A CARTA DO SOLDADO

Pela primeira vez na minha vida, eu gostaria de escolher não me levantar desta 'cama'. São quase 5 da manhã e tive um tempo pra dormir, embora não seja o sono que me segure na cama. Na verdade ele nem me acompanha esta noite e me deixou claro que hoje ele é quem esta de plantão e portanto não virá ao meu encontro. O estranho é que logo hoje eu precisaria de uma boa dose dele!

Não é fácil dormir ao som de balas (até posso identificar algumas, como as de uma M16 e outras de uma HK47), não é fácil dormir ao som destes tanques que saem de instantes e instantes para dar suporte aos meus companheiros, aos meus amigos de batalhão, mas você aprende, se acostuma! Você aprende muitas coisas na verdade! Num ambiente de guerra longe de familia, amigos e pessoas amadas vocÊ aprende , de fato, muitas coisas.

Os clarões e o tremer da terra até poderiam incomodar quem não está acostumado com esse ambiente, mas não a mim... Não a um soldado com a minha experiÊncia. A gente aprende a se acostumar e dar valor a coisas pequenas. É bem verdade que muitos sabem que estamos em guerra, mas vivencia-la é algo bem mais duro de lhe dar. Ontem perdi 3 de meus melhores amigos aqui, quando estavamos em uma linha de frente na tentativa de avançar na conquista pelo território inimigo. E isso me fez lembrar que ainda tenho uma coisa chamada CORAÇÃO. É que as vezes você esquece. Não! Não! Na verdade as vezes somos forçados a esquecer. Outro dia vi uma criança com uma metralhadora (nem eu mesmo consegui identificar aquela, apesar que suspeitava ser uma... Ah! Deixa pra lá.) e me lembrei automaticamente do Lucas. E mais uma vez lembrei, mesmo coberto por esta farda suja de sangue, que sou um ser humano de carne e osso... E chorei ao vê-lo ser eliminado com um tiro bem no meio da testa. Me perguntei onde estaria nosso filho e se estaria bem, com quem estaria, com quem estaria andando e o que estaria fazendo. Isso foi como um tiro à queima roupa e nem mesmo meu colete conseguiu segurar esta.

Temos direito a telefonemas uma vez ao mês via satélite, pq toda a estrutura de redes foi comprometida. A cidade esta sem energia e precisamos andar muito para encontrar água. É... não é fácil! Já vi de tudo nestes quase 4 anos em guerra. Nos dias em que consegui voltar pra casa fiquei muito feliz, mas é como se eu não estivesse completo sabe? Sabe quando te falta algo? Tava calmo demais, tinha ali uma cama de verdade, minha familia e amigos próximos reunidos e mesmo assim me senti na obrigação de estar no campo com meus companheiros lutando por um mundo melhor. Coisas de soldado patriota, obrigações de um soldado.Pois bem... Aqui estamos e precisamos estar prontos, atentos para qualquer medida ofensiva e imediata.

Outro dia levei um 'puchão de orelha' de meu capitão Jorge, pq me detive no meio do caminho com uma flor em meio aos escombros (fazia tanto tempo que não via uma)... rs, mas não era uma flor qualquer... Eram TULIPAS! Justamente as que você usou em seu buquê em nosso casamento. Ah! Que saudades de você, minha Danielly. Saudades de acordar com seu cheiro em mim, de acordar ao seu aldo, de comer sua comida, de vermos TV com a familia, e claro dos nossos momentos mais intímos. Meu Deus, quanto tempo faz, rs! Embora em guerra, as pessoas tentam de alguma forma levar adiante com suas vidas sabe? Muitas lojas aqui ainda funcionam e muitos andam pelas ruas sem se preocupar coma nossa presença ( na verdade acho que eles nem nos notam e se notam, nos ignoram). Estão tentando reconstruir suas vidas dos escombros que restaram.

O contraste é algo íncrivel! De um lado devastação total e do outro cidades quase que intactas. Talvez tenha perdido noção do belo, mas eu não sei pra você mas pra mim isso de certa forma é belo. Mas é verdade que as vezes eu me pergunto o que ainda faço aqui sabe? PQ não desisto de tudo e não volto pra casa? É um verdadeiro milagre eu estar vivo!

Me recordo da última vez em que estavamos em um acampamento inimigo e fui pêgo de surpresa... apenas senti algo quente escorrer do peito. Era sangue! Meu sangue! Tinha sido atingido por um atirador de elite que conseguira passar desapercebido por mim e isso quase me custou a vida. Segundos depois apaguei e acordei (segundo os médicos) 7 dias depois em uma unidade de socorro em uma cidade vizinha, onde estamos com a nossa base. Quando acordei parecia que tinha dormido por séculos e muitos me olhavam atônitos. Na verdade tinham sido dois tiros; um me pegou em cheio no ombro o atravessando, já a outra se alojou em uma parte da minha caixa craniana e não podia passar por cirurgia. Desabei e só pensava em nosso filho Lucas e em Você. Nessas horas a gente procura algo para se segurar sabe? Algo para nos fazer querer lutar, para nos fazer viver, algo que nos dê força quando não tivermos mias de onde tirar. Perdi completamente o movimento de meu braço esquerdo e segundo o médico me recuperaria mas nunca mais seria o mesmo, pois nenhum ombro no estado em que o meu estava seria o mesmo um dia. Chorei e me senti impotente e por dias não quiz me levantar daquela cama. Como eu lutaria? Como eu cuidaria de minha familia, do nosso filhinho e de você se nem de mim eu conseguia cuidar? Perdi a vontade de lutar e a guerra me visitou como de fato ela é: DURA e CRUEL.

Foi então, que um dia lendo meu caderno de anotações, encontrei uma foto da nossa familia linda reunida e no verso você tinha escrito : *" ' Sabe quando tudo parece estar perdido? Pois é, é só aparência!' Com amor, Danielly e Lucas para vocÊ não esquecer que estamos aqui lutando por você também." Chorei mais uma vez, mas esta vez foi curador e parecia que algo pesado e áspero saia de dentro de mim e ao mesmo tempo que me feria, me curava. Encontrei nesta foto forças o suficiente para querer lutar mais uma vez pelo meu país, por mim... mas sobretudo por você e pelo nosso filho.

E hoje estou aqui... NOVO! Com muitos remendos, é bem verdade, mas disposto a lutar mais. Aqui deitado, vejo o quanto você tem sido essêncial em minha vida e o quanto você se faz presente mesmo estando do outro lado do oceano. É íncrivel como me sinto amado e mais íncrivel ainda como eu te amo. Hoje vejo que ter escolhido lutar por você foi a escolha mais sábia da minha vida. E não mudaria nada. Sofri muito pra ter você comigo, mas hoje que tenho vejo que tudo valeu a pena. Sei que a carreira que escolhi é difícil e você tem se desdobrado pra cuidar da casa e do nosso filho mas essa é a vida de um soldado neh? Lutar pelo meu país me faz sentir útil, mas é na minha luta pra ter que voltar pra casa no fim de cada guerra que me faz querer viver, que me obriga a não morrer. Você está alí me esperando e eu vou voltar e te encontrar mais uma vez na porta de casa com o Lucas nos braços. Isso pra mim faz valer a pena tudo, pois tenho lutado pra tentar dar um futuro melhor pra gente e deixar um mundo melhor para o Lucas. Um mundo onde mesmo em guerra as pessoas saibam admirar a simplicidade e fragilidade de uma 'TULIPA' em meio aos escombros, mesmo que isso te custe um 'puchão de orelha'. Um mundo onde as pessoas não percam a sensibilidade, a capacidade de encanto e o amor. Pois ele é que me tem feito querer lutar. Continuar lutando até não existir em mim vestigios de força.

Com amor...

Victor.

*Trecho retirado do Blog.: Além do sol., de Iandê Albuquerque

Reges Medeiros
Enviado por Reges Medeiros em 05/10/2012
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