Mosaico da Morte
Ainda não consigo entender o porquê você entrou naquele carro, te falei para ficar, mas você disse que tinha coisas a fazer, que não podia... Mal sabia que junto com você, uma parte de mim também se foi...
Ainda consigo lembrar do beijo marcante que me deu, como se estivesse se despedindo, como se soubesse ser esta a última vez... Quando me olhou, naquela noite, na frente do portão de casa, no fundo, eu já sabia que eu ia te perder... Meu desespero foi tão genuíno, tão sofrido em saber que não haveria nada que eu pudesse fazer e que, bem no fim, esta dor só ia aumentar...
Você pegou na minha mão, manteve-as entre a sua durante alguns segundos que pareceram séculos... Eu ainda posso sentir o seu calor, é só fechar os olhos... Beijou meus dedos com tanta doçura, olhou para mim como quem me pedisse para ficar, e eu te pedi, lembra? Mas por que você não ficou? Eu te implorei...
Você pareceu entrar em mim quando me abraçou, foi tão intenso que senti minha alma em teus braços, entregue, repousando feliz! Olhei em teus olhos e senti frio, senti medo, senti dor... Foi então que me abraçou mais forte, como a me proteger do triste futuro que me esperava...
Beijou-me com amor... Tanto amor que me senti invadida, plena, completa... O frio na barriga, as borboletas no estomago, havia se feito toda uma primavera dentro de mim... Ainda me lembro, e lembrarei todos os dias, todas as horas daquele beijo...
Não há mais lágrimas para alivia a angustia que tem dentro de mim, não tenho mais voz para gritar todo o meu sofrimento, o meu desespero de estar sem você... Não há mais coração para doer...
Depois do beijo, você disse que me amava desde nosso passado, me amava ainda mais no presente e que seria mais que infinito seu amor no futuro, que estaríamos para sempre juntos, casados, tendo a eternidade como altar, não importava o que acontecesse... E aconteceu! Você me beijou novamente... Implorei-te mais uma vez, e mais uma última, debruçada na janela do teu carro. Você me disse, daquele jeito calmo de sempre, cheio de remorsos: “Desculpa minha menina... Eu tenho que ir, minha pequena, infelizmente! Tenho que ir... Hei pequena! Amo-te pra sempre!” E se foi...
Lembro que fiquei parada na frente do portão, até seu carro desaparecer em uma curva distante e senti frio, um frio estranho, um calafrio a me percorrer o corpo... Tive maus pensamentos... Pedi a Deus que te protegesse e um anjo para que te acompanhasse... Mal sabia eu que, junto com você, meu coração, minha alegria de viver embarcou naquele carro, numa viagem que não haveria volta, e não houve...
Entrei em casa angustiada... Nada estava bom, nada estaria bem novamente... Parece que toda alegria do mundo se foi e só restou aquele frio... Com o passar das horas, que eram segundos, que se transformaram em milênios, a angustia foi doendo, foi apertando mais do que eu poderia suportar...
Fiquei perto do telefone, amaldiçoando por ele não tocar... Rezava para que ele tocasse e eu ouvisse a sua voz me dizendo que estava tudo bem, que havia chegado em casa são e salvo... Mas, como demorou em tocar, não tinha nada de interessante na televisão, e a vida de uma gueixa já não me parecia tão encantadora... Permaneci esperando, uma espera eterna...
Quando o telefone tocou, já era de madrugada... A casa estava quieta, todos dormiam, mas eu não, fiquei acordada, chorando baixinho no escuro, com o coração apertado e a mente triste, esperando por você... Fiquei aliviada com o toque do telefone rasgando a noite, cortando como espada samurai meus pensamentos tolos, mas como me surpreendi ao saber que não era sua voz, mas sim a de um moço falando sobre coisas que eu não entendia... Coisas que não queria entender... “Moça, seu telefone estava nesse celular, como emergência... Houve um acidente de carro, esse rapaz, dono do celular, foi vítima...”.
“Moço, se isso for um trote, não tem graça... Não brinque...”.
“Não é trote... O nome dele é...”.
“Como... você sabe o nome do... meu namorado?” Meu Deus, não pode ser não pode ser...
Neste momento, meu coração parou de bater por um momento, lágrimas, um grito abafado... Nem mesmo eu sabia ser capaz de fazer todo aquele barulho...
“Mãe, mãe... Ele... acidente... Pai... leva-me... leva-me, pai... Por quê?”
Corri a casa toda, meu amor, procurando alguma coisa que nem mesmo eu sabia o que era... Meu pai me colocou no carro e me levou até você... Deus do céu! Porque tanta viatura? Quanta gente! Tudo está tão confuso! Quando o carro parou, eu abri a porta e corri, afastando as pessoas, ultrapassei a faixa policial e foi quando eu parei... Foi quando eu vi você, deitado no chão, os paramédicos mexendo em você... Em um momento, parece que o tempo parou tudo ao redor parou, o mundo parou... Tamanho silêncio que eu podia escutar meu coração pulando em meu peito... Minhas pernas amoleceram, eu senti como se minha consciência fugisse do meu corpo, eu não consegui me mover... Nesse mesmo instante, eu relembrei cada momento de nossa vida, do dia que nos conhecemos, das nossas brigas, das nossas noites de filmes, do parque com os amigos e meu pensamento vagou até a nossa despedida um pouco mais cedo, na frente da minha casa... Foi então que minha consciência conseguiu voltar ao meu corpo, pois senti tamanho choque e meu corpo inteiro tremia como se tivesse voltado de um coma... Em um segundo... Corri para você, que estava envolto em uma poça de sangue... Havia muito sangue...
“Quem é ela?”
“Moça, atrás da faixa!”
“Alguém ajuda aqui!”
“O que aconteceu, meu amor?” Ajoelhada, afastei seus cabelos da testa e acariciei seu rosto... “Não pode ser! Deus do céu! Mãe é ele! É meu namorado!”
Era você, amor! Mas não podia ser! E o nosso casamento? A gente ia casar no final do ano! Os convites já estão na gráfica e a lista de convidados está incompleta!
Não conseguia entender a confusão que estava ao meu redor, eu simplesmente não conseguia me mover... Só queria que aquelas pessoas sumissem e deixassem-nos no nosso momento... Meu corpo não me obedecia, minha mente e eu ficamos paradas, imóvel, olhando você ser tirado de mim... Colocaram-te na maca... Eu só sentia uma enxurrada incontrolável que descia pelos meus olhos...
“Filha sente aqui! Vai ficar tudo bem! Tenha calma! Tão levando ele para ser medicado! Ele tá sendo cuidado! Calma!”
“Pai! Para onde ele está indo? Pare a ambulância, eu quero ir junto... Pare pai! Pai pare eles, pai!... Eu não quero ficar calma... Pai... Por quê? Por quê?”
Fomos para o hospital onde você estava... Amor, quanta dor tinha para doer! Quantas lágrimas para chorar... Os segundos, que eram horas, se negavam a passar... Uma eternidade cada minuto que passava... Tinha um infinito atemporal ao meu redor... A nítida sensação de que não era comigo que estava acontecendo... O médico apareceu, com o olhar ensaiado para parecer gentil... Parecia odiar essa parte do seu trabalho...
O médico falou coisas que eu não conseguia entender, nem acreditar! Não podia ser, amor... Não podia acontecer isso com a gente!
Agora, quatro anos depois, aqui estou novamente, te contando essa história pela milésima vez, sentindo minha sanidade partir com cada flor que murcha, com cada lembrança... Mas você é tudo que me resta... Resta somente, na vida, o meu amor por você... Isto me basta!
O fato é que só posso abraçar essa fria lápide e olhar com carinho teus olhos sorridentes nessa foto... Lembrar dos brilhos que eles tinham quando ia falar, como me abraçava, me protegendo, me completando... O barulho do seu sorriso... Lembranças, amor!
Você parecia saber...
Sinto falta de você...
Sinto falta de mim, do meu coração...
Tudo que me sobra é trocar suas flores, para que fiquem sempre bonitas para você... Estou usando nossas alianças... Elas chegaram poucos dias depois de vir para sua nova morada...
Estou esperando a morte chegar e não tenho lutado muito contra ela, sabe... Ao contrário, tenho esperado com toda pressa... Tenho urgência da morte, para que, depois dela, possamos viver, finalmente, nosso amor...