Maturidade
Não tinha nada de especial naquele dia. A chuva caía por sobre os guarda-chuvas que avançavam. Naquele mar de lonas pretas, era raro achar alguma cor. As pessoas não costumam a gostar de guarda-chuvas coloridos.
Eu sempre quis um guarda-chuva vermelho.
Naquele momento, no entanto, eu não me importava muito com a cor – eu só queria um guarda-chuva. Eu tinha um, na realidade, só que esquecera, meio de propósito, dentro do vagão do metrô. Era um daqueles vagabundos, que você só pode usar uma vez e ele já se espatifa. Além do mais, meu casaco era muito melhor contra as garoas.
Encolhi-me inteira dentro do sobretudo que, desajeitadamente, eu coloquei sobre a minha cabeça. Eu tentava andar o mais rápido que meus sapatos – e minha incrível habilidade com eles – permitiam.
Meu destino era uma cafeteria. Um amigo tinha me chamado para ter uma conversa e me mandou reservar a tarde inteira para isso. Foi difícil, porque eu só passaria três semanas no Brasil, e, pela primeira vez na minha vida, eu sentia minha agenda cheia de amigos.
Para ser sincera, eu não sabia o que fazer com toda aquela atenção.
O lugar era bem aconchegante. Sentei numa mesa no canto, que tinha vista para a avenida. Fiquei encarando, pelos dez minutos que adiantei do horário combinado, o relógio-termômetro da rua. Achei engraçado estar esperando às 15 horas e o relógio marcar 15°C. Essas coincidências com números sempre chamaram minha atenção.
Quando eram três e cinco chegou meu chá de maçã – meu tradicional chá de maçã. Enquanto eu mexia incessantemente aquilo, numa tentativa um pouco frustrada de esfriar o conteúdo, uma pessoa se sentou à minha mesa.
Abri um enorme sorriso, ainda encarando a xícara.
- Você está sete minutos atrasado.
Eu só recebi o silêncio de volta. Um silêncio constrangido, e até um pouco hostil.
Então levantei meu rosto.
Aquele, definitivamente, não era meu amigo. Ele não era meu amigo. Eu não conhecia aquele homem. Porém, o olhar dele dizia que ele me conhecia. Conhecia bem mais do que deveria conhecer.
- Me desculpa – ele encarou as próprias mãos, num sinal de vergonha.
Meu estado de incompreensão não deixou que eu o desculpasse – qualquer que fosse a culpa dele.
- Quem é você? – eu sentia meu coração bater rápido, como se quisesse sair à galope daquele lugar, e nunca mais voltar.
O homem se limitou a me encarar através dos próprios cílios.
Não foi alguma coisa naquele olhar que me disse que era meu dever conhecê-lo. E eu não sei bem o que foi, na verdade, mas confesso que a culpa que me atingiu por eu não lembrar aquele rosto foi grande. Eu não costumo a apagar rostos da minha memória.
Depois de alguns minutos de silêncio, o homem voltou a me encarar, inspirou duas vezes, para tentar começar a falar, mas desistiu. Só da terceira vez ele conseguiu fazer as palavras sem força saírem da garganta.
- Antes que você se lembre... Eu tenho que dar explicações – sua voz tremia e a respiração gritava – eu não tive cara o suficiente pra... Pedir para falar com você. Então eu pedi pra ele fazer isso. Não é culpa dele. Por favor, não o culpe.
Era interessante como ele podia ler os meus pensamentos – ou talvez seja porque minha alma berre pelos meus olhos. Eu realmente culparia meu amigo por aquilo.
- A verdade... Eu... Eu precisava te ver – ele abaixou os olhos, agora encarando os próprios joelhos – faz muito tempo que eu sequer te vejo e... – ele me encarou agora – eu queria saber se você estava bem.
Eu não posso dizer que as palavras ficaram na minha garganta. Simplesmente não havia palavras em nenhum lugar, muito menos em minha garganta.
Fiquei parada ali, encarando meu estranho.
- Você... Não vai perguntar quem eu sou de novo? – ele me olhou de lado, me encarando com medo, provavelmente com medo da minha resposta.
- Não – eu dei os ombros e voltei a atenção ao meu chá.
O cheiro da incompreensão se espalhou pelo ar. É obvio que ele não fazia a mínima idéia do porquê eu não queria saber quem ele era, como qualquer pessoa normal gostaria de ter sabido. E eu realmente torcia para que ele não tornasse o “porquê” que martelava no ar verbal, pois eu tão pouco não sabia a resposta.
- P... Por quê? – droga.
- Eu tenho medo da resposta – foi tão imediato e pronto que nem eu mesma acreditei que fosse legítimo.
Eu não olhei para ele. Eu nunca soube qual foi a reação dele. Continuei mexendo no meu chá – que, a essa altura, não soltava mais vapor. Provavelmente já tinha esfriado o suficiente para que eu tomasse tranquilamente. Eu tirei a colher de dentro da xícara e peguei na alça, já levando o chá até a minha boca quando duas mãos seguraram as minhas na mesa, em cima da xícara, batendo-a no pirex.
Eu fiquei encarando as mãos. As mãos de pele tão clara que se avermelhava. As mãos quentes nas minhas geladas. Os dedos compridos e um pouco tortos. As unhas roídas e deformes, curtas, que demonstravam tanto sobre a pessoa que ele era.
E aí eu percebi.
Meu ar parou. O tempo parou. Meu coração acelerou. Meus pulmões tentaram, desesperadamente, puxar o ar e ele não vinha. Por um segundo, eu não pude enxergar mais nada além do interior da minha mente. Eu não pude vasculhar nada além das minhas memórias vazias sobre alguém que eu tinha me forçado tanto a esquecer que eu tinha dificuldades de resgatar agora. Eu tinha enterrado tão profundamente que era uma tarefa quase impossível puxar de volta. Senti as minhas mãos gelarem ainda mais. Aquilo era ruim demais para estar acontecendo de verdade.
Quando eu voltei a superfície, alguns segundos depois, tentei encará-lo nos olhos.
E ele teve medo.
Ele sempre teve medo.
- Diana – ele sabia. Apesar de um bastardo completo, ele me conhecia.
Tentei respirar. Mas estava realmente difícil. O mundo girava a minha volta. E tudo o que eu via eram os olhos dele – tudo o que eu sentia era o tato quente com aquelas mãos outrora tão conhecidas. O toque quente nas mãos geladas.
O ar foi expulso dos pulmões de novo. Ele não queria voltar. Eu já sentia as lágrimas irem rápidas aos meus olhos, querendo pular e rolar pelo meu rosto.
De novo.
- Arthur.
Minha garganta se amarrou àquela palavra – àquele nome. Um nó rápido e doloroso se formando, tornando minha respiração ainda mais impossível. Todos os músculos do meu corpo contraídos na cadeira, e eu tinha certeza que teria que pagar muito caro por aquilo.
Ele me olhava ansioso, não tirando os olhos de meu rosto agora. O som fraco que saiu por entre meus lábios, dizendo seu nome, de alguma forma, deu-lhe forças. Aquele medo que eu vira em seus olhos quase verdes – que, àquela luz, quase cor de areia – se esvaiu quase que completamente. Aquele olhar meio covarde que tanto lhe era típico tinha dado lugar ao astuto, que eu tanto odiara ver ali.
Nos olhos que, um dia, foram quase meus.
- V... Vai... Embora – foi o máximo que minha garganta amarrada conseguiu formar. Sem liberar as lágrimas que estavam prestes a cair de meus olhos.
- Não, eu só preciso que você me escute – ele adquiria força a cada palavra, era tangível – por favor, me escuta...
Meu desespero foi dando lugar à raiva. E eu, que não era conhecia pelo auto-controle, desejei que ele só virasse as costas e fosse embora. Era só isso que eu desejava, de todo o coração. Mas eu sabia que ele nunca entenderia.
Ele não fazia muito mais que a vontade dele.
- Diana, me desculpa. Eu... Eu fui... Eu... – ele respirou, colocando a cabeça entre os braços, ainda esticados para segurar minhas mãos – eu senti a sua falta.
A vontade de arremessar-lhe um tapa na cara foi a maior possível.
- Por favor... Eu só quero... Eu quero... – ele se atrapalhava tanto nas palavras, e isso também era tão típico – quero que você seja minha amiga.
Não pude segurar uma risada um tanto quanto escandalosa, fazendo com que alguns ali em volta olhassem na minha direção, quase como se ele não existisse à minha frente.
Não era a primeira vez que ele me fazia essa proposta. E não seria a primeira vez tão pouco que ela não daria certo.
Eu mantinha minha boca fechada. E os minutos de silêncio se formaram sólidos entre nós. Eu encarava sempre os olhos dele, e, por vezes, ele não sustentou meu olhar. Provavelmente, o negro deles era pesado demais para ele suportar.
Ele nunca fora muito forte mesmo.
- Você não vai dizer nada? – ele disse, quebrando o muro invisível que a ausência de palavras havia formado entre nós.
Olhei através da janela, e só pude ver o relógio. Eram três e vinte cinco. Aquela conversa estava demorando mais do que deveria demorar. E saber daquilo apenas me sufocou mais. Meu peito ficava pesado e eu tinha vontade de arfar, implorando por ar. Meu coração estava praticamente insensível. A chuva começou lá fora e eu, mesmo assim, só pensava em ir embora. Eu queria sair correndo. Meus pés estavam prestes a galopar para fora dali quando, algo aconteceu.
Eu senti uma irradiação de calor bem perto de mim e, quando me virei por reflexo, tudo o que pude sentir foi mais frio. Uma corrente elétrica passou desde a ponta dos meus dedos até meu rosto, percorrendo cada milímetro de minha pele. Finalmente, uma golfada de ar, mas esta parecia completamente vazia. Ele tocava meus lábios quase urgentemente com os dele. Fazendo com que eu quase não respirasse mais de vez. Eu sentia o nó dos dedos dele apertarem as minhas mãos cada vez mais.
Cada parte minimamente sã de mim gritava.
Gritava por mais. Mais e mais.
A velha ferida se abria aos poucos, a medida que eu me rendia aos lábios dele, abrindo os meus. Eu sentia minha alma ardendo, meu coração despedaçado. Minhas pernas bambeavam, mesmo que estivessem relaxadas... E a ferida só abria mais.
E eu desisti. Desisti de ouvir o único sussurro são que havia no fundo de minha mente, dizendo que seria melhor ir embora.
Sim, nós nos conhecíamos. A presença dele queimava em mim como um milhão de sóis, o toque dele esfriava e esquentava minha pele, como se estivesse profundamente queimada. O beijo dele derramava o mais letal dos venenos para minhas entranhas, e mesmo que eu soubesse disso, tomava de bom grado. Entrelaçar meus dedos nos cabelos curtos e loiros só trazia ao meu tato um velho amigo.
Meu coração chorava. Eu não sabia que era possível sentir saudade de alguém sem sequer se lembrar de sentir saudades. Eu não sabia como apenas um gesto podia me fazer tão mal e tão bem. Como a presença de alguém pudesse ser tão ambígua, a ponto de confundir todos os meus sentidos ao mesmo tempo.
E então acabou. Ele olhou para os meus olhos, a centímetros dos verdes ardentes dele, e ali não pude reconhecer a pessoa que se perdera dentro de mim.
Faltava alguma coisa. Uma peça ao quebra cabeças.
Ele não me disse nada.
Contra tudo, eu continuei sentada. E eu precisei só de mais um movimento para puxá-lo para perto de mim mais uma vez e beijá-lo novamente. Eu não me importava mais com o que eu sentiria depois, com o vazio que com certeza ficaria ali, sem reparação. Ele me apertava contra seu corpo, e de repente não havia mais ninguém a nossa volta.
Eu não me lembro do exato momento no qual saímos de lá, porque para mim deitamos em minha cama logo depois do segundo beijo. Para mim o tempo era só um detalhe quando eu sentia o contato quente da pele dele na minha. Eu sentia meu cabelo molhado da chuva que tínhamos tomado, mas eu não me importava. Nem de fazer aquilo com a janela aberta, com o vento cortante passando por minha pele e me queimando.
Porque nada me queimava mais que a presença dele.
Eu nunca me sentira tão perdida em minha vida. Minha maturidade se confundido; de repente, eu era aquela garota de dezesseis anos que não sabia nada da vida e cujo mundo girava em torno da pessoa que me possuía agora. Ou não. Alguma parte de mim ainda me dizia que aquele não era ele.
Seu toque parecia distante demais do que eu lembrava, e eu tenho certeza de que as noites que eu passei em claro lembrando todas as confusões de sentidos que ele me causava não foram completamente desperdiçadas, minha memória não me trairia dessa vez. Suas mãos, embora as mesmas – apenas acrescidas de algumas cicatrizes que eu desconhecia – não encostavam em mim da mesma forma. Seu olhar era o de um estranho; um estranho que eu nunca conheci, e um estranho que eu tinha certeza que jamais iria conhecer.
Ele ainda era o homem, antes um garoto apenas, que me dava prazer. Porém agora, era dono de um desgosto que nunca passaria despercebido. Ele ainda era aquele que sabia o que fazer comigo, mas ainda sim, não da forma certa. A culpa não era da maturidade que lhe dera mais pelos na barba ou um olhar cansado. Alguma coisa em sua essência havia mudado.
Uma parte de mim estava satisfeita por fazer aquilo – não feliz. Feliz é uma palavra forte demais. Eu sabia que assim que ele fosse embora eu deitaria na cama na qual estávamos agora e choraria. Choraria por dias que para mim se estenderiam por anos. Anos que se estenderiam ao infinito e voltariam a realidade como um “para sempre”. Eu não queria me enganar, sabia que ele não voltaria pelos próximos anos. Eu sabia que eu sentiria uma saudade doentia de tudo aquilo.
Eu sentiria a falta do meio sorriso quando eu não entendesse nada. Eu sentiria falta dos olhos fechados enquanto se deleitava. Eu sentiria falta da barba mal feita roçando a pele de meu rosto. Eu sentiria a falta da pele avermelhada que ficava quase arroxeada ao menor toque dos dedos, após alguns segundos de uma palidez quase igual a minha. Eu sentiria falta das promessas vazias, das mentiras convincentes, da ilusão de felicidade. Eu sentiria falta dos olhares desviados e até mesmo da testa vincada quando em sua mente havia irritação.
Mas eu ainda sentia falta disso. Mesmo sabendo que ele estava tão perto de mim, eu ainda sentia falta dele. E é por isso que eu sabia que aquele não era o homem que eu amei. O corpo tinha suas lembranças da pessoa que ele foi, mas a pessoa... A pessoa não era a mesma.
E não seria.
- Diana... – ele deixou escapar um leve sussurro no meu ouvido.
De olhos fechados, eu facilmente acreditaria que era ele que estava falando comigo. De olhos fechados, eu podia imaginar que era ele, e, com algum esforço, sentir que era ele.
Eu tentei ao máximo esconder a lágrima que escorreu pelo meu rosto, mas no final achei que nem precisaria ter escondido. Ele não teria visto, ele não prestaria atenção. E mesmo que visse... Não acho que se importaria com qualquer demonstração minha de sentimento. Há muitos anos ele parara de se importar.
Ele repousou a cabeça em meu peito. Eu não fiquei muito preocupada, como ficaria algum dia. Há muitos anos, eu sentiria medo que ele viesse a sentir meus batimentos cardíacos mais fortes do que deveriam ser perto dele. Mas agora meu coração se encontrava calmo, como se nada tivesse acontecido, como se eu não tivesse encontrado ninguém.
E eu de fato não encontrei. Ele era um estranho, assim como eu tinha certeza que me tornara uma estranha para ele, muito provavelmente bem antes de eu não reconhecer o olhar nos olhos de Arthur, ele não reconhecera o sorriso em meus lábios. Docemente me permiti lembrar o dia no qual ele me disse que meu sorriso era o que mais lhe fazia feliz. Se bem me recordo, ele me arrancou um sorriso de canto dos lábios, e eu o abracei. E me senti feliz.
Um dia, as minhas lembranças nebulosas me recordavam, ele me fizera muito feliz.
Mas o tempo nos desgastou. Tudo o que tínhamos, sentíamos, vivíamos... Mudou. Nós mudamos e amadurecemos. Os meus sorrisos ficaram raros, os olhares dele ficaram covardes. E nós nos tornamos adultos. Quase prometemos que seríamos jovens para sempre, mas acabamos como qualquer outro par de adultos maduros.
Eu queria chorar. Eu queria fechar meus olhos e sentir a dor que um dia eu sentira por não tê-lo, e não poder tê-lo – mas, por mais que eu a procurasse, ela não estava mais lá. Não havia mais dor, nem amor, nem olhares, nem sorrisos. E se ele fosse embora? Se ele fosse embora eu sentiria a falta dele como eu pensei que sentiria há cinco minutos?
Não. Eu não sentiria. Eu continuaria a minha vida. Talvez eu me lembrasse dele. Talvez eu sorrisse ou fechasse a cara para o ar quando pensasse nele novamente. Mas aquele que provocaria reações em mim não era aquele deitado em meu peito, seria outro. O outro. O que não me era estranho. O dos olhos quase verdes, quase cor de areia, que não entendia como eu funcionava. Que não sabia fazer as coisas direito. O que me fizera feliz.
Eu sentiria saudades. Eu sentia saudades. Eu sentira saudades.
E não importa o quanto eu esperasse por ser telefonema, por sua aparição na minha porta, ou numa cafeteria... Ele não voltaria. Arthur nunca voltaria. Ele ficara no meu passado, assim como eu ficara no dele. Nós éramos apenas fantasmas do que fomos, lembranças esquecidas de um passado que não voltaria mais.
Ele não voltaria mais. E eu esperava que não, embora uma parte minha quisesse ardentemente que sim.
A mão dele pousou na minha. O toque quente nas mãos frias.
Certas coisas nunca mudam, mesmo que tudo mude.