A CHAVE DESTA GERINGONÇA




          Pela ducentésima vez releu as mensagens do seu celular. Havia todas que era possível reter sem que isso impedisse a entrada de uma nova. Neste álbum de recordações sui generis, restavam boiando em fria letra, rabiscos de momentos felizes, arroubos empoeirados, instantes cujo calor não passava de morno registro, até versos cuja eloquência soava falso agora, estando ali desvinculados do momento e de urgências que já não mais vigoravam. 
          Olhou pela janela... a mesma paisagem  se tornava às vezes algo completamente insuportável.  Sentiu os pés enraizados, seu corpo já meio parte daquele todo patético em que se constituía o seu dia a dia... era  aquilo então o seu mundo agora?  Aquilo era então o tal porto seguro  ao qual retornava, após alguma saída, com a bovina sensação de novamente estar atrás do cercado? 
           Uma prisioneira de tantos anos que, tendo alcançado a sua liberdade, já não sabe o que fazer com ela... bichos enjaulados por longo tempo perdem a espontaneidade nos vôos... até buscam as alturas, mas sempre com um olhar para o ponto de partida. Enquanto ruminava estes pensamentos , lembrou de Ramiro.   
          Lembrar, no caso dele, era uma forma de dizer, porque sendo parte do seu pensamento constante, ele seguidamente se mostrava na claridade de imagens vivas  em primeiro plano. 
          Ela o conhecera há pouco mais de um ano. Sua vida tomara um rumo completamente inusitado, tinha mesmo ido longe na sua vontade de superar velhas amarras, tinha vivido momentos muito intensos. Mas a realidade surgia com a incômoda constatação de que, saindo do seu cercado , a ordem das coisas se alterava , na verdade não havia uma ordem, nem um encadeamento lógico para o que se dispusera viver. Tudo que tinha nas mãos, ou melhor, nas idéias, eram possibilidades. Vestígio de presenças de alguém distante o suficiente para muitas vezes se confundir com um mero personagem das suas letras. E que apesar de já terem tido três encontros,  não dizia não, mas também não dizia sim, a fórmula perfeita para perturbar e fazer com que se descontrolasse a ponto de já ter jogado umas pedras na  vidraça dele .  E por escrito.  Que quando conversavam, ela perdia todas as resistências, pois lhe bastava ouvir aquela voz ao telefone para que esquecesse de pronto qualquer evento ou motivo que antes parecia indesculpável. 
           Vivia assim neste emaranhado de rede perversa que cada vez mais a envolvia e ia apertando nas suas malhas. Nenhum caminho, nenhum horizonte, nem belo nem feio, toda trilha seguida acabava logo ali num bifurcamento ou simplemente numa parede de rua sem saída.
           Então, certa tarde, num assomo de desdita e cólera, a voz saindo torta e rouca e doída desabafou... " Então... enquanto você arruma lá os seus eventos, emudece e se fecha porque precisa se ver sozinho com seus problemas, fico eu por aqui, peça acéfala,  fico eu por aqui procurando o fio da meada ... Este enrosco tem muitas pontas. Este enrosco é um labirinto ...Estou perdida nele desde há muito.. . Cadê a chave-mestra desta geringonça??!! 
        E, ato contínuo, responde ela mesma, porque estava careca de saber, mesmo tentando ignorar:
        "Ai, ai , ai... queres a chave, meu bem?! Vem pegar! Joguei pro alto, joguei ao mar.... dá um jeito e aprende a nadar!!! "