Olhos em bico de pena.
— Acho que vou desenhar alguma coisa, disse-me do outro lado da linha, com uma voz doce, logo após o silêncio aparente e encantadoramente infinito entre nós.
— É? E qual será a pessoa que terá a honra de ser eternizada pelas suas mãos?
— Uma mulher. Talvez, imaginária. Cabelos negros, pele clara, boca preenchida pelo rosa mais doce do mundo, e olhos… Olhos meus.
— Seus olhos?
— Não, os dela. Porém, meus.
— Não entendo.
— Entenderás.
Imaginei-o rabiscando os finos traços daquela moça misteriosa no silêncio que pairou entre nós desde sua última fala. Aqueles seus lindos olhos repousando sobre doces lábios que não eram os meus. Aquelas mãos encaixando-se em pincéis, enquanto seu real encaixe perfeito estava em espera. Aqueles cabelos tão leves caindo sobre uma folha de papel em branco, que logo seria colorida com feições desconhecidas… Ele a amava?
— Você a ama?
— O que disse?
— Perguntei se você a ama, repeti.
— Quem?, perguntou-me.
— A moça do desenho.
— Ah, sim… Talvez.
Ele era sempre esse homem misterioso, assim como a mulher dos olhos a serem traçados por aqueles dedos tão habilidosos escondidos em um rosto comumente bonito. Era o que diziam-me, claro. Eu o achava de uma beleza exótica e inconquistável. Seus pés costumavam fechar-se em círculos quando ele tocava violão, e seus olhos escuros eram encantadoramente apaixonantes diante de sua atenção ao desenhar. Ele via estrelas em cada falha de um céu nublado e insistia para que eu fizesse o mesmo.
— Já olhou para cima hoje?, perguntara-me certo dia.
— Para cima?
— Para o céu.
— Não…
— Vou passar aí e te levar para as estrelas.
Pensei que nos beijaríamos naquela noite, mas ele só queria me ensinar a ler o céu. Apontava com o rosto para cada pontinho brilhante, eu engolia sua proximidade com meus olhos insaciáveis. Minha boca queria a dele, ele queria a imensidão acima de nós. Sempre foi assim: um aspirante à liberdade.
— Alice?
— Oi?, acordei de meu devaneio.
— Quero te mostrar o desenho.
— Quando?, o mais rápido possível, por favor.
— Agora!
Ótimo.
— Tudo bem, desça a rua e eu estarei à sua espera.
Sempre.
— Até logo.
Desligamos. Vesti um vestido rosa, talvez, para combinar com os lábios da moça. Calcei sapatilhas negras para combinar com seus cabelos. Subi pela calçada, sempre encontrávamos no meio do caminho. Esperei por dois minutos e lá estava ele: olhos negros como a noite, cabelos balançando ao vento, uma folha de papel dobrada entre os dedos e aquela beleza escomunal que me tirava o ar.
Ele pegou minhas mãos, sem dizer nada ou tirar os olhos dos meus, e sussurrou:
— Acho que está igual.
Igual a o quê? Não perguntei, não queria alimentar seu mistério. Peguei o desenho entre seus dedos, abri-o sem desviar meu olhar dos olhos que se fixavam a mim de maneira inexplicável. Quando, finalmente, olhei para aqueles traços femininos em minhas mãos, senti meus pés voarem. Meu corpo inteiro saiu do chão, e eu quase alcancei o céu, se não fosse sua voz grave perguntando-me se eu havia gostado. Gostado? Nunca vira cabelos tão sedosos antes, tão negros. Nunca vira lábios tão rosados, pele tão macia, feições tão perfeitas.
E os olhos… Os olhos eram verdes e profundos, como os de qualquer outra mulher. Eram desenhados delicadamente, como se fossem traçados com uma pena de bico magicamente invisível a olho nu. O calor emitido por eles, porém, era meu. Única e exclusivamente, meu. Os olhos eram meus. Eu? Dele.