DESILUSÃO
Era um sábado do mês de maio. Acabáramos de almoçar e as atenções de muita gente se voltaram para a extensa barra azul que se formara no Nascente - de onde provinham todas as chuvas de Mossoró - prenunciando mais uma, que parecia ser grande, e se aproximava rapidamente, trazida por turbulenta ventania, que agitava a copa das árvores. Coriscos cortavam o horizonte, provocando forte trovoada. Os relógios marcavam duas horas da tarde quando grossos pingos d’água anunciavam a chegada do temporal. Os relâmpagos cortavam o céu, seguidos de ensurdecedores trovões. As biqueiras das casas logo começaram a jorrar violentos jatos da água da chuva que caia sobre os telhados. Minha mãe e minhas irmãs haviam se recolhido, com os pés suspensos e rezando o terço; a cada trovoada invocavam a proteção de Santa Bárbara e São Jerônimo, enquanto meu pai verificava as goteiras. Adultos e meninos corajosos tomavam banho e espadanavam os rios que se formaram, tomando as ruas de um lado a outro.
Chovera a tarde toda. A noite começava a chegar molhada pelo pinga-pinga deixado pela borrasca que demandava o sertão, quase não se ouvindo mais a voz dos trovões que se seguiam aos clarões de cada relâmpago.
O culto noturno da Igreja Assembleia de Deus, no final da Rua Pe. João Urbano, fora implicitamente cancelado. Os sinos da Catedral que, em maio, badalavam às seis, seis e meia e às sete horas, chamando os fiéis para novenas em homenagem à Maria, mãe de Jesus, que tradicionalmente se celebravam por todo aquele mês, naquela noite silenciaram.
Quase ninguém saíra de casa. Alguns ousavam ir para algum compromisso noturno, levando seus guarda-chuvas e agasalhos, pois a temperatura caíra. Gerôncio, poeta e boêmio, infalível no seu compromisso amoroso dos sábados com Araci, decidiu não faltar, saindo de casa mesmo com reprovação da esposa, Isabel, com quem era casado há treze anos. Seu vulto na esquina da Rua Almino Afonso, caminhando pela calçada, de chapéu e sobretudo, parecendo indiferente à neblina, em direção à casa de sua amada que, embora incerta se ele iria, o esperava.
Araci era uma loura bonita, de belos olhos azuis e tinha uns quarenta anos. Não casara por não encontrar alguém que a atraísse, mas encontrara vários pretendentes. Era convencida de sua beleza. Morava na Rua da Frente, prosseguimento da velha Rua Pe. João Urbano, atual Av. Dix-sept Rosado. Morava com o pai e uma irmã viúva. O pai, com mais de setenta anos, sabia do “namoro”, que não aprovava, mas não pudera impedir. Numa noite como aquela ele entrou e sentaram juntos num velho sofá. Juraci era professora particular e dava aulas diárias nos turnos da manhã e à tarde, mesmo aos sábados. Com sua remuneração de professora ajudava na manutenção da casa, reservando boa parte de sua renda para vestidos, joias e perfumes.
Já Gerôncio tinha em torno de cinquenta anos, ou um pouco mais. Era guarda-livros de algumas empresas médias. Poeta, colaborava, periodicamente em alguns jornais locais, e, esporadicamente, em revistas que circulavam em datas festivas. Quase sempre com poesias de amor, inspiradas na sua musa. Casara-se com Isabel, morena de bonito corpo, cabelos negros e longos, uma mulher atraente, e já tinha duas filhas, uma com doze, outra com oito anos, com as quais era muito carinhoso; não sei se sabiam das razões de suas saídas aos sábados. Isabel tivera formação católica, ia à missa, na capela do seu bairro, todos os domingos, acompanhada pelas filhas.
Bom, naquele sábado chuvoso (ou “chuvarento”, como dizia o velho Jucá), não resistira, conforme já disse, à força da paixão. Chegando por volta das oito da noite, ela o mandou entrar e sentaram-se num velho sofá. Deve ter saído por volta das dez horas, pois continuava neblinando, as ruas estavam desertas e mal iluminadas
Nos sábados seguintes, continuou a sua rotina. Entretanto, mais ou menos um ano depois da noite a que me refiro, ao chegar em casa de sua amada, encontrou a porta e janelas fechadas. Surpreso, bateu. Apareceu sua irmã com cara de choro, informando que Juraci avisara ao pai que iria deixá-los, iria embora com um amigo que a convidara, mas não disse para onde. Gerôncio não acreditou. Aquilo fora um tremendo golpe para ele. Que fazer? Jamais esperara que Araci fizesse isso! Lembrou-se do bar de Gaudêncio, onde, aos domingos, costumava se juntar aos amigos, poetas como ele. Estava aberto e uns quatro ou cinco fregueses contumazes, que conhecia, bebiam. Era meia noite quando Gaudêncio avisou que iria fechar o bar. Gerôncio foi para casa. Tinha a chave e entrou sem barulho. Não procurou seu quarto; deitou-se no sofá da sala, chorando. Isabel percebera o barulho, levantou-se e sentou-se a seu lado, sem dizer nada, apenas alisando-lhe a bonita cabeleira, aumentando-lhe o pranto, talvez – quem sabe? – de arrependimento e remorso, até que adormeceu. Nesse domingo Isabel não foi à missa. Gerôncio acordou perto das nove; ela o acompanhou, silenciosamente, ao quarto, onde ele trocou de roupa e, depois, foi ao banheiro. Nenhuma palavra. A seguir, ele tomou o café da manhã, ela sentada à mesa, ainda em silêncio. As filhas acompanhavam tudo sem saber o que estava acontecendo.
No sábado seguinte, Gerôncio não saiu de casa. Alguns amigos, cientes do caso, do seu “drama”, foram visitá-lo. Gerôncio os recebeu satisfeito - Isabel presente - mas seu coração continuava frustrado e dorido.