DIAS VAZIOS

A luz que vinha dos outros cômodos emprestava a atmosfera da sala uma inebriante penumbra. Um corpo começou a se movimentar sensualmente como numa dança num ritmo de uma musica lenta e tímida que vinha de um devastado aparelho de som numa banquetinha junto à televisão. O corpo era desengonçado, grande, num quimono desbotado em gris manchados com estampas de berrantes papoulas. O corpo agitava-se indo e vindo como se esfregasse os pés descalços sobre o piso empoeirado; as mãos para direita, ora para esquerda como se dançasse com outro corpo. Pela sombra adivinhava-se um vulto de mulher maltratada, mas pela vidraça da janela empoeirada a frente via-se um rosto andrógino, vencido pelas marcas da idade, os cabelos num embaraço alvoroçado. A musica era triste, compungida e repetitiva, e confundia-se o som quase estéreo com a voz rouca e grotesca do corpo que se movimentava.

Ah, era natal. A noite estava fresca apesar do verão, pois uma chuva lavara a pouco toda calçada e a rua árida do mormaço do dia. Renato, magro, pequeno e pálido, refugiou-se ali ao portão, mas pouco a pouco a rua ia esmorecendo de passos, e os portões iam se fechando; os rostos, como que alegres, escondendo-se atrás de seus muros. Uma risada ali e outra acolá se juntava a um choro contínuo de uma criança. Um garoto passou a rente à calçada em que ele se encontrava, e o olhou espantado como de o ver ali. Renato admirava a janela brilhando no pisca-pisca da casa a frente, a casa de bela fachada, onde Charles devia estar escondido, aconchegado com sua família.

Abaixou o rosto melancolicamente, dali do portão podia ouvir a musica que vinha do interior de sua casa. Os tristes sambas que Mãezinha tanto adora. A solidão de ambos. Durante o dia ela estivera adormecida em seu quarto, com as janelas fechadas, o ventilador ligado, o corpo atirado de costas em cima da cama de colchão mole, os braços para cada lado, o ronco alto na atmosfera abafada e escura. A tempestade que a despertou, de súbito chacoalhando a janela pelas rajadas dos ventos. Levantara-se como que tonta, sorriu para o rapazinho franzino e assustado a sua frente, acariciou lhe o queixo, os olhos empapuçados, e saiu arrastando o devastado quimono pelo chão empoeirado.

_Vamos preparar uma ceia queridinho, afinal hoje é véspera de natal – disse a figura bocejando, abrindo a geladeira. Ah, precisava dar uma alegria, qualquer alegria aquela criança. Seu menino. Por que não? Seu filhinho, estava já um rapaz. Crescia bem, forte. O dinheiro do pai pagava-lhe o bom colégio. Se pudesse fazer mais. Por que o menino sempre parecia tão triste? Tento ser feliz para fazer alguém feliz, minha Virgem Santíssima, foi acendendo uma vela para a imagem da santa em cima da geladeira. As rabanadas que encomendou na padaria chegaram logo após a tempestade, assim como o frango assado com farofa. O próprio rapazinho fez questão de fazer o arroz. Iam ter uma ceia, como a do ano passado, mas nenhuma como aquelas anteriores que a casa se enchia de gente, gente do cabaré, do teatro, ah , mas todos ingratos se foram quando a “farra” pareceu diminuir. Como é difícil manter os amigos de verdade. É quando se percebe que está velha, sempre reflete com a imagem que não nega no espelho do toucador, notando que os pelos crescem irascíveis vencendo a depilação que não chega mais dinheiro, mas ainda lhe resta um quê de dignidade, empoa-se, perfuma-se, maquia-se, depois de um aconchegante banho de imersão. É sempre uma mulher, uma digna dama. Mas não consegue sair dentre aquelas quatro paredes. Sabe que o mundinho lá fora não a ver assim. Os parentes de Marcelo logo ali à frente, mas é como se nem... Tanto orgulho, meu Deus, e faz uma careta contrita para o espelho do lavabo, aliviando o rosto suado, a maquiagem desfeita. Despertar! Maquiar-se novamente, reerguer a nova mulher a cada instante, após cada desmaio.

Renato apoiou-se no umbral do muro, passou seus olhos estrábicos pela rua esvaziada, iluminada e morna. De repente o coração acelerou, sentiu o sangue correndo aquecido nas veias e empalideceu, por que Charles despontava na esquina, com as mãos nos bolsos da bermuda, os cabelos loiros e longos balançando ao vento. Nossa, exclamou secretamente, parecia bem mais alto, empertigado, olhando para frente, e quando ficou tão de perto, bem a calçada oposta, a luz do poste, Renato percebeu lhe o cenho franzido, sério do rapaz. E o processo físico era de um pequeno desfalecimento que Renato sentia aguentando-se como podia, os olhos ávidos em cima da magica aparição. Entrou, após abrir o portão, batendo este sem ao menos se voltar. Pronto, havia passado, mas continuou aquele toar surdo em seu coração, a palidez como de quem perde sangue, a leve sensação de desmaio. Toda sua estrutura física estremecera a passagem de Charles. E tudo durara pouco mais que um minuto. Havia acabado. E talvez não tivesse mais esperanças por aquela noite de acontecer novamente, e apenas lhe restou desviar os olhos enviesados para as sarjetas úmidas da calçada; aqui e ali uma arvore plantada na calçada sussurrava suas copas magras ao vento-brisa tímido da morna noite. Aos poucos se foi sossegando o coração, os nervos encontrando freios, e ele era como uma pessoa que estivesse parada a estação e abalara-se a passagem turbulenta de uma locomotiva e só agora o silencio devolvia lhe a paz, mas não era tão definitivamente uma paz, antes parecia mesmo um vazio, e algo começou a remoer lhe as entranhas, doía e aquietava-se cadenciamente, mantinha-o inerme, esquecido, longe, nem mesmo o som que vinha do interior da casa, às suas costas, ele conseguia mais distinguir, era tudo como o mesmo sussurrar do vento, o eco das risadas e dos gritos perdidos na vizinhança.

A mesa era pequena e quadrada, e o rapaz e a figura andrógina admiravam-se pouco absortos em seus pratos. Ela arrepanhou um pouco as mangas frouxas do quimono, respirou como enormemente empanturrada, mas o que se via na pequena travessa ao centro era que o pequeno frango pouco se destrinchara. Renato fez um pequeno gesto de quem afasta o prato, mas recolheu as mãos sob a mesa.

_ Perdoe meu filhinho – disse de repente a massa vultosa a sua frente, os olhos empapuçados derramando-se numa melancolia de lábios crispados – não parece uma noite de natal.

_Que nada, Mãezinha – retrucou o garoto com mansidão na voz nasalada – importante que estamos nos dois aqui, não é, sempre juntos. Que outra família eu tenho.

Ah, mas sempre se espera algo do natal, a atmosfera magica, foi errando o pensamento da criatura, respirando fundo o aroma das folhas revolvidas das plantas do quintal pela noite aconchegada. As mãos de punhos peludos e unhas esmaltadas buscaram as miúdas mãos do menino sobre a mesa. Apertaram-se fortes, mas ele afugentou os olhos tristes, pensando um sorriso que nasceu em seus lábios, melancólico, mas presente. Bom o presente o menino tivera. Era um rapazinho já, com quase quinze anos. Parecia relutar com o fim da infância. Ganhara um livro de estórias, mas de repente, agora, quando o via assim com aquele sorriso que nascia nos lábios, bom o menino já não era desses meninos que ler livros dessas estórias. Acontece que Renato parecia ser um rapazinho que nada o preocupava, e difícil era adivinhar o que lhe faria bem, o que o agradaria. Parecia neutro e satisfeito, embora ofegante ultimamente. Ela sabia dos hormônios, afinal também já fora um rapazinho, ela que se tornara mulheríssima, embora agora certa decadência fosse de se notar, mesmo que os disfarces lutassem, porem grande, digníssima dama. Respirou fundo, inclinou-se sobre a mesa, beijou-o nas duas mãos.

“Feliz Natal”, bom abraçavam-se, mas sentiam a certa artificialidade em si daquele ato. Mãezinha estourou a sidra a sala iluminada, a televisão ligada passava um destes filmes enjoados e repetidos todos os anos a mesma época, e beberam em taças de acrílico a sidra adocicada com sabor próprio da data, e assim como a rabanada açucarada e de canela sabiam que tudo era em prol da impregnação de um ambiente, e a criatura agia alegre como na coxia de um dos seus teatros rebolados, ora arrastando o menino magricela para lá e para cá, ora o rodopiando, ah e como se sentisse confetes, serpentinas alvoroçou-se na figura uma demasiada alegria que a tomou de êxtase, e maquiagem desfeita pelo suor sorria encarando o rapazinho surpreso. As mãos de punhos peludos alargaram um gesto amplo que parecia querer mostrar que os “convidados” já haviam se ido.

A concha morna tinha o perfume enjoativo de rosas; uma rosa de corola abatida repousava sobre um solitário de acrílico ao meio da penteadeira, entre as quinquilharias que amontoavam a base do móvel. Sentou-se no tamborete, e com um algodão aos poucos embebido em leite de colônia, foi desfazendo a maquiagem pesada que já se desmanchara bastante pelo suor. Renato abriu a janela, e o vento fresco entrou de chofre sobre o ambiente abafado, levantando um cheiro tépido de gavetas fechadas. Renato admirou o horizonte cortado e escuro no longínquo quase junto ao céu; relâmpagos brilhavam de quando em vez por acolá, e a casa da frente, a janela da sala apagada, apenas o pisca-pisca azul-lilás-verde-prateados iluminava o ambiente acomodado, oculto de sua visão. Respirou fundo, guardou novamente o gosto secreto da lembrança, por relembrança, revirando, revolvendo como terra remexida, dedos que catam o tesouro oculto.

Charles já estaria dormindo, perguntou-se triste, embora com um sorriso, debruçado à janela, sentindo a caricia de uma rama de roseira junto à janela. Deve ter ganhado muitos presentes, calculou. O rosto fechado, sério, caminhando pela calçada, as mãos nos bolsos. Os pisca-piscas continuavam na sala apagada, alguns reflexos batiam ali pelo vidro baço da janela. Renato abriu um sorriso para aquela tênue iluminação. Tentava agarrar o fio frágil, que era aquela luz piscando, como quem quer agarrar uma linha da felicidade.

Férias escolares. O verão árido dos dias longos de janeiro. O ano-bom e seus fogos espocando, tudo já antecipava uma melancolia, era como encontra-la enfim.

_Não quer se deitar aqui com a mamãe – convidou a criatura levantando-se languida.

_Acho que vou para meu quarto, Mãezinha – retorquiu voltando-se – vou ler o livro que ganhei.

As mãos de punhos peludos agarraram as mãos frágeis e miúdas num apertado gesto de caricia e aproximação.

_Sim meu amor, vá – e escorria lhe pela face em mascara um risco molhado negro de sua maquiagem se desfazendo. Chorava, perguntou-se o garoto confuso franzindo o sobrolho.

_Feliz natal meu querido – e o beijou nos cabelos com ternura, bamboleando-se ao desvencilhar-se, acudindo até a janela que fechou com estrepito, mesmo cerrando as cortinas.

Renato trancou-se em seu quarto. A luz acesa pendendo de um fio lúgubre. Deixou as persianas abertas, ligou o ventilador no teto. As pás giravam lépidas, porem monótonas espalhando poeira. Um panda de pelúcia encardido encontrava-se em sua cama com a cabeça pendendo tristemente para fora. Deitou-se com a roupa que estava vestido. O livro fulgurava sobre a cabeceira. Seus olhos estrábicos erraram um pouco por suas letras embaralharam-se, com as pernas cruzadas, a cabeça confortada sobre o macio e gasto travesseiro. Alguns insetos zanzavam tontos pela lâmpada acesa, zuniam. Um eco de risada bateu de chofre para dentro do quarto, como que entrando pelas persianas abertas e espavorindo os insetos tontos na lâmpada. Renato largou o livro aberto de capa para cima sobre o peito e os olhos buscaram ansiosos qualquer coisa no teto. A risada, gutural e quente, o enchera de uma paz dolorida como se jamais quisesse ser salvo do que sentia. Depositou o livro sobre o criado mudo e agarrou-se ao bicho de pelúcia encardido. Não havia tristeza nem alegria em seu momento.

Quando foi que ganhara aquele bicho de pelúcia? Não se recordava bem, e se lhe parecia que sempre existiu daquele modo encardido, o focinho como algo de um cachorro cotó. Agarrava-se a ele como a um resto de esperança. Confortava lhe o toque áspero, há muito sem perfume. Às vezes batia-o pela janela expulsando lhe o pó, estendia-o nos braços e o admirava como quem admira sempre algo novo.

_Meu bichinho – murmurava cheio de momo, repleto de ternura ainda pequenino, mas cheio de esperanças como novos rostos, rostos de verdade, rostos de anjos. Sim, anjos. Charles.

Na noite de ano novo ficaram ainda mais sós. De súbito sentiram que a rua estava esvaziada e varrida pelo um vento morno e contínuo. A casa a frente, as luzes apagadas, apenas a do jardim, um pouco alquebrada, mostrava certos detalhes escondidos em penumbra. Sim, eles haviam saído para passar o ano novo em alhures. Charles devia estar agora próximo a uma praia, cercado de amigos e amigas, os fogos espocando, alegria e confetes numa noite agitada, perfumada. E Renato olhou com certa salubridade para a calçada da rua, um individuo ali, outro acolá, rindo sem muita vontade; alguém se arriscava a admirar a noite cheia de ventos, ao portão numa distancia em que mal se podia adivinhar a familiaridade do vulto.

Mãezinha assistia à televisão, em seu quimono desbotado, os braços arrastando-se para fora da poltrona, desabada toda sobre o peso de si mesma. Quando viu o garoto entrar, assim suspirante, empertigou-se melhor na poltrona.

_Que foi meu benzinho – disse num momo – parece tristinho.

Renato olhou aquela face em mascara, rasgou um sorriso de qualquer jeito, meneou os ombros, disse que não, não estava triste. Como não, imaginou a criatura desviando os olhos melancólicos, empapuçados. Noite de ano novo, e os dois ali sozinhos, mais sozinhos que na noite de natal. Fogos começaram a espocar aleatoriamente, e de súbito os dois se viram assustados um diante do outro. Renato aceitou sentar-se aos joelhos dela, deitou seu rosto aquele colo quente, oculto no quimono fechado. Não sentia a maciez dos seios, porque já sabia bem que não havia seios.

_você vai ver, logo, logo vai fazer amiguinhos, e... – não completou pareceu ouvir o menino murmurar como quem chora, mas ele ergueu o rosto afogueado, bocejando apenas.

_A senhora se importa se eu já for dormir, Mãezinha – perguntou.

_Claro que não – e olhando para o relógio de parede à esquerda – mas quando for meia noite vai acordar com o bombardeio de fogos.

Saltou dos joelhos dela, sorrindo, tolhido, magro, pequeno. Não, não iria acordar, nem acreditava neste bombardeio de fogos. Foram todos embora, foram para a praia. Só os enclausurados ficaram naquele bairro morno.

No quarto escuro e um pouco abafado abraçou-se ao urso de pelúcia encardido. Meu bichinho, balbuciou confortando-se. Ouviu o estrepito da porta sendo fechada, e teve consciência que Mãezinha também fora dormir. Não ela também não esperaria o bombardeio de fogos saudando o ano novo. Charles há essa hora estava com amigos ou com a família perto da praia, diante de uma mesa bonita, cercado de luzes e perfumes. Anjo, pensou e agarrou-se mais ao bicho de pelúcia, o cheiro de mofo o encorajou, mesmo o aconchegou. O quarto nadava sobre atmosfera gris, com sombras pálidas errando pelos cotovelos do teto.

O primeiro dia do ano amanheceu nublado; as plantas em suas latas antiquíssimas como que soterradas mostravam-se pálidas e paralisadas. Renato não sentiu absoluta tristeza, e ficar no quintal trouxe-lhe certo agito, ouvindo daqui e dali vozes, risadas, gritos de crianças, que vinham da rua e da vizinhança; som de carro ligando, pneus cantando no asfalto; um ronco de moto se perdendo ao longe; cheiro de arroz queimando, um grito-soluço de acuda, ele riu, arrancando uma folhinha suja de uma planta triste nascida do seu próprio escombro, pois seu vaso estava partido e rente ao muro como se há muito tempo alguém houvesse atirado contra parede, mas dali ela foi se revigorando, arrumando-se e revivendo do seu próprio escombro. Quebra-pedras rasgavam pelo chão ressequido de certo cimento gastado ali junto à janela do quarto de Mãezinha. De vez em quando achava um velho e sujo pregador de plástico, uma vez um carretel vazio de linha, um caco de disco de vinil amarelo – Mãezinha dissera que era um dos discos importados do seu pai.

Um alvoroço a calçada a frente, um motor silencioso de carro. Com o coração aos pulos, olhos estrábicos arregalados, Renato abriu o velho portão de lata que rangia. Charles estava à calçada oposta, de blusa preta, tênis, bermuda azul; debruçava-se sobre a janela do carro, rindo e conversando com alguém que devia estar ao volante; o portão estava entreaberto como se alguém acabara de entrar e o deixara assim para que Charles entrasse e cuidasse de fechá-lo quando passasse. Suspirou sentindo o tatalar de asas dentro do seu peito, agitando-o, fazendo-o tremer. Que visão divina não era para seus olhos aquele rapaz: Charles, alto, cabelos longos e dourados em que ele passava as mãos tão gracioso; o rosto comprido e lindo, certo semblante arrogante, vaidoso não sabia bem distinguir. Se pudesse se aproximar, mas tremia só em olhá-lo assim de longe, quem imagina chegar próximo.

Charles despediu-se do motorista dentro do carro, acenou lhe num gesto com os dedos, sorrindo, e o carro deu a ré, contornou e disparou pelo lado oposto da rua, mas Renato não teve curiosidade de olhar quem estava ao volante, continuou com os olhos fixos em Charles, que antes de virar as costas mirou os olhos em quem o observava. Franziu o sobrolho carregando-o. Renato empalideceu, sentindo um formigamento pelas entranhas, e abaixou a cabeça, mas quando afinal teve a coragem de levantar o rosto, ele não estava mais ali, a bela visão adorada já havia saído, e o portão parecia hermeticamente fechado.

Ah tudo passara, e um vento veio vindo assim, fez redemoinho, pareceu subir para as copas das arvores de caules magros plantadas na calçada e espalhou sujeira pelas sarjetas, e atingiu o garoto triste, bagunçou lhe os cabelos ressequidos e alvoroçados. Tinha um aroma morno de poeira aquele vento, mas quando Renato entrou parecia outro, ou antes, aquele que fora a noite passada. Mãezinha dormia a sesta na sua concha abafada e escura, bom e ele tinha aquele momento de esvaziamento. As asas cessaram seu tatalar, e deixara uma sensação acida na boca de seu estomago.

Quantos dias se passaram, de súbito um dia quente demais desses de Mãezinha passar inteiro imersa na banheira, desfigurada, sonolenta, com uma sombra azulada no rosto. Renato brincava no quintal desmoronado, caçando objetos velhos e perdidos entre os escombros de terra e cascalho que legavam o abandono, tal como um arqueólogo em busca do passado, e assim ele admirava também aquelas malas atulhadas e empoeiradas no topo do guarda-roupa monstro do quarto de Mãezinha, cheio de gravuras de atrizes e atores antigos colados em sua porta; teias de aranha dependuradas no globo encardido que escondia a lâmpada que quando acesa tinha um tom meio alaranjado.

Um velho botão acinzentado, grande, sujo de um barro seco e antiquíssimo; os dedos do menino escavaram e com grandes olhos admirados apreciou sua descoberta. Lavou sob a torneira do tanque manco e enrugado no canto do quintal, e foi descobrindo o botão como uma peça linda e rara. Um botão de uma sobrecasaca, imaginou num sorriso magico com a peça entre os dedos. As arvores com seus galhos hirtos, o tempo suspenso numa poeira seca, um sol ardente e vivo num céu de opalina.

O rádio de dona Conceição, na pequena parte dos fundos da casa, é que ele ouvia; as orações histéricas com um fundo musical compungido. Deus e o diabo pareciam guerrear na voz áspera do locutor. Parecia com aquelas peças musicais dos discos antigos de seu pai, ele lembrava bem, mas aquela parecia muito mais histérica e delirante.

O carnaval chegou num dia seco e poeirento nos primeiros dias, e foi naquele sábado ardido pela tarde que Renato chegando ao portão viu Charles parado ao portão, olhando para a direção que caminhava para a praça. A rua estava esvaziada, e as casas guardavam secretamente um ar de quarta feira de cinzas em suas janelas fechadas. Todos se abateram para o litoral em busca de diversão, mas Charles ali, sim parecia plácido, quase sorrindo, os cabelos soltos, uma camisa preta de banda, bermuda azul e branca, chinelos de dedos. Renato sentiu o coração pular, as entranhas revolverem-se e o tatalar de asas de pássaros o agitando no peito que intumesceu nascendo de repente uma leve falta de ar e tontura nas pernas.

Aproximou-se. Perguntou-se muito tempo depois como, alguns instantes depois se. Entre as duas calçadas, como ele olhasse muito para o chão, parecia haver uma enorme cratera que ele transpôs como que de uma forma magica, por arte de encanto, mas não era encanto ficar assim frente a frente com ele. Estava. Mas via lhe realmente a fisionomia? Charles fitou-o sorrindo, embora as sobrancelhas estivessem franzidas num modo interrogativo.

_Não viajou – perguntou gaguejando, seco, tremulo na sua vozinha mínima. Era a voz de um sujeito asmático.

_Foram sem mim os canalhas – respondeu Charles divertindo-se sem amargura no tom de voz.

Renato riu, arriscou um olhar que se levantou.

A rua está tão vazia que parecemos os únicos, pensou em dizer não disse nada, ficou engolindo em seco, num ricto de riso nervoso e tremulo. Charles já havia virado o rosto, cansado de esperar que aquele ao seu lado dissesse algo, pois não fora ele que tivera a ideia de se aproximar, então que falasse não ficasse o olhando aparvalhado.

_Vou entrar – disse afinal Charles o encarando, cansado daqueles olhos inertes e fixos em cima dele – com licença, amigão – e entrou batendo o portão deixando Renato ainda ali, arquejante e com um sorriso tremulo e nervoso.

Pareceu que seus pés flutuaram de volta, e nem soube – só se conferindo mais tarde – se fechara o portão. Bom tudo descia devagar. Trancou-se no quarto, ouviu a voz de Mãezinha cantando velhas marchinhas de carnaval, arrastando seu velho e desgastado quimono no chão empoeirado da sala. Agarrou-se ao panda, a janela aberta atrás de si, deitado quase de borco.

_Meu bichinho, meu bichinho – sussurrava sua voz trepidante, febril, o coração aos trancos e arrancos numa velocidade magna.

Aos poucos a noite foi acontecendo, as paredes ganhando sombras e mergulhando a atmosfera numa penumbra cheia de estática acompanhada de um vento que se seguiu com todo escurecer ou o sono do menino, que despertou com o barulho do vento sacudindo a janela aberta. Um vento doido e descontrolado que levou Mãezinha ao quarto dele, acendendo a luz, fechando a janela num grande alarido sem muito desespero.

_O portão – lembrou-se num grito desperto, abraçado ao seu bicho de pelúcia, mas Mãezinha sacudiu a mão num sorriso no rosto em mascara, a tiara de pano sobre os cabelos emaranhados; sentou-se junto a ele, e o menino aconchegou a cabeça sobre o ombro dela. Sentiam o cheiro da terra sendo lavada pela chuva, um raio estalou com uma trovoada bem perto.

_Acho que o carnaval acabou por hoje – disse num riso meio gutural a figura de mulher – bom, mas para mim já acabou faz muito tempo.

Renato aconchegou-se ao colo da Mãezinha, com o bichinho entre as pernas, semicerrou os olhos, buscou aquele momento, mas seu peito oscilava sereno sem nenhuma perturbação. O momento era pensado e já havido. O carnaval acabou. Contudo se iniciava uma longa e compungida, quase eterna quarta feira de cinzas.

Rodney Aragão