PÁGINA NOVE

A tarde era um hiato entre a manhã que não significava nada e a noite que era uma angustiante espera.

A manhã ela só percebia quando estava acabando – é que acordava muito tarde – mesmo com as buzinas e os sopros de velocidade dos carros. As cortinas da janela do quarto eram escuras para que a claridade não abusasse. E Selma sentia conforto em dormir na penumbra; depois que à noite, revirando-se na cama, correu rápido, tão rápido que ela nem percebia o avançar.A luz do abajour auxiliando um pouco da solidão na cabeceira da cama – é que havia o livro que ela nunca terminara de ler porque mesmo nunca conseguira começar – e só o abajour conhecia intimamente aquela página do livro.

Selma encostava-se A e no espaldar da cama, o livro sobre o regaço da camisola amarelo-bebê, e aquela mesma página de ontem, anteontem, transontem... de vários dias e da penúltima estação anterior à que estava.

Ao invés de começar a ler o livro, ela começava pensar o porquê de um livro começar na página nove – e assim não saia da página nove – as letras embaralhavam uma com a outra no que o pensamento fugia para um acontecimento passado tão distante: o marido viajando, o marido viajando... ele vai voltar; os cabelos que precisa pintar; odeia ter cabelos escuros e tendo a pele clara os tinge de louro.

Uma vez os tingiu de tão louro que ao se olhar no espelho não se viu. E adorava estrategicamente era próximo de um ponto de ônibus; e ali que se viam rostos tão sem expressões; só alguém que usasse óculos escuros ela podia identificar a face.

Adorava amarelo: era transparente como uma água-viva.

Acordava às onze horas e esta já era o derrear da manhã. Chegava à janela do apartamento – tão fofo de estofados e cortinas, almofadas – e além de ver o cotidiano de carros à Avenida à sua frente, ela sentia o cheiro de comida; de várias comidas, variados temperos, chegando apesar do insistente cheiro quente de borracha do subúrbio.Às vezes quando à tarde se isolava no meio de tudo sem esperança de acabar, ela sentia o cheiro de carne crua do açougue logo à frente.

Selma às vezes tomava banho cedo, e ficava com uma toalha amarela enrolada na cabeça até que a tarde acabasse. Pensava no livro lá na cabeceira da cama...se suportasse o lia, mas não conseguia, sabia que tinha que acabar logo se atrevesse a começar.Então mantinha a sua relação com o livro como estava.

Teve um instante que esqueceu que dia e que horas eram – só lembrava que era tarde – e ousou entrar no quarto sem o convite natural, e só para mexer no livro tão quieto lá na cabeceira da cama, debaixo do abajour apagado, porém tão soberbo. E sentiu, deliciando-se, as páginas nas pontas pelo seu dedo: se tivesse coragem faria uma orelha, e aí queria ver...

Deixou o quarto como se as sombras das coisas que se lambiam ao sol a vigiasse no “delito”. Bem que se espantou ao notar que a toalha sobre a sua cabeça parecia uma...uma... nem sabia dizer o que era de tão ridícula. Ficar ridícula às vezes quebrava a rotina.Só que era um quebrar silencioso – dentro de um armário – nem dava para se divertir.

A janela a distraia mais: o açougue estrategicamente era próximo a um ponto de ônibus. E ali ela via tantos rostos sem expressão, apenas alguém que usasse óculos escuros ela podia identificar o semblante.

Cachorros vira-latas viviam pelo meio-fio, adivinhando, desconfiando...

É manhã ainda – viveu como que espiando pelo olho mágico, e sentiu como se pudesse tocar, porque lhe tocava, e abrandava com carinho o longo percurso da nova espera que já começasse. Mas, era breve, apressou-se Selma, e teria que correr antes que fugisse logo a galope para à tarde; desmoronaria tudo devagar e num estrondo tão repetitivo que chegava a ser fatídico.

Aquela noite dormiu de short e camiseta mesmo – para se levantar já pronta – amarelas a combinação: transparente sempre. E no remexer confuso das coisas apertadas e beges na cozinha a cafeteira já trabalhava sozinha no preparo do café.Ela sentia o cheiro do café, misturava-se ou era o próprio cheiro derradeiro da manhã.Era preciso apressar-se, Selma sabia, ou nem o gosto do pão com manteiga teria mais graça, e o jornal ficaria olvidado no capacho de borracha da porta do seu apartamento.

As paredes finas do prédio estremeceram, e tudo lá fora começou a mover-se com muita ganância – Meu Deus – poderia exclamar sem olhar para a janela: a manhã se fora, pegara o trem para outro lugar...

E a tarde entrava preguiçosa, lenta como um pedreiro que ganha por hora de serviço, e Selma ficou perdida com a xícara de café, fumegante, hesitando na boca; indignada com sua incompetência. O jornal apenas serviria para se colocar no fundo da lixeira.

Achando-se transparente, já convencida que enfrentar à tarde, sem mais nada antes, era a sua sina, ocupou-se com o banho. E no meio caminho desta decisão, pensou no marido como que enrolado ao jornal – porque o jornal era dele, ele fizera a assinatura – o marido iria voltar logo.Eram sempre aqueles cinco dias por dois.

E numa noite, que era veloz, ela vivia em gravuras o Kama Sutra.

O livro ficava sempre sobre a cabeceira, sob o abajur: o segredo eterno do além da página nove.

O espelho revelara-lhe o louro que se desvanecia: não estava transparente. Só que lutava; a tarde poderia acabar de repente – só de raiva – e ela , na volta, ser pega de surpresa por uma noite que outrora tivera tanta intimidade.

-a noite foge rápido, mesmo durante toda ela acordada – e tocava na face parva de acontecer, no espelho do banheiro, logo ao sair do box – deve haver, em algum lugar do mundo, uma noite que dure mais que o dia.

O corredor do prédio era escuro, todavia acolhedor: se pudesse escolher, escolheria o corredor para morar. Ali não sentiria tanto a tarde.Antes de descer os lances de escada, jogou o jornal dentro do apartamento e trancou a porta atrás de si.

Encarava o subúrbio de calça, camisa, e sandália amarelo-claro – queria voltar toda transparente na tarde ardendo – e pisava o subúrbio, semiasfaltado, como se andasse num terreno duvidoso.

Olhar para o sol de frente fazia-a ter sede, e tanta saliva na boca para nada.

O salão de beleza a revelava na porta vidraçada; entrava assustada, mas logo se apaziguava. Sentia o conforto do alvoroço alegre, quente pelo cheiro dos secadores e úmido pelo cheiro dos xampus e condicionadores.

Ah, ela já conhecia todas as meninas, até mesmo as ouras – frequentes – freguesas. Tudo ali oscilava entre o habitual e inédito sempre.Só que de obliquo olhar, quase pretendendo mostrar que não interessava, ela viu que um rapaz passava a tesoura delicadamente artístico nos cabelos de uma senhora.Achou-o bonito, pelo cavanhaque que escondia o sorriso que o rosto, sério e responsável, naquele momento parecia mesmo não ter; a distraia da atenção, que a mulata Marlene a levava para a estante das tintas.

-Qual tom de louro vai ser desta vez?

E a pergunta acontecia seguintemente, repicando igual a um sino que se dobra; o seu olhar obliquo de mulher que deseja e não dar para disfarçar, enrubesce em lenha queimando-se quando...

-Ele é gay, pode desistir.

E nada havia acontecido, a mão vacilante apontou bruscamente delicada a caixa de tinta da prateleira.

-Louro-pastel, louro-pastel...

Não havia como se esconder, só ouvir o barulho de antiácido efervescente num copo de água...Bola para frente, se preparar para se transparecer no amarelo do ar ficando dentro dele.

Assim se deitou na cadeira de hidratação: a cabeça toda pendida oferecendo os cabelos para o chuveirinho – água fria, adorava, adorava nada – era prova de sentir a matéria no mais sensível da pele – que nada – mais barato saía.

E sentindo a carícia gelada, fingia ouvir Marlene, satisfeita.Olhava mesmo, agora, para o globo de luz tão tímido naquele canto tão abrigado pela escuridão.

A noite desceu depois de um apito longínquo de certa intromissão do silêncio. Selma não lembrava mais o que acendera as luzes: as luzes estavam acesas.Na rua era sempre no momento em que ela não estava olhando – e a qualquer instante que se debruçava à janela – todos os postes estavam prontos.

Selma, transparente no conjuntinho fresco de verão , e o cabelo tão louro que a luz amarela não atingia.

Às vezes sentia um ofegar no corredor: alguém esperava, e eram passos na escada; passos cansados...

Começou a desaperceber das coisas que via a sua frente, pela janela, sem que as coisas se apagassem.Virou as costas para o que não conseguia mais, e olhou as coisas que via suando inertes dentro do apartamento.As coisas suavam e ela só frescor...E olhando o telefone na prateleira acima da televisão, concluiu amarga: não toca, não toca...

Embora sentisse frescor, via o aparelho amarelo suando na claridade, ela pareceu gritar.O telefone iria tocar, e não havia remédio para o que ouviria.

E o planeta continuava girando em torno de si mesmo e do sol.Teria que começar, também, a ler o livro.Ela andou pelo espaço – até pequeno do apartamento – com vontade de fechar a janela e a deixando aberta.

O quarto a chamava, chamava-a com sua luz acesa, e o livro na cabeceira sob o abajur, vaidoso em suas paginas fechadas.Mas o telefone suando na sala, ele trinaria – ela já podia ouvir antes – porque enxergava o suor dele.

Sentou-se na beirada da cama, sentindo a caricia da colcha nas coxas, quase nas nádegas, porém o rosto ameaçava desconforto; a visão embaralhada numa tempestade de um choro que nascia: o livro era, recortado em sua visão, fachos de luz e raios.

-Ele não vai voltar, ele não vai...voltar.

O telefone suava desesperado na sala – não apenas o telefone – tudo que a cercava, e a cercava como amor.

Era o útero que avisava as coisas: o útero que esconde e abriga aquela alma que vem de outros lugares, para avisar, para avisar antes de tudo: a dor era ali.E ela olhando o livro: o livro pedia-se.

A dor era tão dentro da dor que já vivia o depois: o útero permitia isto.

Selma pegou o livro, sentindo-se trêmula no choro que escapava, que as letras do livro já aberto queriam se entender, porém não ainda se entendiam...

A página nove! O começo do livro.

E ela com as paredes e tudo estremeceu quando o telefone, suando desesperado, confessou:

AUTOR: RODNEY ARAGÃO.