tempo sem entrar em contato. Como se o contato fosse fácil! Ela ouviu meu silêncio e não insistiu no assunto. Ela baixou um pouco a cabeça.

Sinto falta dele – murmurou enfim.

Talvez ele tenha seus motivos de não ter dado notícias – respondi nem tanto convincente. Às vezes o contato não é tão simples assim. Talvez ele também sente sua falta.

Ela sorriu de leve ainda sem me olhar. Eu não era bom de fala e ficava por muito tempo em silêncio, sem me expor, o que provavelmente perturbava os outros. Mas vê-la sorrir assim sem saber o motivo era angustiante. Outra vez estava desarmado. Outra vez, como na porta do elevador, no hall de entrada, restaurante, bar, corredor do colégio, eu estava pelado. Ela olhou em minha direção. Em seus olhos eu via seu interior de madeira, enquanto ela podia ver apenas o verde do mar nos meus. Desejei que em meus olhos fosse lido o anel. Mas os meus olhos eram infantis e inocentes. Eles não podiam revelar algo que desconheciam. O anel era fruto de uma longa maturação, e meus olhos verdes não deixavam entrever a cor do vinho que viria a ser anos depois. A maturação havia ocorrido apenas internamente. Meus olhos ainda estavam verdes naquele dia em que ela veio com um vestido violeta.

Se fosse ele, eu apostaria que foi intencional.

Eu não entendi o que ela disse.

Se fosse ele que tivesse dito isso, tenho certeza que tinha sido de propósito.

Continuei sem entender o que ela queria dizer e na terceira vez ela me explicou que eu havia errado uma conjugação. Sorri. Não acreditei de início. Não pelo fato de ser corretor, trabalhar com textos constantemente. Não acreditei porque era inaceitável que eu tivesse cometido tal lapso frente a ela. E ela estava certa. Eu teria podido dizer aquilo propositalmente e talvez até devesse tê-lo feito naquele momento. Mas não era eu quem estava falando e foi apenas um lapso que deveria ser imperceptível. Foi uma falha de atuação. Não soube reagir e apenas sorri. Eu estava cada vez mais pelado.

A luz do poste mais próximo vacilou e apagou. Agora éramos apenas sombras à fraca luz da lua. Agora éramos apenas respiração e barulho de riso e voz. Ela ainda pôde ver rapidamente meu sorriso sem jeito antes de desaparecer. Agora ela era apenas cheiro, se misturando e se perdendo no mar. Talvez ela também sentisse meu cheiro de mar, menos infantil que meus olhos, embora a cor fosse diferente. Meu cheiro era escuro, ainda que prateado como o anel. Ele já não era verde, mas tinha o tom escuro do suco de uva. O cheiro dela era diferente. Pensei em seu vestido violeta. De tanto derivar em meus pensamentos esqueci de ver como estava vestida. No bar ela não estava mais com o mesmo vestido, mas minha cabeça ainda não podia trocá-lo como ela fizera tão facilmente. Sem tanta luz, só pude ver que ainda usava um vestido, mas não conseguia ver a cor. Ela me mirava e, mesmo sem lhe ver direito, sabia que olhava meus olhos, tentando decifrá-los. Sem luz eles não eram mais verdes, mas ela não podia ver a madeira neles.

Ela parecia séria. A respiração estava pesada, como quando se adora a postura da concentração. Reparei que havia uma flor de tecido em seu vestido, uma forma grande porém discreta que adornava sua alça esquerda. Sem tanto hesitar e para minha própria surpresa, toquei a flor para senti-la. Era doce e suave como se fosse de verdade. Parecia uma rosa, com pétalas formando quase círculos concêntricos. O mar se misturava com ela mas não escondia completamente seu cheiro. Ela tinha o mesmo cheiro que anos antes, como se fosse real. Esse cheiro tinha ficado gravado profundamente em minha memória como se um mestre me tivesse ensinado tal cheiro.

Naquele dia ela não vira com um vestido violeta. Já estava escuro e tudo que podia ver era sua forma que dormia. E aquele cheiro!

Naquela noite ela também trocara de roupa e não veio com um vestido violeta. Ela não deixaria que movesse. Eu não queria mover. Não sabia o que fazer. Eu tinha sido ensinado apenas sensações, não sabia como agir. Ninguém pode ser ensinado a agir, a única ação possível é a de ensinar – o ensinado é passivo. Eu sou passivo. Ela tocou minha mão em busca de conhecimento. Minhas mãos nem pareciam minhas. Minha mão era como um filho a quem demos a melhor educação possível. Lhe dizemos o que deve ser feito, o que deve fazer e não fazer, mesmo que não sejamos capazes de seguir o conselho, lhe preparamos para a vida mesmo sem estar preparados e esperamos que se torne mais independente do que somos. Minha mão era o filho perfeito. Ele apreendera tudo o que devia e tinha vontade própria. Ela era tão independente que muitas vezes não podia entendê-la. Mas ela não me desapontara ainda e lhe fazia confiança. Ainda tocando sua flor, ela percorreu minha mão. Ela a reconheceu, mas não sabia se era possível me reconhecer nela. Provavelmente só a reconheceu, mas sem saber a quem pertencia. Era praticamente impossível pois não me pertencia. Não lhe havia ensinado nada. Era como se, bebendo de meu vinho, ela reconhecesse o caroço ou planta de que viera. Me reconhecer pela mão era quase impossível, exceto quando já se sabia que aquela era minha. Eu porém, a reconheci perfeitamente. Sua mão ainda tinha o mesmo toque que antes. Como antes, ela tentou reconhecer-me todo. Ela errou por meus braços até encontrar o caminho de meu rosto. Éramos dois cegos se conhecendo. Não demorou muito até que eu ouvisse um pequeno riso, que sentisse a respiração irregular e o ar mais pesado. Meu coração estava correndo e me puxando. Os batimentos rapidamente cobriram os alguns centímetros que nos separavam, agora já sem barreiras. Na reta final, seus dedos desaceleraram. Minha mão ainda preferia errar, mesmo sabendo o caminho certo. Ela já não errava e acertou meus olhos, bochecha e boca.

Durante meio segundo o poste reacendeu e pude entrever seu vestido. Naquela noite ela viera com um vestido que não era violeta e que parecia com o que usara na outra noite. O vestido se equilibrava entre céu e mar, como eu me equilibrava entre o mar e ela. O poste apagou. Seu vestido não era violeta como o detalhe da flor que trazia sobre o peito.

Saudade... - foi o que pensei que ela me dissera naquele instante.

Mas o resto do vestido não dizia nada. Ele a despia e a expunha a mim. Ela não vira que a vi. Seus olhos fechados deixavam ver que suas pálpebras eram verdes, como seu cabelo e pele de veludo. Me aproximei para estudá-la. Minhas mãos de batedores exploravam o explorável, elas percorreram o entrelaçado de seu vestido. Sobre suas costas, formando trilhos por onde animais passavam. Agora não havia mais animal algum, nem serpente nem cachorro. Seu vestido era um labirinto medieval no qual queria me perder. Mas no momento em que ela encontrou minha boca, também encontrei a dela e nos reconhecemos por inteiro. Eu estava sem barba e isso a ajudou. Naquele momento, se ela visse meus olhos, poderia ler o anel ao centro da armação de madeira. No mesmo instante, seu vestido se tornou mar e ela voltou à antiga condição de seus quinze anos.

A flor flutuava enquanto se dissolvia pelo sal de lágrimas. Os menores peixes já tentavam passar pelos furos que se formavam. Não havia mais cheiro de mar, apenas ela constituía o ambiente. E em seu meio me perdi. No reconhecimento mútuo me perdi enquanto minhas mãos, as verdadeiras batedoras, seguiam naturalmente seu rumo. Me perdi em lembranças e imaginação. Imaginação presente de um passado mais recente que meu passado real. Imaginei treze anos sem mar, firme na terra e a ela. Já era tarde. De novo. Mas ainda havia tempo para o presente. O anel tinha ficado em casa, mas minha mente estava nele. Passei minha mão pela caixa de veludo e sua flor. Abri-a com cuidado em busca do anel. Passei meus dedos pelo acolchoado rosado. Hesitei por uns instantes. Minha mente agora era minha mão.

Meu peito não estava mais apertado. Agora eu tinha mais espaço e o que guardava não queira sair agora. Tudo agora estava mais apertado. O cheiro de mar que não existia mais havia deixado o ar mais leve, o veludo estava mais macio e a caixa aberta.

(…)

Após tanto demorar no acolchoado, acendi a luz para poder lhe dar seu presente. Ela estava no meu sofá, olhos nos meus. Nos seus olhos vi o reflexo de minha barba que já lutava para aparecer. Ela já não tinha mais quinze anos, mas seu vestido se perdera no mar. A flor que veio dele para ele voltou, afogada pelos peixes. Peguei a caixa sobre a mesa de centro e lhe dei. Ela abriu a caixa sem olhar diretamente para ela. Ela sabia que não precisaria olhar diretamente. Ela fixou meus olhos e neles viu o anel. Uma brisa com um último suspiro de mar soprou pela janela. Após uns segundos que não foram de hesitação porque estava decidida, fechou os olhos e aceitou silenciosamente o presente. Estendeu-me a mão para que fosse eu que o colocasse. Lentamente, enquanto observava sua boca e olhos fechados, ajustei o anel com um ar de ritual, pois é sempre solene e sério o instante da revelação.