Memórias

Os pingos da tempestade do lado de fora faziam música no telhado, enquanto as poucas folhas que o outono deixara para trás eram levadas pela enxurrada. A temperatura era baixa. Obviamente era impossível ver a luz do luar. Mais impossível ainda era ver o brilho das estrelas, tão longe que até pareciam distantes de qualquer realidade.

O ar estava úmido, pesado de respirar. Mesmo assim, era delicioso inspirar o ar fresco da meia-noite. Era como se renovasse, não apenas o ar dos pulmões, mas toda a vida que havia ali dentro.

A data não importa, o lugar tão pouco. A história é sempre a mesma. Não apenas naquela vida, mas em todas as outras, as coisas se repetem. Exatamente como um ciclo vicioso, uma roda que só gira em um sentido. Mesmo que ela gire apenas para frente, ela ainda será a mesma roda, com as mesmas irregularidades. Enfim, a única coisa que importa é a chuva.

Parecia que fora ontem mesmo que voltou para casa com o maior dos sorrisos no rosto. Sonhando com o dia seguinte. Sem ter a mínima noção do mundo que girava a sua volta, ou das coisas que podiam acontecer. Nada importava. Toda a felicidade do mundo se concentrava só em seu coração. Por mais que dividisse a alegria com toda a humanidade, ela ainda seria a pessoa mais feliz que já pisara na Terra. Já passara três horas da meia-noite e, mesmo ciente da Lua escondida atrás das nuvens que choviam, era como se estivesse Sol. Era como se ela mesma fosse o Sol. Emanando felicidade para onde quer que ela fosse. Era tangível aquela alegria de estar viva.

Agora, tudo parecia meio vazio. Para onde a felicidade havia ido? No lugar dela não havia tristeza, nem ódio, nem o que deveria haver no lugar de alguma coisa. Só havia o vazio. É até complicado descrever o vazio, pois ele não tem descrição. Quando se sente o vazio é como se nada a sua volta fizesse sentido, como se aquilo vivido não fosse sua própria vida. Todas as pessoas lhe são estranhas, e os sentimentos são completamente ausentes.

Você se sente vazio.

Era assim que ela estava parada no ponto de ônibus, à meia-noite de uma sexta-feira desastrosa. Há anos aquela existência não era esquisita, mas, agora, era como se tudo fosse um filme. Um filme tão distante quanto possível de sua vida.

Aí, então, ela reconheceu o aperto no peito. Ela reconheceu a sensação claustrofóbica das paredes de sua mente se fechando a sua volta. O ar saindo a força de seus pulmões. Seus pensamentos convergindo para um ponto específico, que sua mente queria afastar para sempre, mas que, mesmo depois de tanto tempo, jamais conseguira.

As lembranças vieram num turbilhão. O toque em sua mão. Os braços a envolvendo. A respiração curta em seu pescoço, movimentando alguns fios de cabelo que ali se encontravam. Os sorrisos de canto e as lágrimas silenciosas. Os encontros de palavras e pensamentos. As palavras suaves em seu ouvido.

Mas aquelas eram memórias que não pareciam ser suas.

Embora ela soubesse que tudo isso existiu um dia, embora ela soubesse que as lembranças estavam ali, em algum lugar de sua mente, ela não conseguia resgatá-las de todo. Elas ficavam bloqueadas em algum lugar e não havia meios de libertá-las.

Seria possível sentir saudade até mesmo das lembranças? Numa tentativa frustrada de superar o passado, ela o esqueceu. E se agora perguntassem do que ela mais sentia falta, ela não saberia dizer.

Todas as lembranças se foram e ainda sim... Ainda sim a dor continuava.

Superar e esquecer, afinal, não são sinônimos. Como ela esperava que fosse. Como ela esperou que fosse.

Agora, ela não guardava nem mesmo a agonia das lembranças para si mesma. Ela convivia apenas com o vazio.

Vazio.

Nada.

Vazio.

Débora Dias
Enviado por Débora Dias em 06/08/2012
Reeditado em 06/08/2012
Código do texto: T3817129
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