O Amor É Cego

E mais uma vez ela passava os finos e longos dedos pelos cabelos escuros e cacheados. Para ela, mais um mero gesto costumeiro. Para mim, mais um desejo por conhecê-la.

Era uma covardia, uma crueldade tanta beleza em meio a tantos rostos estranhos. Cansados. Fatigados. A marca do rosto trabalhador que ocupava cada poltrona daquele velho ônibus. Ouvia algumas tantas reclamações e outras tantas histórias tão iguais, tão comuns, tão sem graça. Mas nada, nada me tirava a concentração de admirar aquele rosto fino, de perfil, concentrado em algo do outro lado da vidraça. Algo que realmente lhe chamava a atenção...Ou não. Talvez fosse um daqueles pensamentos que nos levam a uma paralisia corporal. Mas não me importava. Apenas queria vê-la, revê-la. Não me cansava. E se cansasse, não me importaria.

Sem que percebesse, ela, infelizmente, descia, com seu ar de graça, as escadas daquele velho ônibus. E era novamente cruel. Mas não, não por haver tanta beleza em meio a tanto descaso e sim por não haver nada que pudesse admirar. Observei-a pela janela, andando com passos curtos, cabeça baixa. Uma lágrima escorrera. Algo a perturbava. Tinha certeza. E a vi entrar numa casa. Essas tantas casas comuns de ar europeu. Um pequeno portão, um caminho, uma varanda. E a porta. A porta que a fechara para mim. Fechara aquela beleza que, agora, me conturbava.

Os dias correram. Talvez depressa, talvez devagar. Eu realmente não prestava muita atenção no tempo. Meus pensamentos se concentravam naquela moça. A moça do ônibus. Todos os dias observava aquele mesmo banco, na esperança de revê-la. Mas não, nunca mais a vi. E aquela lágrima. Ah! Aquela lágrima. Perturbava-me tão mais do que sua beleza. Eu deveria fazer algo, só não sabia o que.

A princípio, pensei em mandar-lhe flores, chocolates, alguns doces, mas não, isso seria ousadia demais. Optei, então, por algo que me calhava bem: escrever. Mas, novamente, não sabia o que...O que escrever. Poderia dizer o quanto não a tirava de meus pensamentos, mesmo a tendo visto em tão pouco tempo. Mas isso seria um tanto extenso. E, acho, as grandes sentenças assustam antes mesmo de serem lidas. Todavia, escrever uma curta frase talvez fosse grosseiro demais. Seria? Mas a coragem me veio antes mesmo de saber que existia, de fato. Rabisquei, sem que percebesse, a seguinte frase: “Poderia dizer-lhe tantas coisas, mas, a princípio quero saber o porquê de uma lágrima rolar desses olhos tão singulares.”

Enquanto a coragem ainda me restava, corri para entregar a carta em seu endereço. Mas a coragem não era tanta a ponto de fazer pessoalmente. Deixei que os ofícios o fizessem por mim.

Novamente os dias correram. E desta vez, sei, correram devagar. Prestava atenção em cada segundo, cada minuto, na esperança de que alguma carta me fosse entregue. Mas nada, nada me era endereçado.

Imaginei que talvez tivesse sido muita ousadia perguntar-lhe algo tão pessoal, ao passo que ela não fazia a menor ideia de quem se tratava. Minha estupidez foi grande. Deveria ter feito algo diferente, como simplesmente esperá-la ao portão e, eventualmente, trocar-lhe algumas palavras. Mas, quis ser diferente, quis fazer algo que a intrigasse.

De repente escuto um barulho vindo da porta. Algo parecido com folhas caindo ao chão. Apressadamente corri à porta. E havia um envelope diferente. Seria a carta? Rasguei-lhe sem mais demoras e, rapidamente, li a curta sentença: “E realmente lhe importa? Qual o sentido da vida senão a morte?” Realmente algo a perturbava. E sim, deveria e faria algo.

Comecei a mandar-lhe mais cartas, mas com o intuito de perturbá-la, instigá-la. Não dizia nada que fosse objetivo nem nada que fosse explícito. Queria fazê-la se envolver. E a fiz. Todavia, que fique claro: o motivo de sua tristeza nunca me foi dito. Tentei, algumas vezes, de forma eufêmica, descobrir. Mas nada me disse. Preferi calar-me para não causar-lhe constragimentos e, posteriormente, um afastamento de mim.

***

Constantemente vinha o carteiro, de cara rabugenta, entregar-me cartas. Sentia que isso o intrigava também. Talvez tivesse percebido o que ocorria. E, mais que isso, se pergutasse por que, em meio a tanta tecnologia, uma comunicação manuscrita, uma comunicação por cartas. Mas, ele não sabia que se tratava de uma atitude peculiar, já que a tecnologia é que é ser comum, ser mais um em meio a tantos outros. As pessoas simplesmente se esqueceram das cartas. Mas eu queria revivê-las e, mais que isso, fazer reviver naquela tão bela moça, o desejo por vida.

Das cartas que antes eram misteriosas, logo mais de otimismo, não se demoraram e se tornaram de amor.

Eram tantas as declarações e tantos os desejos e emoções distintas. Todavia ela não havia me visto. Não fazia a menor ideia de quem se tratava. Ah! Ideologia platônica! E talvez isso a fizesse me procurar ainda mais; a fizesse me querer ainda mais; a fizesse me idealizar como o seu príncipe encantado. E essa era a parte que me assustava. É fato que a beleza se tornou mais um produto a ser vendido pelo mundo capitalista. E isso talvez me assustasse devido a algumas marcas em meu corpo, marcas de um acidente que outrora sofrera. Isso já me fizera, por vezes, solitário. Não queria que ocorresse novamente. Eu a amava. Amava-a tanto...! Não queria afastá-la de mim. E, por tal motivo, adiava nossos encontros, que se tornavam pedidos constantes nas cartas que me eram endereçadas.

Todavia, por mais que adiemos as coisas, há momentos em que somos obrigados a encarar nossos medos e obstáculos. E essa hora havia chegado. Havia recebido um convite irrecusável. Este era, mais do que qualquer outro, o convite mais belo e mais promissor que recebera até então. Não negaria. Encararia. Simplesmente a queria e, portanto, ousaria encontrá-la.

***

As ruas estavam claras, talvez um ou outro poste funcionasse. Mas a lua, tão singular em sua beleza, iluminava o caminho. Andava devagar e ainda assim tropeçava a alguns passos. As pernas, bambas, me enganavam. Não confiava nem mesmo em minhas mãos, que trêmulas, suavam constantemente, assim como todo o meu corpo. O coração batia de forma eufórica. Sim, eu a veria em alguns segundos. E, novamente, o medo, aquele medo por minha beleza que não existia me castigava; me perturbava. Ela me aceitaria?

Há alguns metros, reconheci-a. Ah! Como sua beleza me embasbacava. Havia me esquecido disso. E novamente ela entrelaçava seus cachos. Talvez lhe fosse mesmo um comportamento típico. Ainda me demorei um pouco distante. Queria observá-la, sem que soubesse, como havia feito na primeira vez que a vi.

Dei mais alguns passos. O coração, como se fosse possível, batia ainda mais rápido. E ela se virou. E, embevecido de sua beleza, não conseguia dizer-lhe nada. Apenas beijei-a.

Não sei descrever o que sentia. Parecia não estar ali. Parecia não fazer parte daquele mundo, não por alguns minutos, ao que me parece. E então abri os olhos. Voltei à realidade... Ou não. Não podia haver tão rara beleza num mundo tão real. E ela? Ela abrira os olhos, embora não lhe fizesse diferença. Não mais. Aqueles olhos, soube, não enxergavam nada que fosse real. Havia sempre neles o que a ideia pudesse lhe surgir. E as cartas, creio, eram escritas por outras mãos. E assim beijei-a novamente. Senti-me em seu mundo escuro e idealizador mais uma vez. E, com um sentimento tão intenso e tão egoísta, ao mesmo tempo, compreendi o que ocorrera no primeiro dia que a vi; compreendi a sentença que lhe fora dada, e agradeci por saber que o amor é cego.

(Em 2010 ou 2011)

Por Jéssica França
Enviado por Por Jéssica França em 02/08/2012
Reeditado em 02/08/2012
Código do texto: T3809202
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