O INFINITO TIQUE-TAQUE DA CONSCIÊNCIA

Lá fora o vento devia fustigar as árvores, conspirar nuvens escuras e densas sobre a Cidade Velha, suas torres e monumentos medievais, fazendo com que os autos tivessem mais espaços pelas ruas disputadas, já que poucos se arriscavam a sair com o frio intensificando-se, contudo as lojas abertas podiam levar o comerciante ao tédio, mas não desistir.

Atrás de si Ewald sentia as estantes de livros alcançando quase o teto, ali debruçado sobre a mesa, viu quando Franz se colocou a sua frente com dois livros. Queria que ele escolhesse o livro, mostrava-lhe o autor, aproximou-se e ficou bem ao lado de Ewald. Ambos eram romances, um de Dickens e outro de Dostoievsky. Não, Ewald não queria Dostoievsky, preferia Dickens, e tinha sempre as ilustrações em cada margem.

_Quer levar para casa – perguntou Franz, puxando a poltrona para perto dele, ficando assim bem ao seu lado.

_ Mas queria que você lesse um pouquinho para mim, Franz – pediu humilde, num tom de voz mais baixo do que se pedia no ambiente.

A biblioteca estava vazia quase, além deles só havia uma senhora sentada bem mais ao fundo, bastante concentrada em um grosso volume, debruçada sobre a mesa. Ewald olhava as mãos de Franz abrindo o livro, folheando-o, e das mãos passou a olhar os lábios dele se movendo, num tom baixinho, narrando com emoção, assim arqueando as sobrancelhas grossas e quase juntas quase parecendo que fosse ele o autor e que estava descobrindo cada sentença para tecer a narrativa para o amigo. Ewald precisava cada gesto dos músculos da face do amigo, a ponta da língua passeando, ora e vez, pelos lábios, o pomo subindo e descendo na garganta. Queria tocar no rosto dele, e levou o gesto a ação como se não houvesse pensado. Franz voltou-lhe o rosto, sorriu, mas era um sorrir que escondia constrangimento, e Ewald fugiu-lhe a face.

_Perdoe-me – balbuciou.

_Tudo bem Ewald – disse Franz olhando para o interior do livro aberto – mas acho melhor irmos para casa, o tempo está feio lá fora, vai chover, e se eu não estiver em casa a tempo para o jantar, meu pai vai ralhar sério comigo. E acho que seu avô também.

Mas Ewald queria ficar mais um pouco sozinho e perto de Franz, e vendo que ele fechava o livro, tocou-lhe o braço, e os olhos de Franz foram para ali.

_ Você se melindrou comigo? – e abaixou os olhos, mesmo tirou a mão do braço do amigo.

_Não, não, Ewald não estou melindrado com você, só acho melhor voltarmos para casa. Podemos ouvir um sussurro forte do vento – levantou o dedo junto aos ouvidos – escuta só, a tempestade se aproxima. Ewald, e tem meu pai, escreverei uma carta para você falando sobre meu pai, hem, dar-me-á razão.

_ Eu acariciei seu rosto – disse baixinho num tom torturado de voz. Franz enrubesceu levemente, levantou-se e tocando ao braço dele convidou-o para se levantar também. Ewald levantou-se, sempre cabisbaixo, pegou o livro que Franz lhe estendia, já estava registrado o empréstimo, colocou-o na sua pasta e seguiram lado a lado para fora da biblioteca. A mulher, sentada mais ao fundo, levantou o rosto como a olhá-los. Os dois confirmaram que o tempo estava mesmo tenebroso, e a rua parecia varrida também de passos, portanto as lojas teimavam em manter suas portas abertas a convite de moinhos de poeira.

Havia o cruzamento onde deviam se despedir e cada um ir para sua casa. O vento os fustigava, levantando poeira, trazendo restos de papeis que não se sabia bem da onde vinha. Franz encolhia-se, Ewald chegou para mais perto de Franz.

_ Não, Ewald aqui nos despedimos – e estendia-lhe a mão, mas Ewald num tom choroso e cabisbaixo, pediu mais uma vez se podia ir com ele, a casa dele.

_Não Ewald, meu pai não espera ninguém para jantar. Hoje não amigo. Outro dia.

_Você nunca vai me levar a sua casa, nunca vai me convidar para conhecer seu quarto, sua família – disse choroso Ewald como uma criança ao qual é negado o brinquedo que tanto quer.

Em meio a Ventania, Franz puxou-o até a aba de uma marquise e, como tentando os proteger do vento, tentou explicar por que não podia, argumentando que seu pai era brabo, não tolerava visitas, principalmente de seus amigos, ainda mais na hora do jantar, e ainda tinha o agravante do tempo que se armava. Mas chorando, as mãos juntas ao peito, Ewald disse:

_ E como Hugo, Rudolph e Oskar vão sempre a sua casa – reiterou choramingando.

_Eles te disseram isto – indagou Franz num tom aflito de voz.

_E nem precisavam dizer – foi ele, ainda de rosto baixo, inutilmente tentando esconder as lagrimas – eu vejo vocês juntos sempre, participam de uma associação da qual eu fui excluído – soluçou, gemeu baixinho, tremendo as mãos – mas eles se referem o tempo todo que vão a sua casa, falam com sua mãe, eu escuto pelos corredores. Não minta para mim Franz. Seja sincero. Você não gosta de mim. Acha-me um tolo, um inútil, um imprestável, não sirvo para seu amigo – e virou-lhe as costas num pranto estrangulado. Franz tocou-lhe ao ombro, vergando ambos ao açoite da lufada do vento.

_ Está bem Ewald, vamos – disse segurando-lhe o braço – mas eu te garanto que não se sentirá bem. E me fará passar constrangimento.

Ewald virou-se, o abraçou, notando que a rua estava vazia, e assim ficou abraçado a ele, mas Franz desvencilhou-se lentamente.

_Vamos, vamos – disse Franz – não tardemos.

Ewald passou a segui-lo, e vendo-o, Franz, enxugando as lagrimas com o dorso da mão, tirou o lenço do bolso do seu paletó e o ofereceu. Ewald recebeu agradecendo, emocionado, enxugando o rosto banhado em lagrimas, vestindo um sorriso no rosto, ambos andando ombro a ombro vergando um pouco pelo vento doido.

_ Meu pai é muito grosso, Ewald, eu peço que você não repare – disse coçando a cabeça, e de repente lembrando – mas seu avô não há de ficar preocupado?

_Eu o avisei, Franz. Disse que ia me tardar para estudo na biblioteca – disse já mais alegre, gaguejando um pouco.

Do pequeno vestíbulo, olhando os pequenos lances da escada que entraria a casa, Ewald teve logo o primeiro baque de um susto. Franz pareceu perceber que Ewald sentira um arrepio, pediu que ele aguardasse ali um instante que ele subiria primeiro e avisaria a mãe e o pai que trouxe visitas. Sorria emocionado o pequeno Ewald, e Franz teria interpretado erroneamente o arrepio do amigo. Com certeza não era o mesmo arrepio que sentia ele, acostumado ao seu lar, mas sempre com medo do seu lar, de chegar, levar bronca, ser chamado atenção.

Ewald inspecionou o ambiente com os olhos movendo-se nas orbitas, pouco se movimentava, tenso, agarrado a sua pasta. Agora Franz poderia suspeitar de tudo, mas tudo o que?, não, não, Franz não fazia esse juízo dele. Franz apareceu meio afogueado, curvado, chamando-o a subir e entrar. Passaram pela sala, logo atravessaram um corredor um pouco escuro e então já se podia ouvir a grande voz em brado.

_ Meu pai – sussurrou Franz levando o indicador instintivamente aos lábios como a pedir ao amigo o silencio respeitoso.

O homem de rosto pesado, sentado À mesa de frente para a porta, logo os viu entrar. A mulher ao lado dele virou-se para olhar como se entendesse o olhar do marido. As três meninas comiam calada, respeitando o silencio imposto.

_ Boa noite, pai, mãe – disse Franz sem jeito – este é o Ewald.

Ewald não encarou os apresentados, embora os cumprimentassem gentilmente.

_Este eu não conhecia – disse o homem sem largar os talheres. A mulher virou-se para uma das meninas a sua frente, pedindo que comesse tudo, num tom baixo de voz, e voltando-se para o convidado disse num sorriso cansado:

_ Seja bem vindo, Ewald.

Franz foi se esquivando, pedindo licença a puxar Ewald com ele, mas o pai mandou que o filho sentasse à mesa para jantar, e o mesmo convite se estendia ao amigo dele. Trataram de obedecer. Ocuparam as duas cadeiras ao lado da mãe, esta os serviu, e eles esperaram silenciosos. Mas sem deixar de comer, o homem perguntou olhando para o convidado:

_ Então rapaz já sabe que carreira seguir? – e sem esperar resposta franziu o cenho, largando os talheres em cima do prato, encarando bem o pequeno – Parece que eu o conheço.

Ewald falou-lhe do avô alfaiate. Hum, hum, fez o homem, e lançou um olhar fulminante de esguelha para Franz, cheio de censura. Franz engoliu em seco, mesmo se serviu de agua, e serviu Ewald com as mãos tremulas.

_ Gosta de Literatura como seu amiguinho Aí – perguntou o homem com pesado tom de ironia.

_Gosto sim senhor – respondeu num fio fino de voz, e estrondou-se uma gargalhada da parte do homem. Tolos, tolos, dizia ele de boca cheia, embora a esposa o olhasse com censura.

Depois do jantar tenso, Franz conseguiu levar Ewald para o seu quarto, dizendo-lhe, Eu não te falei que era tenso, e nada agradável.

_Desculpe pelo constrangimento, Franz – disse-lhe, olhando o ambiente, a cama forrada, a cabeceira com um abajur e uns livros sob ele, e mais ali entre a porta e a janela estava à escrivaninha negra, alguns papéis abertos, a caneta ao lado do tinteiro; a cadeira de espaldar alto.

Franz acendera a luz, e a janela fechada, mas pelas frestas podia se saber que a noite tomava suas proporções.

Franz sentou-se na cama, apoiou os cotovelos nas coxas, segurou o queixo nas mãos, olhou grandemente assustado para Ewald.

_Seu pai teve uma impressão estranha de mim não é – perguntou.

Franz riu, um riso seco, Meu pai tem impressão estranha e ruim de todos os meus amigos, Ewald, não se preocupe.

Ewald olhou os papéis atirados sobre a escrivaninha, mas não os leu, porem Franz mesmo o avisou que nos papéis continham alguns escritos seus, Pode ler se o interessar, acrescentou com humildade. Ewald pegou com mãos trêmulas e leu algo que parecia falar em “esperança”. Esperança para os judeus.

_ Eu penso muito nessa ideia de ser judeu, Ewald – disse se levantando, andando pelo quarto, detendo-se próximo ao guarda-roupa, afrouxando a gravata. Os ruídos da casa entravam por ali, principalmente da cozinha, a empregada lavando a louça, resmungando em dialeto diferente – Ser judeu. Por que somos judeus? Mesmo se quiséssemos não há como nós livrar de ser judeu. Você já pensou nisso Ewald, hem – fitava-o, e este escondia o semblante constrangido – um cristão católico pode deixar de ser cristão católico, basta negar que é cristão, mas um judeu, ele sempre é judeu. E nossos antecedentes nos marcam como eles para que isso seja fácil de reconhecer. Pelo menos, nós machos – e sorriu.

Ewald enrubesceu levemente, sentou-se à escrivaninha, pegou outra folha, notando a falta de pontuação em alguns manuscritos.

_ Sei que você se sente sozinho, Ewald – continuou Franz ficando de frente a este, debruçado sobre a escrivaninha – eu também sinto essa solidão Ewald, mas é uma solidão crônica. Nenhuma companhia poderá atenuá-la. Não falo isto apenas para te consolar, mas é por que somos assim vazios – afastara o olhar, mas agora o encarava, e justamente Ewald permaneceu de semblante baixo - Por isso é que nos apegamos tanto às artes, as paixões, muitas paixões. Somos vazios Ewald, e queremos o outro, achando que o outro tenha algo que possa nos preencher. Você leu Goethe, o jovem Werther. Talvez não cheguemos ao extremo, mas é justamente o que Goethe quer nós mostrar, que só este extremo daria sentido a alguma coisa.

Ewald fitou-o apaixonado, sentindo o rosto em brasa. Sim, pensava, por você Franz eu deixava minha carne ser dilacerada até a morte penosa. Era aquele pensamento “perigoso” que produzia em Ewald as brasas do seu rosto, que o tornava vermelho, encarando o rosto do amigo que continuou lhe falando:

_ Sei que me estima muito, eu também o estimo. Mas não direcione seus rumos a apenas isto, amado. Entre eu e Hugo, eu e Rudolph, ou juntando nós três mais Oskar não acontece nada que não se possa ser dispensado. Somos todos pequenos tolos, e quando crescermos mais nós julgaremos melhores, mas logo veremos que somos ainda mais tolos do que éramos.

Ewald levantou-se, perguntou em tom de voz vacilante se podia abraça-lo. Sim podia, Franz abriu-lhe os braços. Ewald não disfarçava seus sentimentos, Franz, se os notava, fingia muito bem que não compreendia.

_ Acho bom você ir Ewald, disse Franz, está bem tarde. Vou leva-lo até onde passa um fiacre ou um tílburi para que chegue a sua casa mais rápido.

_ Obrigado – disse afastando-se como quem recua alguns passos. Franz evitava fita-lo diretamente agora.

Quando já estava em casa, em seu quarto, após o chá com seu avô, de conta-lo que estivera à casa de Franz, então Ewald pode fazer um balanço desse seu dia, mas tristemente, assim deitado, de bruços, com sua camisola de dormir, o rapazinho ia percebendo que não era tão fácil. As reminiscências, embora tão recentes, vinham-lhe embaralhadas na cabeça, e tudo que mais realçava a existência e a certeza deste momento eram as sensações; os estados perturbados de sensações que se passara em seu espirito, e que continuava ainda sentindo, fazendo suas entranhas se revolverem, o estômago queimar, os nervos dilacerarem em frangalhos.

Em seus olhos represavam-se lagrimas duras, afiadas como facas. Não fora preciso ele ter dito nada, não fora preciso Franz ter nem mesmo dito entrelinhas, os olhos, os músculos da face, os gestos das mãos, o tenso dos ombros, tudo revelava que a verdade entre eles morava. Sofreria, mas era preciso que se afastasse de Franz. Não podia e não devia. Era causa-lo constrangimento. Se gostava mesmo dele, acreditava, tinha que se afastar. Por que fizera aquela cena, perguntava-se remoendo um ressentimento de si mesmo. E o que ganhara? Sim, aquela leitura de olhos e gestos que levavam a compreensão de tudo. Seus sentimentos para com Franz eram sentimentos impróprios, indevidos, um homem não podia sentir tamanho ardor pelo outro assim. Mas não é verdade, disse um ser esmagado dentro de si, esmagado por uma força maior que apertava, ultrajava-o, mas não impedia de clamar por aquele ardor, mesmo deseja-lo, senti-lo. Era inevitável. Somos muito jovens. Eu ainda sou muito menino, combatia seu espirito aflito, mas sabia que já estava um rapaz, tanto ele quanto Franz. Franz devia, intimamente, desprezá-lo, e tinha razão, não podia censurá-lo por tal. Contudo, disfarçava, omitia, mesmo fingia. Afinal as lagrimas foram descendo de seus olhos, abundantes, era como se uma represa houvesse arrebentado depois de tentar suportar além do seu limite máximo, e com isso o desabar vinha em torrentes pesadas, provocando convulsões. Reprimia o grito, mas saia-lhe da garganta, fino e dolorido, um grito como um uivo.

Dormiu e entrou em sonhos confusos e atormentados, cheios de situações tristes em que a pior era se lembrar de que lhe negavam água. Acordou de madrugada com se de realmente e precisou se levantar para ir buscar água. Tinha chorado tanto que desidratara. Escutou o ronco vindo do quarto do avô. Ele dormia, despreocupado, justo, sem saber... sem saber...

Aquilo ficou como um tique-taque que o embalou no sono. O vento frio continuava lá fora. O outono já amanheceria amanhã com cara de inverno. A chuva não viera, mas o frio estava no encalço dos melancólicos.

Sem saber... sem saber...

O hospede se mexia, de vez em quando, lá entre os entulhos, que eram restos de manequins, torsos de plástico, sem membros, abandonados pelo excesso ali, por um defeito e quebra na compleição. Assim se sentia Ewald, assim que o avô desconfiasse, mas por enquanto como vinha o tique-taque: sem saber... sem saber...

Rodney Dos Santos Aragão
Enviado por Rodney Dos Santos Aragão em 16/07/2012
Código do texto: T3780702
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