Prisão

Após o término de alguns gritos interiores, ele parou, meio sonolento, surpreso dos próprios entraves... Coisas demasiadas leves para anos antes. Mas agora, uma balbúrdia dos pensamentos que ora esvaziavam-se ora emaranhavam-se à lembrança do cheiro Dela...

Ele não queria amá-La tão ferozmente, ainda. Não mais, após tanto sofrer em silêncio por anos padecendo daquele sentimento aterrador e ingrato...

Aquela mulher anônima, nua e inexata que repousava em sua cama atual parecia um cadáver de espanto. Não óssea, ao contrário, mas de uma sumptuosidade gélida...

Ele nem ousava olhar mais que dois segundos e imaginar que poderia haver calor naquele corpo, se aquele corpo talvez fosse não aquele, mas o Dela...

Da vidraça, aos quatro metros do piso da garagem, observava alguns casais passando...

Pensava Nela com um ódio descomunal e violento... As palavras Dela ainda à frente dos olhos como um letreiro que sequer apaga um instante para que o sono possa vir sem preparo...

A insônia iminente. O sentimento bélico...

Aquela cidade gigante para um coração tão pequeno... Mal lhe cabiam no peito a dor dos passados, das canções mal resolvidas, dos beijos que Ela deixou-lhe no rosto, na boca, no peito...

Ela, tão distante, não poderia imaginar que a violência dos pensamentos dele poderiam atingí-La... Por isso as chagas do tempo... As dele, escorrendo vertentes daquele sangue amargo que somente n'alguns poetas mais primorosos foi posto à prova...

Quando a dama cadavérica, apesar de bem delineada, arfava em sua cama, seu estômago revirava-se em desespero...

Nunca mais o corpo Dela. Da outra. Que bem, neste termo, nem ele mesmo saberia mais qual seria a outra.

De fato, então, a única que amou sem vulgaridades.

Talvez, por isso, as ilusões irremediáveis das noites. As boas putas. As curvas inoportunas.

Até no eixo, quando derrapava o carro, era o rosto Dela no retrovisor que vivia.

Um assopro no ventre. Um doce desgosto lhe percorria o corpo inteiro.

Ela, distante. O retrovisor, agora vazio.

Uma mulher de unhas compridas e vermelhas a lhe afagar as coxas.

Tão diferentes estas mãos das que um dia alisavam-lhe os cabelos.

Aquelas mãos pequenas e delicadas, nunca mais. Nunca mais nada.

Nem ele poderia entender o quanto do amor ainda encrustado n'alma haveria de lhe perturbar inda mais...

Quando gemiam-lhe palavras no ouvido, o silêncio quebrantava seu sexo. Nulo. Impuro.

Quando permitiam-lhe a liberdade desta arte, o violão chorava constante e, sem domínio, seus dedos erravam as notas. Seria óbvio constatar que Ela deixou-lhe de amar há tempos.

O último olhar Dela, na despedida, foi certeiro. Ele queria estilhaça-La e mais nada. Desejou cortá-La, vertê-La, despedaçar cada centímetro Dela.

Mas a indiferença Dela rasgou-lhe a fronte. Calou-se...

Ele não pôde sequer falar que amou algumas outras pensando Nela.

Nem o grito das noites lhe perpetuaram a garganta, para que Ela pudesse ouvir e morrer de culpa.

Tampouco conseguiu olhá-La.

Resolveu colocar a última pá de terra sobre o túmulo daquele amor que sequer foi sepultado com dignidade.

E voltou na estrada com algumas lágrimas presas.

Gastou para chorá-las.

Talvez, chorou-as escondido, secreto, como tudo que lhe foi na vida.

E, agora, diante do corpo da amante, parecia estátua de sal, inóspito.

Nem um suspiro. Os orgasmos eram itinerantes.

Só o sorriso Dela ele levava debaixo do céu róseo no beirar das tardes ao atravessar as quadras...

E o nome dela... No mais dos sonhos...

Ele acordava clamando.

Em instantes que não verteriam mais enganos, a dor da solidão do ego.

Foi somente Ela, um dia.

Hoje, mais nada!

...

Nem ele mesmo.

Anna Beatriz Figueiredo
Enviado por Anna Beatriz Figueiredo em 24/08/2012
Reeditado em 24/08/2012
Código do texto: T3846139
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