APENAS O QUE SABEMOS...

Fabrício ajeitou o corpo na cadeira e evitou o olhar para a tulipa de chope à sua frente; e quase a vontade ajeitou a cabeça sobre o espaldar da cadeira bamba do barzinho lotado, e olhou o céu estampado de estrelas. Nossa como era noite! Exclamava no sorriso ao cavanhaque.

O seu corpo, magro e esbelto, provocava desejos e certos frissons quase ocultos. Ele fechou os ouvidos para a zoada de alegria.Ouvia-se forro “aquela gente” e seus ouvidos se prestavam a um silêncio inexistente.

O céu oferecia tanta beleza como se ele pudesse olhar no espelho e reconhecer o que não via em si mesmo.

Uma senhora de cabelos quase azuis sentou-se na cadeira à sua frente à mesa.

-Não quer dançar?

Fabrício voltou o rosto – pensou conhece-la, nem se tocou que tinha idade para ser sua avó – sorriu-a nos lábios polpudos no que lha respondeu:

-Não senhora eu não gosto de dançar esta musica.

Ela ousou tocar suas mãos cheias de sardas sobre as finas dele.

-Eu peço para trocarem a música.

Ele afastou a mão e sorriu simpático e nem um pouco ofendido.

-Desculpe Senhora, mas não é o caso da música. Eu sou gay. Não curto mulher.

A mulher chocou-se veemente, todavia escusou de dar sinais. Teve secreto horror de parecer retrógrada e velha.Fingiu compreensão, embora lhe fosse mister mostrar um certo desapontamento.

-Bem é uma pena, não deixa de ser... Tão bonito. Sorte do rapaz...

Ele, entrelaçando as mãos sobre a mesa, pensou no rapaz. Um espelho oval do salão de cabeleireiro os dividia; enquanto ele cortava o cabelo daquele que talvez se achasse apenas mais um cliente.E não era?!

E a mulher de cabelos quase azuis já tinha se ido, embalando-se ao meio dos outros que fervilhavam na noite vã.

Era uma noite vã, muito vã como o vento para quem não estar à varanda.

E aquele copo de chope intocável.

O silêncio que só ele ouvia. o silêncio inexistente na algazarra que se assistia.

Na areia de uma praia, branca como sal, ele: Fabrício teve aquele namorado. Eram dois homens de sunga dividindo a mesma toalha debaixo de sol forte.Aquele namorado era robusto e moreno, e queria passar protetor solar no corpo de Fabrício, que deitou e deixou...

E a praia se escandalizou.

De repente chegou o guarda-vidas dizendo entre educado e nervoso:

-Sinto muito, mas os senhores devem entender que não fica bem – e fora apontando as famílias com filhos, e até idosos na areia, que não cuidavam de si, mas prestavam atenção neles.

Eles “entenderam” e enquanto havia um homem logo ali perto que passava bronzeador, cheio de malicia, nas nádegas da namorada.

Bem, a paz valia mais do que qualquer direito.

O namoro acabou porque Fabrício cansara de ser passivo.

-Arthur eu quero – falara num quarto de motel.

-Calma mal chegamos – fora dizendo este a apagar as luzes em excesso.

-Não eu quero, você sabe – trincara os dentes num riso nervoso que o outro correspondera ainda mais nervoso.

Não houve negocio e discutiram, brigaram...Nunca mais se viram.

Nunca mais também é tempo demais.Desde então não se viram mais, é o certo.

E Fabrício então conhecera aquele sem nome, e cortava seu cabelo o olhando pelo espelho e parecia ao outro que Fabrício olhava para si mesmo.

-Tão bonito deve se narcisar o tempo todo – pensava e nem adivinhava.

Fabrício deu um sinal, quando ajeitava suas costeletas com a navalha, e pretendia fazer quase a sua barba que sobrava pelo rosto.

-Podem ter um cavanhaque assim... – disse Fabrício com intuito de mostrar que assim ficariam parecidos.

-Mas não vai custar mais caro? – perguntou nervoso e atropelado na voz.

Fabrício apenas balançou a cabeça negativamente o olhando ainda pelo espelho, e percebeu que este também o olhava.Os dois se olhavam embora não chegavam a um acordo.Podia ser porque havia muita mulher no salão: uma que pintava os cabelos, outra na hidratação, outra na manicura, outras a esperar folheando revistas velhas.

Ele pagou com mãos trêmulas.Sabia seu nome porque ouvira a outra cabeleireira dizer.E Fabrício não sabia o nome dele.E ele era ali das redondezas, sabia; e que sorte era esta que não fazia com que eles se encontrassem?

Aquele botequim tão cheio e na verdade tão vazio, e Fabrício procurou no céu estrelado...

Que noite! Era uma noite densa e triste dentro da alegria falsa dos á toas enquanto o tempo demais se vivia.

O medo era o medo invisível.Pegou-o de repente, como a sensação de solidão naquele antro, um vento que trouxe o medo de estar assim para sempre.O para sempre existe nestas condições: tantas estrelas no céu muito juntas, e outra isolada lá num canto.Assim era aquele sem nome, no espelho apenas refletido.

Deu um bocejo enorme para a noite no céu e na atmosfera e assim espantava os fantasmas.

No seu quarto – pequeno e apertado dentro da casa grande da tia – ele agonizava os fantasmas se virando de um lado para o outro; cobrindo-se e descobrindo-se, assustando-se até por conveniência, com a própria sombra.

Sentiu o sexo quente entra as pernas e vinha tanta idéia na cabeça.O número do telefone de Arthur tinha na mente.Sabia que se o ligasse ele o atenderia correndo...Mas, mas, mas...Foi assim pingando a dúvida e o sono caindo quente como um edredom que no frio acalenta.Sonhar – sonhou – se bem não se lembrou do que.

No salão, antes do dia despertar olhou-se desperto no espelho, e via a colega tão fresca a assoviar.Pensou: seria o assoviar um sinal de que estava tudo bem?

Profilaxou-se assoviando, e assoviando tanto que sua colega – com uma vassoura a varrer uma sujeira quase imaginária - assoviou ainda mais alto.Logo se divertiam desta maneira.

Explodiram numa gargalhada, quase juntos, se entendendo.

O dia correra normal como se nada de importante tivesse acontecido.E esquecer-se-iam deste dia assim como fácil se esqueceram de muitos outros dias.

Caminhando só, pela rua invadida pelosa postes de luzes amareladas, Fabrício nem se sentia como se os outros o reparassem a todo instante.O telefone celular preso à cintura da sua calça jeans tocou, e quando ele atendeu – como que defensivamente – o que chamara desligou.Mas ele sabia o número:estava gravado.Era Arthur, e ele havia pensado, ele havia pensado de sexo excitado.Arthur talvez quisesse ceder.Assim topariam ficar juntos de novo.Quem sabe assumir tudo com uma enorme responsabilidade.Ria sozinho enquanto andava, e ria mais com os rostos assustados dos que passavam perto e se espantavam com seu rir à toa.

Deteve-se espantado assim diante de um orelhão quando seu celular voltou então a tocar, e era o mesmo número.E quem estava no orelhão não era Arthur, não era Arthur.Era magro como ele sendo um pouco mais baixo, e o cabelo já crescia.E ficou atrás deste como se esperasse a vez de telefonar, e ouvindo seu celular tocar sem atender; o outro se virou rapidamente, sem quase olha-lo e informou:

-Seu telefone está tocando.Não vai atender?

Fabrício fez uma cara de ingênuo e atendeu levando próximo ao rosto:

-Alô...

O outro se animara ao orelhão vendo que enfim o atendera e gritara alô com todos os pulmões.

-Quem deseja? Perguntou Fabrício.

-Desculpe ligar, sei que você não me conhece...

-Conheço sim.

Silêncio.Então aquele percebeu que estava atrás dele, virou-se com muito cuidado como se esperasse levar um soco.

Um lívido ante ao outro, e os telefones abandonados a chiar; e Fabrício então pensou, lembrou como um homem deve lembrar que era como o assovio à toa que ele começou depois que sua colega já começara, e assim seguiam...

Aquele dia para sempre existiria...

-Eu, eu queria cortar meus cabelos – falou aquele outro, perdido, com vontade de fugir.

-Pode ser amanhã? Indagou numa ironia doce e não sarcástica.

Mantinham ainda uma distância respeitável um do outro.E se aguardavam como que sem nada falar algo pudesse ser dito pela própria natureza.E o outro se voltou lépido a ajeitar o fone no gancho do orelhão mas recobrando logo a velha posição de defesa.

E ficaram assim como que suspensos pelo susto em comum, um telefone que fora desligado e religado e procura a área de serviço.

Fabrício emocionado aproximou-se e o outro se recolheu com cuidado entre os ombros tensos: percebia-se humildemente trajado para um encontro.Se pelo ao menos uma calça comprida – distraiu-lhe a mente enquanto a pressão subia, o coração batia acelerado, e Fabrício chegava cada vez mais perto.

Fabrício olhou para os lados, e vendo que a rua se fazia quase deserta, tomou a mão daquele na sua.As duas mãos estavam frias e precisavam se esquentar, os olhares que trocaram disseram isto. Acomodavam-se se procurando. Já encontravam a área de serviço...

E caminharam...?

De repente havia uma pergunta antes de tudo.

-Como sabia o numero do meu telefone?

-O cartão da barbearia...

E caminharam de mãos entrelaçadas porque a rua estava deserta àquela hora.Apenas havia os grilos a cantarem uma serenata ao que acontecia.

Precisavam se conhecer. Apesar de que o celular de Fabrício tocou de novo, e ele pedindo licença ao novo parceiro, desligou este e voltou-lhe a dar-lhe as mãos.

E antes de tudo já se enamoravam.Era forte, forte, forte como o repetir da própria palavra. Forte, forte como o beijo na boca que trocaram, longo, e saboreando um a língua do outro.

Suporte se quiser: dois machos se beijaram na boca, e dois machos se beijam na boca, dois machos que se amam mutuamente, e sem pingar a dúvida: perversão?

E é tão bonito quando há amor, muito bonito como o desabrochar da flor no jovem canteiro.

Sei que Fabrício foi feliz aquela noite...Do resto não sei mais.

RODNEY ARAGÃO