Voando com Deus - Capítulo 1

Este é um grande romance que estou escrevendo e que gostaria muito de publicar. Vou colocar alguns capítulos aqui para receber as críticas e sugestões necessárias para melhorar ainda mais a minha obra.

Enjoy!

************

VOANDO COM DEUS

O PRIMEIRO ENCONTRO

CAPÍTULO 1

Estou em cima de uma ponte, nas pontas de meus pequenos pés, de braços abertos para o nada. Espero o vento me empurrar para poder ver o que há lá embaixo, pois, seja o que for, não dá para ver daqui de cima. Deve ser profundo... Profundo o bastante para me deixar zonza. Por um momento, quero colocar tudo que há dentro de mim para fora, mas não há tempo para isso. Antes que eu faça qualquer coisa, uma brisa forte me faz cair; mergulho não sei onde, indo ao encontro com minha morte. Por fração de segundos, diversas coisas passam em minha mente: Vejo-me vestida de noiva, prestes a me casar com Murilo que está no altar me esperando; vejo minha mãe sorrindo e abraçando a minha irmã; vejo meu pai voltando para casa... Quando foi a última vez que eu vi minha mãe sorrindo? Qual foi a última vez que eu vi meu pai? É aí que eu descubro que tenho que me manter viva. Contudo, acho que é tarde demais para voltar à ponte. Estou caindo e nada irá me parar. Já vejo as rochas com as quais meu corpo irá se chocar. Preparo-me para a minha morte, mas nada acontece. Ao invés disso, eu acordo. Estou sã e salva.

Deitada em minha cama, fico tentando me lembrar do motivo que fizesse com que eu pulasse da ponte. Talvez seja este mundo o qual não consigo compreender. Aqui é tão sombrio... Queria que Murilo pudesse estar ao meu lado o tempo todo, com seus braços em volta do meu corpo, me protegendo e eu me sentindo segura. Porém, acho que nem ele seria capaz de sobreviver aqui. Fico acordada várias noites, apenas pensando se existe, de fato, alguém que possa acabar com todo este sofrimento que cerca a todos nós. Queria algum sinal, poder fazer alguma coisa... Só quero paz. Estou cansada de ver as pessoas que amo derramando lágrimas, desanimadas com a vida, sem forças para lutar, sem forças para continuar esta terrível jornada. Mas ainda penso na possibilidade de tudo isso acabar. Espero que seja apenas uma fase.

Sou obrigada a levantar da cama. Uma forte dor toma de conta da minha cabeça e sinto vontade de deitar novamente; porém, há aula hoje. Resolvo tomar um banho – felizmente a dor passa – e coloco o meu lindo uniforme azul que combina perfeitamente com minha pele branca. Ao espelho, ajeito meus cabelos castanhos claros e vejo o quanto estou exausta. Até parece que não dormi nada essa noite. Fico feliz quando saio do banheiro e vejo o café da manhã pronto na mesa. Minha às vezes sabe como tirar um sorriso do meu rosto abatido. Olho para esta mulher e vejo o quanto que está triste. Seus cabelos negros não são mais os mesmos... Sua pele está mais pálida que o normal... Seus olhos castanhos, agora mais escuros pela pouca luz, demonstram preocupação. Sei que não é só por causa da minha irmã, Ana, que esta ainda na cama. Penso em perguntar o que tanto a incomoda, mas sou esperta o bastante para pensar melhor e nada dizer. Ela certamente se irritaria comigo e mais uma vez formaria aquele clima pesado entre nós. Por isso, como rapidamente as fatias de pão que estão sobre a mesa, tomo o copo de leite puro que ainda está quente e dou um beijo em minha mãe, saindo pela porta da sala. Já ao lado de fora, dou um grande suspiro, torcendo para que não seja um dia difícil.

Mas será. Pois, como todas as pessoas normais, odeio segundas-feiras. Não porque é o início de uma nova semana e a rotina de acordar cedo começa tudo de novo, tendo eu que fazer, outra vez, uma hora de caminhada só para poder chegar à escola. Isso é o de menos; já consegui me acostumar. O verdadeiro motivo para eu odiar segunda-feira é porque, nesse dia, eu não vejo o garoto pelo qual o meu frágil coração se apaixonara. Murilo é a única pessoa que consegue me entender, uma das poucas pessoas que consegue tirar um sorriso de mim quando estou triste. E ultimamente eu só tenho andado triste. Triste o bastante para sonhar cometendo um suicídio. O porquê ainda é um mistério; fico tentando achar uma resposta todos os dias, querendo saber o que acontece comigo, mas não sei onde procurar mais. Nem sei se há respostas para minhas perguntas. Estou sozinha. Sempre estive.

Vivo a uma hora da cidade, no campo, perto das montanhas, onde quase não existem vizinhos. Não há como não ser solitária aqui. Sei que tem minha irmã, mas Ana tem apenas onze anos e é muito infantil; não conseguiria ter qualquer conversa decente com ela. Afinal, estou prestes a terminar o ensino médio. E a minha mãe... Sinceramente, eu não sei o que se passa pela sua cabeça. Então só me resta Murilo, com quem falo apenas quatro vezes por semana, somente durante o intervalo da escola. Bem que poderíamos nos ver a semana inteira e nos encontrar à tarde para conversar, mas às segundas ele tem aula prática e não tem tempo algum durante o resto do dia por causa do seu emprego. Diferente de mim, Murilo já terminou o ensino médio e agora faz um curso técnico na minha escola. Ele é um garoto incrível que consegue me deixar feliz, apesar do pouco tempo que nós temos para conversar. Sinto que tenho que dizer a ele, o mais rápido possível, sobre os meus sentimentos. Estou cansada de me sentir só; preciso de alguém na minha vida com quem eu possa compartilhar todos os meus momentos, sejam eles felizes ou tristes. Meu sonho é me ver logo casada com ele, bem longe deste lugar deserto. Com Murilo, tenho certeza que a minha vida seria mais feliz.

Não será nessas ruas, por quais meus pés caminham agora, que encontrarei a felicidade. Eu poderia morar perto do colégio, com Murilo, onde se tem tudo o que a gente precisa. Há comércio, hospitais, vizinhos... Enquanto que aqui só há grama por todos os lados e uma longa estrada de terra. Durante todo o trajeto, só encontro duas pequenas casas, provavelmente ilegais como a minha. Eu nunca soube quem é que mora de fato nelas, pois sempre que passo por aqui as encontro da mesma maneira: Portas e janelas fechadas. Nenhum sinal de vida. Talvez sejam apenas casas abandonadas mesmo, como minha mãe diz, mas sei que há algo sinistro por trás disso.

Consigo avistar a cidade e a escola após quarenta minutos. Ao lado do colégio, está a fábrica química onde minha mãe atualmente trabalha como faxineira. Ela não ganha muito bem, mas o pouco dinheiro, apesar de muito sufoco, dá para alimentar nós três. Está certo que não é o emprego perfeito, mas ela teve sorte de consegui-lo; além de entrar mais tarde, ela tem algumas vantagens e benefícios como insalubridade e vale refeição, apesar de muitas das vezes ter que vendê-lo.

Nesta hora, embora o sol mal tenha chegado à sua total intensidade, já é possível ver o suor escorrendo pelo meu rosto. Demoro um pouco para descer a ladeira. Fazer isso é algo mais complicado do que parece, porém hoje sou bem mais rápida já que Ana não está comigo. Infelizmente ela teve que ficar em casa, pois não estava se sentindo muito bem. Minha irmã tem ficado muito doente nos últimos dias; não quero nem pensar no que pode acontecer com ela. Eu já vi tanta coisa por aqui... E apesar de achar que ela não mereça, eu me preocupo muito com sua saúde; se ela vier a adoecer de verdade e precisarmos de ajuda, com certeza, não encontraremos. É esse egoísmo que as pessoas têm... Aqueles que já estão de bem com a vida não se dão o trabalho de se preocupar com as pessoas que passam dificuldades. Quem disse que alguém pensa em investir mais na saúde? Ou na educação?

Obviamente, educação não é algo que eu encontro quando chego à escola e vejo diversos alunos jogados pelos cantos, presos a seus vícios a esta hora da manhã. E ninguém faz nada quanto a isto. É como se ninguém se preocupasse e isso me causa repulsa. O que eu faço é apenas sair do pátio, ignorando a todos, passando pelo corredor e entrando, enfim, em minha sala. Abaixo a cabeça e o que mais desejo é que a manhã passe depressa, mesmo já sabendo que será uma das aulas mais demoradas de minha vida. Aliás, toda segunda é. Se pelo menos eu pudesse ouvir melhor a professora... Se pelo menos esses alunos ficassem quietos ou simplesmente falassem mais baixo! Mas não posso culpá-los; não deram uma preparação melhor para que a professora pudesse enfrentar isso. Os nossos professores, ou pelo menos a maioria deles, não dão aulas, dão sermões. E por causa desses alunos medíocres, são obrigados a parar a aula para dar broncas, o que é completamente desnecessário.

Parece ser bem fácil estressar qualquer professor aqui, mas há uma grande explicação para tudo isso: Os professores da minha escola não conseguem viver trabalhando apenas aqui e necessitam dar aula em mais de um local por causa do pouco salário que recebem; por isso, passam madrugadas corrigindo provas, trabalhos e preparando as próximas aulas. Se ganhassem o suficiente, não precisariam se matar; trabalhariam em uma só escola e teriam mais tempo para estudar e para dormir; os professores se estressariam menos e teriam mais vontade de dar aula. Valorizar os professores... É isso o que está faltando.

E, como esse momento está muito longe de chegar, a aula irá passar e ninguém irá aprender nada. Quer dizer, quase ninguém. Por incrível que pareça, eu sou uma aluna exemplar. Sempre aprendo algo com meus professores, sendo isso de grande importância ou não; presto atenção, mesmo quando pareço estar dormindo e ajuda bastante o fato de eu não ter amigos e não conversar com ninguém. Apenas fico em meu mundo, deixando a professora falar, absorvendo todo o conteúdo e me dando bem em todas as provas. Poucos sabem, mas Andrea é uma excelente professora. Ela poderia muito bem dar aula em uma escola particular ou até mesmo em uma faculdade se quisesse, mas ela gosta de nós.

Quando soa o último sinal, saio da escola e vou comprar pão para amanhã cedo e algumas coisas que estão faltando em casa. Quando passo no caixa, fico feliz em ver Clara, a mulher simpática e gentil que sempre me atende quando eu venho aqui. Ela costumava me dar balas quando eu era mais nova, mas aí eu cresci. Apesar de minha mãe e ela não se falarem mais, nós duas viramos amigas.

– Olá, Natália – Cumprimenta ela.

– Como vai? – Pergunto com um sorriso enquanto entrego a ela as compras.

– Eu estou ótima! Só trabalhando como sempre... Mas e você? Sua mãe... Sua irmã...

– Estamos bem.

– E Murilo? Já se declarou a ele?

Ela sempre faz a mesma pergunta quando eu venho aqui; é como se ela quisesse nos ver juntos de qualquer forma. Eu, contudo, dou a mesma resposta:

– Não, ainda não...

E tento disfarçar, com um sorriso, a decepção que eu sinto comigo mesma.

Enquanto ela coloca as compras na sacola, olho na vitrine e vejo algo que não tinha reparado quando havia entrado no mercado. É um cartaz à procura de pessoas que estão desaparecidas desde semana passada.

– Mais pessoas sumiram, não é? – Digo à Clara.

– Infelizmente – Diz ela, triste – É como se não fosse mais ter fim.

Isso já não é mais novidade por aqui. A cada dia que passa, estes desaparecimentos vão ficando mais frequentes; às vezes, essas pessoas aparecem mortas do nada, depois de meses que haviam sumido. E ninguém consegue achar os responsáveis. É um grande problema não só para quem mora na cidade, mas para pessoas como eu que também sonham em casar e construir uma família neste lugar. Se nada mudar, vou ter que morar no campo com minha mãe e minha irmã para o resto de minha vida. Dizem que a polícia está trabalhando duro por aqui, mas ninguém vê o resultado deste trabalho. A segurança aqui é como a educação e a saúde: demasiadamente fraca. E estou cansada de pensar sobre isso. Tudo o que eu quero neste momento é minha cama.

– Até mais, Clara! – Despeço-me.

– Até mais! Dê lembranças a sua mãe!

Preparo-me então para mais uma hora de caminhada. O sol a cima de minha cabeça indica que já são mais que doze horas. Espero não ficar velha tão cedo, pois certamente não aguentarei andar tudo isso, ainda mais com o calor que costuma fazer por aqui. Quando enfim chego a minha casa, tiro minhas roupas e logo me jogo no chuveiro, refrescando o meu corpo. Ao sair do banho, me deparo com minha irmã.

– Natália, olha só o desenho que eu fiz – Diz Ana com a folha de papel em suas mãos, enquanto que eu ainda enxugo meus cabelos com a toalha – É lindo, Nah. Olha aqui, olha!

Antes de dar atenção a ela, todavia, vou para a cozinha ver o que tem para o almoço. Não demora muito para que eu esteja completamente irritada. Minha mãe não deixou o almoço pronto, o que nunca acontecera antes.

– Mamãe disse para você preparar um miojo – Diz Ana, notando o meu nervosismo – Ela ficou cuidando de mim e acabou se atrasando para o trabalho.

A vontade que eu tenho é de ir direto para o meu quarto e dormir, deixando minha irmã e eu morrendo de fome. É uma pena vir à minha memória que eu tenho que estudar e não posso fazer isso de barriga vazia. Ainda reclamando, vou para o fogão e acaba ocorrendo tudo certo. Não coloquei fogo na casa, no fim.

– Você vai olhar o meu desenho agora? – Pergunta Ana pela décima vez, quando ainda estou na beira da pia. E vejo que não vai ter outro jeito de eu fazer com que ela fique quieta e não me perturbe.

– Vai, me mostre.

Ela ergue a folha. Seco minhas mãos molhadas em um pano, pego o seu desenho e sento-me em uma cadeira próxima para analisá-lo. Ela não desenha nada bem, mas não tenho a menor dificuldade de identificar o que estou vendo. Estou pasma. O que eu vejo é um desenho de uma ponte meio torta, com carros e pessoas transitando em cima dela. Entretanto, o que mais me chama atenção aqui são uns rabiscos de diversas cores, representando quatro pessoas sorridentes.

– Esta é a mamãe – Ana aponta para o desenho – Esta é você e esta sou eu.

No desenho, estou toda de rosa, até mesmo os meus cabelos. Ana está de todas as cores, porém, o seu cabelo continua sendo preto, assim como o de nossa mãe.

– E esse aqui, quem é? – Pergunto, apontando para a última figura sorridente que restou.

– Este é o papai.

Ela não podia fazer isso. Não podia me fazer lembrar dele agora... Isso é injusto. Olhando para este desenho, tenho uma imensa vontade de chorar. Talvez porque isso só seja uma mera folha de papel com uns rabiscos que nunca se tornarão realidade. Nunca estaremos reunidos novamente, muito menos sorrindo um para o outro, felizes, como se nada tivesse acontecido. Ana é totalmente ingênua.

– Por que desenhou isso? – Pergunto, com um nó na garganta. Estou confusa. Nosso pai foi embora antes mesmo de Ana nascer. Ela nunca vira o nosso pai, como ela pôde desenhá-lo, assim, de uma hora para outra?

– Não sei Nah, a gente simplesmente desenha. Eu só quero saber se está bonito.

Entrego a folha para ela, sem dizer nada.

– Nah, é o desenho mais bonito que eu já desenhei, você tem que dizer alguma coisa!

Ela continua falando, mas eu não a escuto. Simplesmente despejo o miojo em nossos pratos, ainda pensando e tentando entender o que eu acabei de ver. Todavia, sinto que isso continuará a me incomodar por muito tempo.

Ainda com a mente atordoada, Ana e eu almoçamos e, após estarmos completamente satisfeitas, me tranco no quarto e dou de cara nos livros, tentando esquecer os rabiscos da minha irmã. Enquanto mergulhos nos estudos, a espera de ser alguém na vida, deixo-me levar por pequenas lembranças de minha infância. Lembro-me, então, de como essa casa era bela e alegre com o meu pai aqui. As paredes nunca foram as mesmas desde que ele se foi. Temos sorte de ele ter deixado pelo menos esta casa para nós. Embora a tintura esteja bem desgastada e a umidade já tomando de conta, é uma casa grande e temos a sorte de não ter que pagar nenhuma conta de água ou de luz. Tudo aqui é feito de forma ilegal – não que eu concorde com isso, mas eu acho que não tem outro jeito. E enquanto não estivermos fazendo mal a ninguém e ficarmos quietos em nosso canto, tudo vai continuar numa boa. Eu espero.

– Mamãe chegou – Acordo com a voz de Ana.

Não sei quando e nem por quanto tempo foi que eu dormi, mas ainda consigo me lembrar de algumas das coisas que eu estudei. Dou uma arrumada nos livros e vou para fora; vejo Ana sorrindo e correndo para abraçar nossa mãe que está extremamente exausta – ela sempre está. Olho no relógio e vejo que chegou bem na hora do jantar.

– Você melhorou? – Minha mãe pergunta a Ana, séria como sempre.

– Melhorei! – Diz ela, sorrindo.

Dá para ver o quanto que minha irmã a ama. Eu já não demonstro tanto este sentimento, mas eu a amo tanto quanto ela. Digo um simples “Oi” e volto para o meu quarto até que o jantar esteja pronto. Como todo noite, a temperatura abaixa e sou obrigada a colocar a blusa mais quente que tenho – embora não me aqueça tanto – e vou para a cozinha me ajuntar para o jantar.

– Como foi o seu dia? – Pergunta minha mãe, quando estamos já reunidos à mesa, comendo. Coisa rara de acontecer.

– Normal – Eu digo – A mesma coisa de sempre... Professor tentando falar e não conseguindo, alunos conversando e usando drogas...

– Hum... – Ela dá de ombros.

Penso por um momento e acabo me lembrando de uma coisa:

– Ah, na verdade... Vi hoje mais um daqueles cartazes de pessoas desaparecidas. Está ficando cada vez pior. – Deveria também contar a ela que Clara mandara lembranças, mas sei muito bem que não se importaria.

De um olhar sério, minha mãe olha triste para nós, como se se lembrasse de algo.

– Um colega do meu trabalho também desapareceu – Minha mãe comenta – Faz uma semana... Poderiam colocar logo um fim nisso tudo.

Poderiam. Porém, nós sabemos muito bem que isso não vai acontecer tão cedo. O diálogo na mesa acaba rapidamente e minha irmã fica brincando com a comida até que minha mãe chama a sua atenção umas cinco vezes e ela para. Já é tarde e todos nós temos que ir dormir para levantarmos cedo amanhã. Não demora muito para eu estar finalmente enrolada nas cobertas, livre para poder sonhar...

Desta vez estou descalça, apenas com a minha camisola, e não há nenhuma ponte para que eu possa me jogar. Muito menos uma ponte com rabiscos que representam uma família perfeita. Percebo isso assim que começo a vagar por este corredor. Aliás, corredor este que eu nunca vi em minha vida. Nem sei o que estou fazendo aqui... Pode parecer estranho o meu desejo, mas eu quero muito a minha mãe...

– Natália... Natália...

Ouço uma tremenda voz me chamando e fico em pânico. Do nada, sou tomada por uma energia que não sei de onde vem e sinto uma enorme vontade de correr. Tendo que liberar esta energia de alguma forma, apenas obedeço ao meu corpo: corro como se eu nunca mais fosse correr novamente. Mas, conforme meus pés agem, velozes, o corredor fica mais denso; a claridade é rapidamente substituída pela escuridão e eu começo a sentir um líquido gelado tocar os meus pés. E em um piscar de olhos, o corredor é invadido pela água. Ao olhar para trás eu vejo que é impossível voltar. Não há outra escolha, senão seguir em frente.

Quando eu encontro a primeira porta, não penso duas vezes antes de abri-la. Sei que ficarei segura mesmo que seja por pouco tempo. Entro no novo cômodo e percebo que conheço este local: É o quarto de minha irmã. Ela dorme tranquilamente em sua cama, pronunciando algo que não consigo ouvir muito bem. É bem provável que esteja sonhando.

– Pai...

Meu coração acelera neste instante e penso se ouvi corretamente. A pergunta que eu faço a mim mesma é se ela está realmente chamando pelo nosso pai. Ela tinha que me fazer lembrar dele mais uma vez? Isso só me traz sofrimento... A pequena lembrança que eu tenho dele continua me assombrando. Ainda posso o ver indo embora...

– Eu te amo... – Ana diz sussurrando, deixando surgir um pequeno sorriso a seguir.

Quero saber mais. A curiosidade virou minha inimiga e o que mais desejo é matá-la. Quero descobrir o que minha irmã está sonhando; quero que ela compartilhe comigo a sua alegria. Porém, me afasto dela e de sua cama; afasto-me de seu quarto, não porque quero, mas porque sou forçada a fazer isso. Tento me segurar em algum lugar, mas é inútil tal tentativa. Sou fraca. Deixo a água me engolir e vejo que logo vou me afogar; o máximo que eu consigo fazer é ficar batendo meus braços de forma desorientada e prender minha respiração até o meu limite. Estou quase sem ar... Já vejo todos que eu amo indo embora, para longe de mim... E quando penso que nunca mais vou respirar outra vez, ouço aquela voz novamente:

– Natália... Natália...

E eu acordo como se estivesse saindo da água, em busca de ar, enfim livre.

– Está atrasada – Diz minha mãe.

Olho em volta e não me admiro nenhum pouco ao perceber que tudo não passou de um sonho bobo. Uma simples ilusão, nada a mais. Apenas dou um pulo da cama; e sou ligeira para tomar banho, trocar de roupa e ir para a mesa me ajuntar para o café da manhã. Estou esperando o dia em que tomarei um café da manhã de verdade, como um daqueles que eu tomava quando meu pai morava aqui em casa... Como um daqueles que eu via nas novelas, antigamente, quando nós tínhamos uma televisão.

Ao ver que Ana está comendo o seu pão e tomando seu leite puro não como alguém que quer chamar a atenção, mas como uma pessoa normal, posso desconfiar que ela esteja planejando alguma coisa. Sei que não irá demorar muito para ela começar a falar e não fechar mais a boca. O fato de ela não estar brincando com a comida torna sério o que ela tem para dizer. Então ela espera até que nossa mãe se assente conosco, o que ocorre em apenas alguns instantes:

– Mãe, eu tive um sonho hoje! – Ana diz.

A palavra sonho, por algum motivo, me dá arrepios.

– E com o que sonhou? – Pergunta, desconfiada.

Neste momento meu coração começa a bater em uma velocidade incrível; chego até a ficar com medo que elas escutem sua batida. Não creio que isso possa ter alguma relação com o sonho que eu tive, mas se ela esteve mesmo sonhando com o nosso pai... se isso de fato ocorreu...Ana não pode dizer nada a respeito; ela sabe muito bem que a mãe não gosta que toquemos neste assunto.

Vendo que minha irmã está prestes a falar, olho para ela e balanço minha cabeça negativamente, torcendo para que ela continue quieta. Porém, ela me ignora e diz o que queria dizer desde o momento em que acordara:

– Eu sonhei com Deus.

Pedigru
Enviado por Pedigru em 04/10/2012
Reeditado em 29/10/2012
Código do texto: T3916697
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.