Dezessete e Alguma Coisa
Anita se debruçou na balaustrada e ficou a olhar o horizonte.
- Uma brasa, não? O céu nesse horário... – Disse o homem segurando-lhe pela cintura, ela pula num susto e arregala os olhos.
- Ai Carlos, quer me matar do coração?
Ele sorri gentilmente e para ao seu lado, curva o corpo num gesto quase reverente, apoiando a cabeça sobre os braços cruzados. A mulher fecha a gola do casaco no pescoço e olha o homem de cabeça baixa, imóvel. Abriu a mão e olhou as unhas. Voltou-se para o horizonte, percorria a praia quase deserta com os olhos, havia um casal conversando enquanto uma criança desferia chutes na areia. Duas jovens caminhavam na beira do mar, a de bata branca mexia em um aparelho celular e gargalhava agarrada ao braço da amiga, atrás, o céu rosa – alaranjado das dezessete horas.
- Uma brasa – repetiu distraidamente – Quando eu era menina, minha sala de aula tinha janelas enormes, todo dia nesse horário eu me encantava com o crepúsculo, ficava olhando janela afora até tocar o sinal e a aula acabar. O céu rosa, a igreja rosa, a sala rosa, Irmã Carmen rosa. Tudo cor-de-rosa...
O homem sorriu com doçura, ergueu a cabeça e levantou-se. Pousou a mão sobre a da mulher – Vem comigo – ela sorriu e vergou a cabeça para trás – Vem Anita, ninguém precisa saber! Te darei quantos crepúsculos você quiser, alugaremos um apartamento de frente para o mar, a areia será cor-de-rosa... – Ela aperta os olhos e afunda as mãos no bolso do casaco – E para onde você pretende me levar, querido? – Ele responde que para qualquer lugar – Podemos ir assim, de surdina, apostar na sorte, chegar no aeroporto e escolher no uni-duni-tê – e tem um risinho sussurrante, tirado do fundo dos pulmões. Ela baixou a cabeça, segurou o rosto do homem entre as mãos – Meu querido, você sabe que não é possível! E seu irmão? Como fica? Estamos bem assim, não concorda? E fora isso, tem o Andrézinho, ele precisa de mim, você sabe, essas crianças diferentes... – Num gesto rápido ele retirou a mão da balaustrada e a enfiou no bolso do blusão azul marinho, voltou-se para o horizonte, puxou um maço de cigarros junto a um isqueiro dourado, ofereceu à mulher – Hum? – Ela sorri meio sem graça estendendo o braço para o maço. Puxou um e o comprimiu entre os lábios, virou o rosto para o homem que entendendo o pedido o acendeu. Tragou e soprou a fumaça para o alto, com a outra mão, ajeitou os cabelos colocando-os atrás da orelha enquanto olhava nostálgica a fumaça se dissipar no ar. Ficaram em silêncio, lado a lado, olhando a praia. As jovens acenaram para o menino emburrado que ignorou o gesto e continuou a agredir a areia. O grito agudo e desesperado de uma gaivota ecoou por todo o céu. O homem a observou, segurando o cigarro na altura do queixo, os lábios semicerrados, os cabelos esvoaçantes, crespíssimos. O olhar melífluo, úmido e melancólico, cor de mel, completamente perdido no céu que já ganhava tons arroxeados.
– Adianta eu dizer que...
– Não. – completa ela com uma serenidade quase obscura.
– Pois bem. – diz o homem e dá três batidas no cigarro com a ponta do indicador. Entra pela porta de vidro e liga o toca-discos, a voz rouca e grave, começa quase inaudível acompanhada pela melodia de um piano, tão agonizante quanto o grito da gaivota “Il faut oublier, tout peut s'oublier, qui s'enfuit déjà oublier le temps...”. Ela olha o mar, a brisa que balança os coqueiros. Respira o mais fundo possível a maresia. Apaga o cigarro, para na porta e olha mais uma vez o horizonte. A praia já está deserta, o vento desmanchou as marcas deixadas pelo menino na areia.
Não se vê mais as jovens.