DIÁFANA MAGIA DE VERÃO

Com as janelas abertas, todavia as grades, as grades empoeiradas no tempo seco e parado. O jardim lá fora num verde calmo de uma relva deitada, e aqui e ali um pé de roseira das mais variadas cores; na cerca de arames enfarpados as papoulas no tom vermelho e alaranjado, borboletas de todas as cores faziam vôos rasteiros...

...

O colibri chegara quase junto da janela, bem na grade, e quase que Luciana encostou os lábios no pássaro, mas ele fugira tão apressado. Luciana dera uma gargalhada que a tarde levara para todo jardim.

Os seus cachinhos louros faziam-se em muitos no cabelo que era um montante e seu orgulho de mocinha de dezesseis anos. O corpinho tão apertado nas roupas sempre de ginástica.Tão gordinha, fofinha poderiam dizer para não a ofender.

A praia estava ali próxima, logo na esquina, sentia-se a maresia e o barulho um pouco longínquo das ondas se quebrando.

Luciana estava de lilás. Pensava, hora antes, de correr no calçadão.A tarde tão linda da cor de um girassol berrante.Todavia agora depois do quase beijo com o colibri, Luciana caíra na vontade de modorrar, em nada fazer, apenas pensar, deitada na rede da varanda.

O verão estava no fim. Sim no fim.Pendurou-se com força nas grades da janela como se fosse gritar bem alto para o jardim: hoje é dezoito de março! Já havia aulas, e tomava-lhe as manhãs.

Luciana segurou-se firme nas grades e prendera o berro e o que saiu fora uma gostosa e escandalosa risada.

Otávio sorria debochado para ela, no seu cabelinho penteado com gel para trás; de calção de banho, camiseta, chinelos de dedo. O seu coração batera forte no choque com os olhos negros de Otávio, mesmo sentindo nele o cheiro forte de maresia.Ele vinha do mar, do mar mesmo porque ele nadava fundo.

-Passou o dia todo em casa hoje, é feia?

Luciana fizera um muxoxo escondendo o olhar – que era o perigoso revelador – tentava escrever algo com os dedos dos pés na poeira do chão de ladrilho.

-Apenas fui para o colégio.

-Vim te ver. Não está feliz?

Luciana sentia vaidade no jeito dele falar, sentia-se humilhada, porém não tinha forças para contornar a situação.

-Estou...

Luciana sentia o olhar dele fitando o seu biquinho que queria disfarçar todo tremor que estava por dentro.

-Sua namorada sabe que você estar aqui? – falara sem olhá-lo e olhara para o chão que era o nada – se ela sabe te mata...

Otávio colocara a mão além da grade tentando alcançar a dela, ela detera, detera com urgência porque sabia que ele descobriria que ela estava tremendo. Poderia partir-se como casca de ovo tão grande era a fragilidade dos seus sentimentos.

-Me dê a sua mão – pedira ele rouco, levando ele mais ainda a mão para dentro da grade – me dê a sua mão...

Luciana não sabia como reagir, estava tornando-se intenso, tanto que ela se petrificara... E a voz da mãe – vindo da sala ou da cozinha – porque a voz era mais funda e trazia um cheiro de bolo assando no forno, fez-se ouvida:

-Luciana quem está ai conversando com você na janela?

Otávio, sorrindo como um japonês leva o dedo indicador na boca cerrada: silêncio.

Luciana empalidece: é sua mãe mesmo que esta falando ou a namorada dele?

O cheiro de bolo assando no forno estar forte.

-Luciana você ainda não me ouviu? – insiste a voz – quem esta ai com você nesta janela?

Otávio aproxima o rosto da grade, Luciana sente forte o cheiro do mar, mas esconde o rosto quando ele cochicha:

-Me dê um beijo, um beijo...

Queima o ouvido e o calor entra no coração, e ela se desvencilha numa risadinha fina e diz num sussurro:

-Não, não Otávio ela vai entrar de repente aqui no quarto – e já não sabia se referia a mãe dela ou a namorada dele.

-Vai ser rapidinho – insiste ele ofegante chegando muito junto da grade.

Luciana desvencilha mais, um pouco devagar, comenta o cheiro do bolo assando no forno.

-Ela vai nos pegar...

-Não vai não – diz ele quase num balbucio misericordioso.

A voz vê agora como que de dentro do forno junto com o bolo:

-Luciana estou indo ai ver que bagunça é esta na janela...

Luciana dá uma gargalhada para o teto branco do quarto e deixa cair o rosto contra a grade e é quando sente o beijo estalando quente na sua face... E quando se volta se assusta com o colibri que voa assustado e espavorido; abrem abruptamente a porta do quarto, e ela cai de costas na cama numa gargalhada desesperada como de um afogado.

O sol batia nas ondas praia, lambia toda areia branca como sal, era um dia de semana. Só havia Luciana e Kátia na praia.Deitadas sobre as suas cangas bronzeavam-se, brilhando pelo excesso de filtro solar.Kátia por ser morena demais brilhava ainda mais ao sol.Luciana ergueu-se e ficara sentada abraçada coma s pernas junto ao queixo.O chapéu de crochê protegia seus cachinhos.

-Kátia, posso falar de Otávio? Pediu.

-Pode claro – respondeu esta alisando a coxa morena.

-Nos conhecemos aqui nesta praia. ele tinha dez anos e eu quatro anos, e já ali fiquei apaixonada.

Kátia deixara escapar um riso, que Luciana fingira não ouvir e continuara sonhadoramente olhando para o mar que parecia não terminar:

-Eu nunca mais fui à mesma desde aquele dia. Otávio corria solto, independente pela praia tão cheia de gente com seu cabelo caindo aos ombros – nesta época ele usava cabelos compridos – eu pequenininha tinha que ficar presa sobre a proteção dos meus pais.Como era triste, me dava uma vontade de chorar desesperadora... – cutucara a areia mole com as mãos, e desviou um olhar obliquo para Kátia.

Kátia parecia prestar atenção, nos olhos por detrás dos óculos escuros, que se notava o sorriso; o sorriso era o indicador de quem prestava atenção.

-Não sei por que, não sei por que, nem meu pai nem minha mãe nunca deixou Otávio me namorar. Estávamos grandes.Ainda ano passado...Otávio queria.

Kátia se enternecia pela história que a amiga contava, ouvia que sua voz tinha um tom de pranto, tinha um tom de agonia, tinha um tom também de lástima ao comentar a decepção...

-Otávio foi lá me pedir em namoro – e olha que hoje em dia nem é mais tempo de se usar estas coisas – fiquei cheia de vergonha – continuava caducando a areia branca e mole, e olhando para a direção infinita do mar onde um barquinho enfrentava a onda aproximando-se – mas se meus pais são caretas. Otávio mesmo riu da situação, mas topou, e não adiantou nada...Otávio coitado...coitada de mim.

-Vai ver que é pela diferença de idade – tentara apaziguar Kátia sentindo pela tristeza da amiga.

-Qual que nada Kátia, eu sei que eles não gostam do Otávio. Agora o que o Otávio fez para eles não gostarem dele é que eu não sei.

Kátia levara o braço acima dos olhos, ao tirar os óculos escuros, para olhar a amiga. Vira duas lágrimas, que brilhavam ao sol, nos olhos daquela.

O barquinho chegava cada vez mais próximo na claudicância da onda mole... Luciana chorava?

-Como ele é? Ele é bonito? Perguntara interessada Kátia.

-Lindo – respondera Luciana erudita e séria olhando para o barquinho que se aproximava.

-Ele mora aqui perto?

-Perto até demais. – disse ainda no seu tom erudito e desligado.

Kátia tinha a certeza – de agora – estar conversando com uma mulher, e não com uma menina como sempre acabava a julgando.

-A gente sempre se ver as escondidas...

-É mesmo? Interessou-se Kátia soerguendo-se pelos cotovelos.

-No meu quarto – falara ela arriscando um olhar, mas logo a escapar de volta para o mar – na janela, pela grade...

-Isto não pode continuar assim, Luciana – protestou Kátia – sua mãe parecia tão legal, mas agora estou vendo...

-Minha mãe é uma bruxa, Kátia! – relatou crispada de desdém Luciana.

-Eu vou conversar com ela – fora Kátia sentando-se.

Luciana meneara os ombros, ficara de pé, sacudira a areia da mão e do corpo.

-Não vai adiantar, não vai adiantar mesmo, já disse que minha mãe é uma bruxa, Kátia.

-Deixa-me tentar – falara Kátia num certo tom de suplica – a Vera sempre pareceu minha amiga, e o que é melhor: compreensiva.

Tirando o chapéu de crochê e o jogando na canga estendida ao chão, disse para a amiga, enxugando as lagrimas que brotavam com o dorso da mão:

-Vou torcer por você Kátia, embora seja quase inútil... Agora vou dar um mergulho – disse e correu de encontro ao mar, as ondas.

O barquinho escorara num píer à esquerda e era quase invisível daquela distância ali.

Kátia, da areia, olhava para a direção do mar onde estava Luciana a espanadar-se... Afogava-se? Não, não, parecia rindo a borbulhar, a fingir, evoluir... pretendia se afogar.

Vera sentada numa cadeira de perna um pouco bamba aquecia-se ao forno ligado, na cozinha, onde um bolo assava naquele fim de tarde escuro e frio. Vinte um de março – pensara Vera desfazendo o coque, olhando o calendário na parede logo acima do fogão, alisando o avental sobre o vestido.Dava mais vontade de comer bolo.Engordar, engordar...e para que preocupação, se o marido já era careca e barrigudo e nem reparava mais nela.Sorrir e se encolhe: o frio chega mais cedo nas cidades litorâneas.

-Luciana! – chama inutilmente porque sabe que ela não irá atender fingindo não ouvir – Luciana vem ficar com a mamãe aqui – pensa refletindo e desabafa num monologo tolo – que menina esquisita. Já conversei com o Zé...um psicólogo – balbuciou e olhava para dentro do vidro transparente do forno onde o bolo criava uma coloração marrom.

Luciana esperava tão inocente à grade da janela – já de camisola – sabia que ele não vinha num dia tão escuro. As papoulas tão arroxeadas por causa das luzes dos postes pareciam querer fazer ela entender.E os dias frios estavam chegando.Ele ira aparecer raramente.Escondeu-se nas cortinas ao ver que Kátia entrava no quintal – ignorava até mesmo o jardim – ela vira de esguelha, vira o jeito nervoso que ela se dirigia à casa.

Vera a recebera da porta da cozinha, e a oferecera uma cadeira junto ao forno. Kátia sentou-se ajeitando o casaco confortavelmente aos seios, embora as pernas de fora.

-Então Kátia...

-O caso que eu vir até aqui é muito sério... – olhara ao redor de si – A Luciana estar ai?

-Está no quarto – respondera Vera levantando-se a espiar melhor o bolo pela transparência do vidro do forno.

-É bom, que eu não quero que ela ouça. Vou ser direta.

Vera voltara a se sentar na cadeira, e rindo observara:

-Você esta me assustando, Kátia.

-Por que você não gosta do Otávio? –fora direto Kátia.

-Que Otávio? Assustou-se Vera.

-Ora bolas, que Otávio – fora dizendo sarcástica Kátia – a Luciana tem me falado no absurdo que você e o Zé tem feito por motivo nenhum...

Luciana chegara até a porta do quarto e fora tentando ouvir encostando os ouvidos, e fora grudando muito os ouvidos. Era gargalhadas que ouvia agora, tilintar de copos, gargalhadas, risadas um pouco tensas, cheiro de café sendo passado no coador de pano...o bolo está cheirando muito – levou a mão até a boca – pensara alto ou fora o que falara-se lá na cozinha?

E o Otávio. Do que falavam de Otávio? Como poderiam esquecer de Otávio? Escutara então chamando o nome dela – voltara-se pé ante pé – ao sentir pés que se aproximavam em passos mornos. Caíra na cama e ficara de lado – como feto – fingindo que dormia.Chegara a acreditar que dormira tanto, que pensou sentir um sonho...Uma cócegas no âmago quando percebera que a observavam.E se percebessem que suava num dia que esfriava – mas era um suor frio...

-Está dormindo...

Saíram do quarto devagar para não a acordar.

Não havia feito nada demais. Com as pálpebras ainda fechadas percebera que alguém observava da janela.Abrira os olhos já com a certeza: Otávio!

-Otávio você é mesmo maluco, se a mamãe te pega...

Otávio chegara muito junto as grades da janela. Já estava escuro, e vinha um ar gelado e salgado beija-los, e ele estava tão à vontade de calção e camiseta, chinelos de dedo.

-Otávio você não está com frio?- sussurrou.

-Eu estou com calor – sussurrou em resposta.

-Se sua namorada souber...

-Minha vontade era entrar por esta grade e ficar ai com você.

Luciana abaixara o semblante encabulada, as orelhas queimavam...

Ouviu-se uma voz, como que dentro do forno, chamando:

-Luciana, você acordou. A Kátia está aqui e já estar indo embora.

-Otávio você tem que ir embora – pedira ela sussurrante.

-Não vou antes de um beijo – respondera ele muito junto às grades.

Os passos se adiantavam dentro e fora da casa; Otávio ouvia os que vinham de fora; Luciana os que vinha de dentro, e Otávio não dava importância. Queria o beijo.

Quando a porta se abriu abruptamente, a face empalidecida de Kátia dera com a mesma cara de parva de Vera dentro do quarto, enquanto Luciana caía de costas na cama em uma convulsiva gargalhada, e ao mesmo tempo em que o colibri se debatia desesperado contra o teto.

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AUTOR:RODNEY ARAGÃO