Encontros
A vida corria sem graça, perdera o encanto, a cor, o impulso vital de outros tempos. Os dias, o que eram eles senão uma sucessão do nada!... Repetições, enfadonhos acontecimentos. Olhava para si, para os outros com olhos cansados, deteriorados, interrogativos, melancólicos. Nesse estado de consciência, o outro que caminhava ao seu lado e nada lhe acrescentava, era apenas uma sombra, pensava: mais uma sombra ao meu lado à procura de identidade. Sentia-se impaciente, até impiedoso em seu julgamento. Nada esperava. Nada encontrava no mundo sombrio de suas especulações, racionalizações, das certezas matemáticas, que alimentava conferindo à sua onipotência profunda impotência. Perdera a fé.
– Oi, como vai?
– Vou bem, você?
Cansara dos diálogos sociais, formais; existenciais? Queria muito mais; exatamente o quê?! Onde encontrar o que lhe faltava e o fazia sofrer, perder-se num emaranhado de dúvidas, afastando de sua alma, mosqueada de desesperança; o calor da vida e a capacidade de se pacificar? O mundo se lhe tornara pequeno, encolhido; mas como, se até um grão de mostarda; a menor de todas as sementes engendra uma árvore frondosa onde os pássaros se aninham? O caminho da paz, um misterioso, sinuoso, incompreensível, labirinto onde se perde a esperança e se desfalece no cansaço da vida? A função faz o órgão relembra a biologia, mas sentia-se indolente... Sua alma, dia-a-dia, se desconectava da realidade, dos acontecimentos e dela se afastava aos poucos. A única coisa permanente é a mudança, dizia sempre... E a nossa dor maior é a consciência da finitude das coisas.
Paradoxalmente, a leitura, permanente, de jornais, de um ou outro livro, retirado, ao acaso, da estante, alimentava o seu intelecto. Um mecanismo de fuga ou a última e definitiva comprovação de sua tese que tudo e todos estavam dentro dos limites de seu julgamento niilista. Sua capacidade de emocionar-se, às lágrimas, onde estava? Em quê ou em qual, quais encruzilhadas da vida a sua fé se volatizou? A vida caminha para acaso; queda, ruína, decadência, extinção, morte, crepúsculo; a vida é apenas essa coisa dicionarizada, estúpida? Não existe outra alternativa menos dolorosa? Ou ele, logo ele, era apenas um rio sem rumo que não encontra o oceano? Paroxismo, que dominava sua mente numa dialética incontrolável, roubado-lhe a paz.
– Não, não é possível!
– Senhor, estou lhe afirmando que a sua inscrição foi feita fora do prazo.
– Mas, como?
– Os meios de comunicação divulgaram, senhor, exaustivamente, a data de realização do curso de Filosofia da Arte, número de participantes, local.
– Eu não entendo, fiz minha inscrição pela internet, no prazo estipulado.
– Lamento, mas nada posso fazer.
– Como não pode? Prometo-lhe, fico em pé, participo invisivelmente.
– Ora, o senhor é mesmo engraçado.
– Sou?
– Bem... Existem outros pedidos iguais ao seu. Talvez a professora atenda a mais uma turma. Está bem, assim, senhor?
– Claro, por favor!
– Entraremos em contato.
– Obrigado, muito obrigado, boa tarde!
Virgílio desligara o telefone, sem nenhuma esperança. Aquela informação de jornal, com dados, foto da autora de livros sobre arte, consagrada, internacionalmente, ativou, inesperadamente, seu coração. Ele queria participar, inserir-se naquela oportunidade única, rara; conferir os olhos da professora que tanto o emocionaram. Olhar. A arte, fantasiava ele, o resgataria, devolvendo-o à vida, ou então a inscrição filosófica em mostradores de relógios anunciaria o seu fim. Cada hora fere a nossa existência até que a derradeira a roube. Vulnerant omnes, ultima necat; todas ferem, a última mata.
– Me desculpe, disse Virgílio.
Apenas um olhar, um sorriso registrara seu encontro com a professora Sofia, quando ele esbarrou nela e a reconheceu, à porta de entrada do auditório, literalmente tomado, para o curso de Filosofia da Arte, que ela concedera a uma segunda turma. Virgílio ocupou um lugar discreto naquele recinto repleto de olhares, luzes, vozes, imprensa. Acompanhou, sim, antes, os passos de Sofia, que se sentou numa cadeira vazia, ao lado de tantas outras, até que a chamassem, solenemente, para o seu lugar.
– Virgílio?
– Sim.
– Virgílio, é Solange, lembra-se de que marcaríamos aquele encontro - encontro da saudade?
– Sim Solange, você me pegou distraído, claro que ,me lembro. Como vai? A gente não se falou mais, não é?
– Pois é, Virgílio, estou com saudade...
– Solange... estou meio confuso agora; iniciei um curso de Filosofia da Arte e ando em plena atividade, e você bem sabe o que isso significa para mim. Já lhe disse que o homem precisa de algum conhecimento para viver, mas, para sobreviver ele precisa da arte, lembra-se?
– Sim, estou ouvindo.
– Solange, assim que terminar o curso, ligo, prometo... Prometo que ligo pra você, está bem?
– Se é assim...
Virgílio viveu, intensamente, o curso. Reservado, ocupava, no auditório, um lugar discreto, invisível à Sofia, mas participava, atentamente de tudo. Apenas uma vez ouviu-se a sua voz. Sofia, inesperadamente, lhe disse, perguntando:
– Virgílio, você se parece muito com os fenícios, há algum parentesco, ainda que remoto?
– Não professora, até gostaria que houvesse, mas...sinto desapontá-la.
Sofia era mais, muito mais do que uma acadêmica respeitada, ela revelava no seu jeito atípico de ser um silêncio atemporal, o da esfinge, talvez, que guarda, através dos séculos, para ser decifrada.
A mente desconfiada de Virgílio: desconfiada por natureza, cética pela metafísica do pecado original, permanecia atenta aos imperceptíveis tons do comportamento humano. Percebera ele, na linguagem das mãos e na conversa silenciosa dos olhos de Sofia, os movimentos emocionais de sua alma, suas oscilações e explosão dos primeiros sintomas de sua grande paixão abrupta. Entre tantas luzes que brilhavam naquele palco, algumas pretensiosas, Virgílio era apenas um humilde candeeiro à procura do próprio caminho. Nada mais. Habituara-se, é verdade, a perceber os sons da natureza, o vôo dos pássaros, seu canto, entre galhos, na floresta; isso lhe acrescentara uma acuidade visual e anímica invulgar. Encontrava-se, agora, entretanto, numa encruzilhada: capitular ante a paixão arrebatadora de Sofia ou entregar-se a ela, apostado tudo, vivendo seus segredos, deixando que as pétalas de flores de sua vida, secas, encontrassem a ressurreição nos seus braços?
“A porta é uma das mais belas invenções humanas e também uma das mais terríveis. Há a porta do paraíso e a do inferno. A porta do paraíso protege; a do inferno interdita. Estar dentro pode significar o ilimitado; estar fora, o limite”. Naquele momento, Virgílio, estava do lado de fora, diante de uma porta: do paraíso ou do inferno? Felizmente, uma voz se pôde ouvir: “Não renuncie ao êxtase: deixe que a vida flua, é de você que ela fluir”.
Uma casa soturna é uma casa esquecida, triste, uma casa sem emoções e amor; aí as taças da vida não se tocam em afinidades compartilhadas. O casamento de Virgílio existia apenas no ritual das aparências enganosas do esposo que não tem a mulher amada, e da esposa que não tem homem amado. Entretanto sua vida se sedimentara em princípios éticos. Na esfera das relações morais e afetivas, ele procurava se comportar sem ânimo frívolo e inconstante, era avesso ao donjuanismo moral e intelectual. Os ideais são sempre ligados aos interesses e ninguém se escandaliza, mas não é lícito usar os ideais apenas para embelezar a fisionomia feia dos interesses. O homem sério sofre com uma infidelidade, sabe que ela não deve ser leviana, mas a aceita porque sente que uma infidelidade fiel é melhor que fidelidade infiel. A fidelidade infiel é o sacrifício da própria personalidade; apesar dos bons propósitos, deforma todas as relações. A infidelidade fiel se faz por respeito à própria personalidade e à lealdade que deve presidir a uma relação humana importante.
No cassino da paixão súbita, não se faz jogo, aposta-se tudo! Sofia soube, como ninguém, jogar com habilidade, assediando com o vento do amor a janela fechada da alma de Virgílio, que se abriu. Depois de remover, ponto por ponto, sua indecisão, ele colocou aí o sol, que iluminou de esperanças a sua existência solitária; Sofia entrou em sua vida.
O tempo passou... Numa tarde de outubro, do dia 13, Virgílio reconheceu a letra de Sofia, numa carta. Recebeu-a depois de um encontro de amor, que faria inveja a Dante e Beatriz ou a Romeu e Julieta. Abriu-a, primeiramente como namorado, depois como simples observador, sentado na sua poltrona preferida, longe de tudo, de todos, apenas com seu cãozinho; “olhos amantes deliciam-se com letras namoradas”.
“Virgílio, meu amor.
Cheguei bem, chovia, fazia muito frio aqui em São Paulo, ainda faz. Estou num apartamento belo e triste, com você. Vi-o, na minha partida, com uma emoção tão intensa que chorei. Percebo-me impregnada de montanhas e paisagens bonitas! Admiro seu mundo: jamais conheci alguém tão belo e rico. Ah, que me dera ter o meu Carmo do Rio Claro e a minha montanha! Agradeço-lhe por ter-me levado pela mão, como um Virgílio enamorado, por tantos reinos e seres, por tantas histórias secretas e humanas, pelo canto dos pássaros, pela comida pura e saborosa, pela embriaguez do amor, pelas flores que o doce menino colheu para mim; agradeço-lhe por ter-me aberto, de forma tão absoluta, seu coração e sua vida. Amo você eternamente.
Nosso primeiro mergulho no “lago profundo” deixou-me amorosa e compreensiva; amo você mais, amo seu corpo inteiro e suas palavras de amor e ódio, amo a criança que você foi e ainda conserva com pureza, amo a sua injeção e suas cavalgadas, suas caças, suas experiências diante da perversidade humana, suas lágrimas sobre telhados de uma cidade perdida entre colinas misteriosas e perfeitas, lágrimas que já recebi sobre meu peito ferido, amo seu sorriso e sua poesia, suas interjeições, seus ciúmes, sua dor, mais antiga que você mesmo, as manufaturas divinas de seu povo, amo sua intensidade, no amor ou no ódio; especulo ainda seus movimentos emocionais, por curiosidade e por amor. Tento deixar a luz da Santa penetrar minha mente, e revelar a missão que recebi aos pés daquele altar, no alto da serra da Tormenta.
Naquela última noite estive a ponto de desmaiar. Você me levaria a um médico: a um psiquiatra? Eu estava transtornada por nosso desentendimento, pelas palavras cruéis, misteriosas, pelo conflito amoroso mais terrível e fascinante de toda a minha vida, pela visão de um homem que carrega em si toda a dor e todo amor do mundo.
Teríamos dormido em camas separadas para sempre... Eu colocaria uma camada de insensibilidade a minha volta para suportar a sua intensidade todos os dias, para manter a possibilidade de amor invisível, de uma vida em comum, um amor prisioneiro. Sim, há muitas maneiras de amar, talvez você tenha tudo de que precisa muito perto, basta estender a mão. Missa missão pode ser a de lhe ensinar a descobrir e amar sua mulher, a nunca mais precisar trair; reatá-lo com a vida; fazê-lo entregar-se à poesia, que vibra em cada palavra sua, cumprir a elaboração de suas origens, construir tudo o que você desejou, tornar a sua aldeia um universo. Prometi-lhe que faria tudo para ter a admiração de seus filhos, e apenas a minha renúncia tornaria isso possível. Você teve essa grandeza quando foi preciso! Somos iguais: renuncio você, ao meu grande amor, a toda a vida a seu lado, de mãos dadas, a nossa casa no Carmo, a montanha; renuncio ao intenso prazer que seu corpo me proporciona, renuncio ao seu olhar e a seus beijos, a seu abraço que me reconforta; renuncio, dilacerada, e o entrego a seu mundo, a suas pessoas. Fique com sua família, ame-a, compreenda, perdoe sempre, fique com seus amigos, seu cãozinho de regaço, seja feliz em seu universo, do qual não sou um anjo exterminador. Seremos assim os mais leais e enamorados amigos dentre todos.
Se seu amor for tão grande, se sua necessidade de mim for tão intensa que o impeçam de renunciar, venha então, e eu o acolherei, sempre, com toda a minha alma. Serei o seu refúgio e você será o meu, porque sou sua inteira, e lutarei para que tudo seja feito dentro da dignidade a que nos prometemos desde o começo. Entenderei que sua longanimidade custou sua vida, que já foi suficiente seu sacrifício, que é benévola sua ruptura, que sua mulher teve tempo para conquistá-lo, mas... o tempo é finito. Você tem o direito de ser o pássaro livre de sua infância. Esperarei por você, por sua decisão, mas quero que a Senhora seja testemunha de que tentamos não causar sofrimentos, de que desejamos ser eternos e perfeitos, mas somos apenas humanos. Entoaremos juntos o Cântico dos Cânticos. Beije-me ele com os beijos da sua boca, pois melhor é o seu amor do que o vinho, para cheirar são bons os seus ungüentos; como ungüento derramado é o seu nome, não me admira que as donzelas o amem!, eu sou morena, mas agradável como as tendas de Quedar, não olhe para o eu ser morena, porque o sol resplandeceu sobre mim, o meu amado é para mim um ramalhete de mirra, morará entre os meus seios.
Saudades, meu amor adorado. Sua Sofia”.
“Sim, disse-lhe ontem à noite, à luz de velas; não digo-lhe hoje, à luz do dia”.
Onde estará Sofia? Nos braços de Virgílio ou, feridos pelo mesmo espinho da paixão, cumpriram o ensinamento do Livro do Eclesiastes: “Há tempo de dar abraços, e tempo de se afastar deles”.
Roberto Gonçalves
– Oi, como vai?
– Vou bem, você?
Cansara dos diálogos sociais, formais; existenciais? Queria muito mais; exatamente o quê?! Onde encontrar o que lhe faltava e o fazia sofrer, perder-se num emaranhado de dúvidas, afastando de sua alma, mosqueada de desesperança; o calor da vida e a capacidade de se pacificar? O mundo se lhe tornara pequeno, encolhido; mas como, se até um grão de mostarda; a menor de todas as sementes engendra uma árvore frondosa onde os pássaros se aninham? O caminho da paz, um misterioso, sinuoso, incompreensível, labirinto onde se perde a esperança e se desfalece no cansaço da vida? A função faz o órgão relembra a biologia, mas sentia-se indolente... Sua alma, dia-a-dia, se desconectava da realidade, dos acontecimentos e dela se afastava aos poucos. A única coisa permanente é a mudança, dizia sempre... E a nossa dor maior é a consciência da finitude das coisas.
Paradoxalmente, a leitura, permanente, de jornais, de um ou outro livro, retirado, ao acaso, da estante, alimentava o seu intelecto. Um mecanismo de fuga ou a última e definitiva comprovação de sua tese que tudo e todos estavam dentro dos limites de seu julgamento niilista. Sua capacidade de emocionar-se, às lágrimas, onde estava? Em quê ou em qual, quais encruzilhadas da vida a sua fé se volatizou? A vida caminha para acaso; queda, ruína, decadência, extinção, morte, crepúsculo; a vida é apenas essa coisa dicionarizada, estúpida? Não existe outra alternativa menos dolorosa? Ou ele, logo ele, era apenas um rio sem rumo que não encontra o oceano? Paroxismo, que dominava sua mente numa dialética incontrolável, roubado-lhe a paz.
– Não, não é possível!
– Senhor, estou lhe afirmando que a sua inscrição foi feita fora do prazo.
– Mas, como?
– Os meios de comunicação divulgaram, senhor, exaustivamente, a data de realização do curso de Filosofia da Arte, número de participantes, local.
– Eu não entendo, fiz minha inscrição pela internet, no prazo estipulado.
– Lamento, mas nada posso fazer.
– Como não pode? Prometo-lhe, fico em pé, participo invisivelmente.
– Ora, o senhor é mesmo engraçado.
– Sou?
– Bem... Existem outros pedidos iguais ao seu. Talvez a professora atenda a mais uma turma. Está bem, assim, senhor?
– Claro, por favor!
– Entraremos em contato.
– Obrigado, muito obrigado, boa tarde!
Virgílio desligara o telefone, sem nenhuma esperança. Aquela informação de jornal, com dados, foto da autora de livros sobre arte, consagrada, internacionalmente, ativou, inesperadamente, seu coração. Ele queria participar, inserir-se naquela oportunidade única, rara; conferir os olhos da professora que tanto o emocionaram. Olhar. A arte, fantasiava ele, o resgataria, devolvendo-o à vida, ou então a inscrição filosófica em mostradores de relógios anunciaria o seu fim. Cada hora fere a nossa existência até que a derradeira a roube. Vulnerant omnes, ultima necat; todas ferem, a última mata.
– Me desculpe, disse Virgílio.
Apenas um olhar, um sorriso registrara seu encontro com a professora Sofia, quando ele esbarrou nela e a reconheceu, à porta de entrada do auditório, literalmente tomado, para o curso de Filosofia da Arte, que ela concedera a uma segunda turma. Virgílio ocupou um lugar discreto naquele recinto repleto de olhares, luzes, vozes, imprensa. Acompanhou, sim, antes, os passos de Sofia, que se sentou numa cadeira vazia, ao lado de tantas outras, até que a chamassem, solenemente, para o seu lugar.
– Virgílio?
– Sim.
– Virgílio, é Solange, lembra-se de que marcaríamos aquele encontro - encontro da saudade?
– Sim Solange, você me pegou distraído, claro que ,me lembro. Como vai? A gente não se falou mais, não é?
– Pois é, Virgílio, estou com saudade...
– Solange... estou meio confuso agora; iniciei um curso de Filosofia da Arte e ando em plena atividade, e você bem sabe o que isso significa para mim. Já lhe disse que o homem precisa de algum conhecimento para viver, mas, para sobreviver ele precisa da arte, lembra-se?
– Sim, estou ouvindo.
– Solange, assim que terminar o curso, ligo, prometo... Prometo que ligo pra você, está bem?
– Se é assim...
Virgílio viveu, intensamente, o curso. Reservado, ocupava, no auditório, um lugar discreto, invisível à Sofia, mas participava, atentamente de tudo. Apenas uma vez ouviu-se a sua voz. Sofia, inesperadamente, lhe disse, perguntando:
– Virgílio, você se parece muito com os fenícios, há algum parentesco, ainda que remoto?
– Não professora, até gostaria que houvesse, mas...sinto desapontá-la.
Sofia era mais, muito mais do que uma acadêmica respeitada, ela revelava no seu jeito atípico de ser um silêncio atemporal, o da esfinge, talvez, que guarda, através dos séculos, para ser decifrada.
A mente desconfiada de Virgílio: desconfiada por natureza, cética pela metafísica do pecado original, permanecia atenta aos imperceptíveis tons do comportamento humano. Percebera ele, na linguagem das mãos e na conversa silenciosa dos olhos de Sofia, os movimentos emocionais de sua alma, suas oscilações e explosão dos primeiros sintomas de sua grande paixão abrupta. Entre tantas luzes que brilhavam naquele palco, algumas pretensiosas, Virgílio era apenas um humilde candeeiro à procura do próprio caminho. Nada mais. Habituara-se, é verdade, a perceber os sons da natureza, o vôo dos pássaros, seu canto, entre galhos, na floresta; isso lhe acrescentara uma acuidade visual e anímica invulgar. Encontrava-se, agora, entretanto, numa encruzilhada: capitular ante a paixão arrebatadora de Sofia ou entregar-se a ela, apostado tudo, vivendo seus segredos, deixando que as pétalas de flores de sua vida, secas, encontrassem a ressurreição nos seus braços?
“A porta é uma das mais belas invenções humanas e também uma das mais terríveis. Há a porta do paraíso e a do inferno. A porta do paraíso protege; a do inferno interdita. Estar dentro pode significar o ilimitado; estar fora, o limite”. Naquele momento, Virgílio, estava do lado de fora, diante de uma porta: do paraíso ou do inferno? Felizmente, uma voz se pôde ouvir: “Não renuncie ao êxtase: deixe que a vida flua, é de você que ela fluir”.
Uma casa soturna é uma casa esquecida, triste, uma casa sem emoções e amor; aí as taças da vida não se tocam em afinidades compartilhadas. O casamento de Virgílio existia apenas no ritual das aparências enganosas do esposo que não tem a mulher amada, e da esposa que não tem homem amado. Entretanto sua vida se sedimentara em princípios éticos. Na esfera das relações morais e afetivas, ele procurava se comportar sem ânimo frívolo e inconstante, era avesso ao donjuanismo moral e intelectual. Os ideais são sempre ligados aos interesses e ninguém se escandaliza, mas não é lícito usar os ideais apenas para embelezar a fisionomia feia dos interesses. O homem sério sofre com uma infidelidade, sabe que ela não deve ser leviana, mas a aceita porque sente que uma infidelidade fiel é melhor que fidelidade infiel. A fidelidade infiel é o sacrifício da própria personalidade; apesar dos bons propósitos, deforma todas as relações. A infidelidade fiel se faz por respeito à própria personalidade e à lealdade que deve presidir a uma relação humana importante.
No cassino da paixão súbita, não se faz jogo, aposta-se tudo! Sofia soube, como ninguém, jogar com habilidade, assediando com o vento do amor a janela fechada da alma de Virgílio, que se abriu. Depois de remover, ponto por ponto, sua indecisão, ele colocou aí o sol, que iluminou de esperanças a sua existência solitária; Sofia entrou em sua vida.
O tempo passou... Numa tarde de outubro, do dia 13, Virgílio reconheceu a letra de Sofia, numa carta. Recebeu-a depois de um encontro de amor, que faria inveja a Dante e Beatriz ou a Romeu e Julieta. Abriu-a, primeiramente como namorado, depois como simples observador, sentado na sua poltrona preferida, longe de tudo, de todos, apenas com seu cãozinho; “olhos amantes deliciam-se com letras namoradas”.
“Virgílio, meu amor.
Cheguei bem, chovia, fazia muito frio aqui em São Paulo, ainda faz. Estou num apartamento belo e triste, com você. Vi-o, na minha partida, com uma emoção tão intensa que chorei. Percebo-me impregnada de montanhas e paisagens bonitas! Admiro seu mundo: jamais conheci alguém tão belo e rico. Ah, que me dera ter o meu Carmo do Rio Claro e a minha montanha! Agradeço-lhe por ter-me levado pela mão, como um Virgílio enamorado, por tantos reinos e seres, por tantas histórias secretas e humanas, pelo canto dos pássaros, pela comida pura e saborosa, pela embriaguez do amor, pelas flores que o doce menino colheu para mim; agradeço-lhe por ter-me aberto, de forma tão absoluta, seu coração e sua vida. Amo você eternamente.
Nosso primeiro mergulho no “lago profundo” deixou-me amorosa e compreensiva; amo você mais, amo seu corpo inteiro e suas palavras de amor e ódio, amo a criança que você foi e ainda conserva com pureza, amo a sua injeção e suas cavalgadas, suas caças, suas experiências diante da perversidade humana, suas lágrimas sobre telhados de uma cidade perdida entre colinas misteriosas e perfeitas, lágrimas que já recebi sobre meu peito ferido, amo seu sorriso e sua poesia, suas interjeições, seus ciúmes, sua dor, mais antiga que você mesmo, as manufaturas divinas de seu povo, amo sua intensidade, no amor ou no ódio; especulo ainda seus movimentos emocionais, por curiosidade e por amor. Tento deixar a luz da Santa penetrar minha mente, e revelar a missão que recebi aos pés daquele altar, no alto da serra da Tormenta.
Naquela última noite estive a ponto de desmaiar. Você me levaria a um médico: a um psiquiatra? Eu estava transtornada por nosso desentendimento, pelas palavras cruéis, misteriosas, pelo conflito amoroso mais terrível e fascinante de toda a minha vida, pela visão de um homem que carrega em si toda a dor e todo amor do mundo.
Teríamos dormido em camas separadas para sempre... Eu colocaria uma camada de insensibilidade a minha volta para suportar a sua intensidade todos os dias, para manter a possibilidade de amor invisível, de uma vida em comum, um amor prisioneiro. Sim, há muitas maneiras de amar, talvez você tenha tudo de que precisa muito perto, basta estender a mão. Missa missão pode ser a de lhe ensinar a descobrir e amar sua mulher, a nunca mais precisar trair; reatá-lo com a vida; fazê-lo entregar-se à poesia, que vibra em cada palavra sua, cumprir a elaboração de suas origens, construir tudo o que você desejou, tornar a sua aldeia um universo. Prometi-lhe que faria tudo para ter a admiração de seus filhos, e apenas a minha renúncia tornaria isso possível. Você teve essa grandeza quando foi preciso! Somos iguais: renuncio você, ao meu grande amor, a toda a vida a seu lado, de mãos dadas, a nossa casa no Carmo, a montanha; renuncio ao intenso prazer que seu corpo me proporciona, renuncio ao seu olhar e a seus beijos, a seu abraço que me reconforta; renuncio, dilacerada, e o entrego a seu mundo, a suas pessoas. Fique com sua família, ame-a, compreenda, perdoe sempre, fique com seus amigos, seu cãozinho de regaço, seja feliz em seu universo, do qual não sou um anjo exterminador. Seremos assim os mais leais e enamorados amigos dentre todos.
Se seu amor for tão grande, se sua necessidade de mim for tão intensa que o impeçam de renunciar, venha então, e eu o acolherei, sempre, com toda a minha alma. Serei o seu refúgio e você será o meu, porque sou sua inteira, e lutarei para que tudo seja feito dentro da dignidade a que nos prometemos desde o começo. Entenderei que sua longanimidade custou sua vida, que já foi suficiente seu sacrifício, que é benévola sua ruptura, que sua mulher teve tempo para conquistá-lo, mas... o tempo é finito. Você tem o direito de ser o pássaro livre de sua infância. Esperarei por você, por sua decisão, mas quero que a Senhora seja testemunha de que tentamos não causar sofrimentos, de que desejamos ser eternos e perfeitos, mas somos apenas humanos. Entoaremos juntos o Cântico dos Cânticos. Beije-me ele com os beijos da sua boca, pois melhor é o seu amor do que o vinho, para cheirar são bons os seus ungüentos; como ungüento derramado é o seu nome, não me admira que as donzelas o amem!, eu sou morena, mas agradável como as tendas de Quedar, não olhe para o eu ser morena, porque o sol resplandeceu sobre mim, o meu amado é para mim um ramalhete de mirra, morará entre os meus seios.
Saudades, meu amor adorado. Sua Sofia”.
“Sim, disse-lhe ontem à noite, à luz de velas; não digo-lhe hoje, à luz do dia”.
Onde estará Sofia? Nos braços de Virgílio ou, feridos pelo mesmo espinho da paixão, cumpriram o ensinamento do Livro do Eclesiastes: “Há tempo de dar abraços, e tempo de se afastar deles”.
Roberto Gonçalves