Passantes

Madame Butterfly agoniza na tela, enquanto isso, Sálvio sente a sua voz interior grudar nas suas vísceras, diante da atitude dominadora da sua namorada. Musica! Refugia seus pensamentos na voz de Maria Callas e da infelicidade da cantora ao lado do armador grego Onassis.

O amor o sujeita a vender um dos seus bens mais preciosos, suas mãos apertam o anel de esmeralda e brilhante, jóia de inestimável valor monetário e familiar.

Sentado na escrivaninha em frente ao janelão colonial olha o jardim bem cuidado e admira o róseo do pé de manacá. O olhar percorre a mata emoldurando o riacho que separa a sua fazenda da família Holtzkocker.

Liberto-me a partir de agora! Escrevo este fato sem deixar o narrador onisciente, ou, o observador tomar conta da narrativa, vou ser o próprio narrador protagonista, e, pronto!

Não posso deixar a sua atitude me exasperar a tal ponto de cometer tanta insensatez. O vício da Ghadah está acabando com a minha riqueza, cada dia vendo algo precioso para pagar os cobradores, vendedores. Mulher maldita! Mulher amada! Na minha cabeça os pensamentos fazem zunidos, como se Ligeti estivesse ali, regendo seu Réquiem.

Aperto a pedra na palma da mão até senti-la. Minha mãe tinha dedos longos e o anel no seu dedo anular parecia dançar no teclado do piano em mais uma das suas apresentações. Ela foi assaltada ao sair do Metropolitan Opera, depois de uma das suas apresentações, o ladrão roubou sua bolsa, suas jóias, seu casaco, mas..., não levou o anel. “Não posso levar o seu anel... ele parece nos hipnotizar na hora em que você esta tocando!”

Alguns passantes ouvem o grito da minha mãe e a socorrem, o bandido consegue correr como um atleta de meia maratona, e esconder-se no Central Park.

As acácias amarelas despejam pelas corolas pólen, a luz do sol no rendilhar dos seus galhos impressiona, e, o amarelo parece ouro escorrido... A vida espalha sua beleza! Movimento constante das asas translúcidas em conjunto com o zunido das abelhas. Sinto meu cérebro amortecido. Preservo a fazenda, como meus pais pediram, afinal, eles exigiam tão pouco! Ainda continuo plantando café, agora os grãos estão selecionados para exportação, diversifiquei com o plantio de laranjas e criação de gado leiteiro da raça holandesa.

Giro o anel no dedo. Sonolência! Ghadah deitada aos meus pés com os cabelos negros espalhados por sobre as almofadas fica mais vistosa, seu corpo me excita! Preciso estar atento para não me deixar levar por sua perspicácia. Ela consegue me dobrar fácil, fácil!

“Você já retirou o dinheiro que lhe pedi? Preciso dele com urgência...” Ela me entrega o braço... mordo com volúpia, ouço seu grito. Sinto-me poderoso ao ver estampada a marca dos meus dentes na sua carne.

Na sala ampla as coleções de Ghadah estão espalhadas pelos móveis, paredes, e, em muitos outros locais da fazenda. Obsessiva ela coleciona máscaras, vidros para perfumes, caixas e pequenos estojos de cristais, porcelanas requintadas, estátuas de várias nacionalidades, luminárias, livros raros, quadros... Os antiquários a procuram sempre com algo precioso, tanto na parte histórica como na monetária... Assusto em pensar que comprei tudo isto para ela! Não temos herdeiros!

“Querida, o que o homem veio lhe oferecer? Veja, não posso lhe comprar ainda, preciso vender algo que... estimo muito, não quero fazer isto!”

Fico perturbado com o seu pranto! Mulher egoísta! Os seios saltitam num choro convulsivo. Como ela é linda!

“Querida, qual peça você quer comprar para a sua coleção desta vez?”

Ela me olha com aquele olhar de gata no cio... ronrona baixinho no interior do meu ouvido... “Um pedaço do universo, ou melhor, o começo de tudo...quero partilhar com você, meu querido Sávio, o bóson de Higgs.”