A REDESCOBERTA DO MUNDO
Descobri que se morre. Não que eu tenha feito descoberta, descoberta. Eu já sabia que se morre, mano, mas sabe, eu nunca parei para pensar, “pô, eu vou morrer”. Poxa, penso assim, meu avô morreu, minha avó ficou viúva, mas isto sempre foi assim, não me lembro do meu avô sabe, mas eu sei que eu morro qualquer dia, sabe. E para que cara, para que ficar atrás de um balcão, não vou ficar não. Não tenho mais aquele pecúlio, sim, meu pai cortou qualquer ajuda financeira, e minha mãe apoia. Eu tenho que cortar os cabelos, colocar roupa decente para procurar emprego. A formatura do ensino médio, bah, isto é piada, brother, bobagem, não aprendi porra nenhuma, mas não digo nada ao professor de Literatura, sabe, o carinha fica me olhando entusiasmado, Você esta sendo aprovado só com notas máximas, e arregala os olhos, e baixo minha cabeça sorrindo insosso, quero colocar meus fones nos ouvidos, só isto. Se eu pudesse voltar atrás dava um jeito de ficar reprovado, assim... bom, não digo nada, também nesta escola nem tive amigos, meus amigos são de outro planeta, alias, de um mundo em que me ancho, olha, hahahahahahaha, se o professor ouve eu usando esta palavra, “ o mundo em que me ancho”, depois falo pra ele. Depois quando, chuto esta pedra pra longe, caralho esta musica me faz arrepiar até os cabelos do saco, One, Metallica, queria cantar ela para Caroline. Nunca mais vou ver estes babacas do colégio, nem Caroline também, e ela nunca me enxergou, estará chorando potes por ter ficado de recuperação?, mas acho que não fica reprovada, não, ela é bonitinha, os professores sabe cum’é, eu que sou feio, desengonçado e fora do “ritmo” é que tenho que mostrar capacidade, hem. Não professor, carona no seu Vectra, é Vectra – mas por que o senhor quer me dar carona? – então somos amigos? Ele me olha eu sei, coloca uma musica estranha no som do carro, assim tipo musica de comercial de colchão, sei lá, musica cheia de plumas, e enquanto vai devagar no volante me olha com seus olhos macios, seu cabelinho penteadinho de lado, a roupa social bem elegante, e perfumado dentro daquele auto, a musica de comercial de colchão, porra quero colocar meus fones, ouvir meu Thrash, chego levar a mão até eles em volta do meu pescoço, e não consigo entender o que ele me pergunta, se eu gosto daquela musica, Que musica é esta, pergunto, e ele ri, me volto para a janela, estou vendo as arvores e os postes fugir, outros autos passar, mas o senhor não ia só me dar uma carona, não, disse que queria me levar no cinema, aceitei, saca o filme dos Titãs, lutas dos deuses com os homens, então, estava louco para ver este filme, mas o que ele podia querer comigo?, sou feio demais, tantos carinhas bonitos e descolados na sala mesmo, fortes, e eu sou desengonçado, magrelo, vesgo, uso óculos, este cabelo grande todo alvoroçado. Talvez ele seja solitário, penso, enquanto ele leva uma mão à caixa de lenços e sem largar a outra do volante, passa sobre a testa, Calor não, me diz num sorriso, e pede que eu saia da janela e feche o vidro que ele vai ligar o ar. Obedeço desconfiado, ele me olha com um sorriso simpático, eu vou sentindo o conforto do ar, Bem melhor não, me pergunta, balanço apenas a cabeça, cruzo minhas mãos ao meio das pernas abaixo a cabeça, este cara tá me olhando esquisito, pô. Mas no cinema tudo fica legal, sabe, ele traz pipoca, refrigerante, compra os ingressos, num bom local, cruzo uma perna sobre o joelho, fico relaxado na cadeira, esqueço o saco de pipoca entre as pernas e me concentro no filme. Gostou do filme, me pergunta quando fomos saindo do cinema, e digo, Pô adorei, mano, desculpa, senhor, e ele ri enrubescido, toca no meu ombro, Tudo bem estamos fora da sala de aula, pode ficar a vontade, diz do seu modo de falar ainda mais delicado, as mãozinhas como asinhas voando, abaixo a cabeça, escondendo o riso, e entro no carro, mas logo digo, Já tá mais fresco, acho que não precisa ligar o ar, e ele ri, mas diz se eu não gostaria de ir até o apartamento dele, é logo aqui perto, vai informando, hum, penso, penso, mas não respondo nada, e quando vejo estou subindo os degraus que levam até o apartamento dele. O prédio tem uma portaria que parece de hotel, o porteiro, cabeça chata, baixinho, cumprimenta ele, Boa noite seu Sérgio, e fica me olhando, me olhando, ih, tropeço num degrau encabulado, este paraíba deve estar achando que sou macho dele, será?, mas o apartamento é pequeno, confortável, estante com livros, TV tela plana na parede, notebook em cima de uma mesa com tampo de vidros, objetos estranhos, acho que esculturas, quadros na parede, lâmpadas dentro do teto meio acesas, fico admirando tudo, me esquivo para não tropeçar em nada e não deixar cair, tem um vaso de planta atrás de mim, e escuto a voz dele vindo da cozinha, Olha vou fazer uma limonada suíça para gente, e escuto o barulho do liquidificador, a casa dele tem aromas de flores, sei lá, casa de fresco, vou pensando, sento no sofá, olho o som na estante dos livros. Som maneiro! Mas fico encolhido na minha, admiro a estampa da minha camisa preta do Iron Maiden, que este cara quer comigo, e lá vem ele com dois copos numa bandeja, uma travessinha com bolinhos cortadinhos em cubos, deposita sobre a mesinha a minha frente, senta-se ao meu lado, diz para que eu pegue a limonada, e fica me olhando beber, provar do bolinho, do meu jeito encabulado, Legal seu apartamento, digo para ele, e ele suspira, afrouxa o colarinho da blusa, pega o copo com suco, Eu reparei que você sempre foi um rapaz tão isolado, Pablo, me diz, por que, quer saber, e sacudo os ombros, murmuro de boca cheia, cuspindo alguns farelos, que sou feio, cabeludo, e roqueiro, Não, não, você não é feio, vai me dizendo ele assim, a mão delicada tocando meu ombro, sacudo o ombro, ele afasta a mão, mas não olho a reação dele. Seus pais estão te esperando, me pergunta, de pé a minha frente, e digo que sim, depositando o copo vazio de volta na bandeja, deixo escapar um arroto, peço desculpa, Bobagem é normal, e vai até a janela, fecha as cortinas, liga o ar condicionado. Deve ser legal morar aqui sozinho, digo meio atrapalhado, encolhido no sofá, e ele junto ao som liga então o aparelho, me diz que é um pouco solitário, faço um muxoxo desagradável pela musica, ele ri, pergunta se eu não tenho um CD dos meus rock brabo ai na mochila, e eu coço a cabeça, fico rindo constrangido, Rock brabo, não, digo, mas tenho um CD de um Thrash bom aqui, Metallica. E ele deixou que eu colocasse, mesmo senti o hálito dele bafejando na minha nuca, me deu uma cocega esquisita, este cara tá me cheirando. Bom, mas tocando Master of Puppets na casa do professor, expus minha língua, fiz o sinal de Metal com as duas mãos, mostrei a ele como se toca guitarra imaginaria, e o carinha se amarrou, bateu palmas, talvez esteja me achando um bocó assim como meu pai me acha, mas dai, pode achar, eu sou o que sou, não pretendo impressionar ninguém tentando ser algo que eu não posso ser. Você me divertiu, diz ele suspirando, indo a cozinha com a bandeja e voltando com mais limonadas, e fico pensando naqueles papos neuras com Thiago e o Charles, sobre pozinhos, e olho cismado para o suco, assim de pé, ele vai até o quarto, vejo a luz acesa, a porta entreaberta, Vai se animando ai fofinho, vou tomar um banho, e te levo para casa, e me aparece assim a minha frente, com a toalha sobre os ombros, me pega pelo pulso, me pergunta se eu não quero ficar para dormir, hem, rio, sem graça, Não, não cara, dormir aqui, onde?, ele me aperta o queixo, puxa minha barbicha crespa, Adoro este seu jeito rebelde, atrevido, me diz, e tira o relógio do pulso jogando em cima do sofá, me olha preguiçoso assim, um jeitinho de menina apaixonada, ih, sai para lá mané, vou pensando, mas me vai abrindo uma vontade de rir, e quando ele se tranca lá no banho, eu aumento o som, porro mesmo, devo estar sacudindo as paredes, ele vem com os olhos arregalados rindo, de bermuda e camiseta, mas bem vestido, todo cheirando a perfume feminino, Assim não, rapaz, diz num modo risonho abaixando o som, Assim estarão me expulsando do prédio amanhã mesmo. Abaixo a cabeça, cismo com a corrente presa na cintura da minha calça jeans meio rasgada, surrada, ele se aproxima, Não quer tomar um banho, se refrescar, vai me dizendo, pode ficar a vontade, Eu tenho que sair fora mesmo, mas entristeço, por que acho que seria bom ficar ali no apartamento dele, ouvindo Thrash alto, bebendo, quem sabe colocando uns vídeos do Big Four por exemplo ali naquela tela plana colada a parede, mas não, não, o carinha é. É. Sabe... Desculpa, mas tenho que ir, vou dizendo confuso, procurando a porta, ajeitando a mochila em minhas costas, mas ele me pega pelo ombro, Não, espera, eu vou te levar até em casa, mas tem certeza que não quer ficar, você liga avisando a seus pais, hem, eu tenho uns filmes ai hein, já vi que você gosta de épicos. Não seria bom, confesso constrangido, e ele quer saber por que, desconfia da amizade dele, da boa intenção, respondo que não sou criança, hem, não tou pensando isto, sou homem feito, ele pode ficar sussa que não rola esta de sedução de menor, de assedio sexual, não sou destes, rio, ele ri, ruboriza, leva as mãos a cintura, Mas menino você tá achando que eu..., Não tou achando nada, professor, digo assim me encolhendo para o meu canto, só quero deixar o senhor... bom, tranquilo sabe cum’é, e ele sabe ri todo, aperta meu queixo, sou um pouquinho mais alto que ele, mas como ando muito desengonçado pareço mais baixo. Fica aqui, teima ele, e eu não sei mais o que dizer. Ele quer companhia hem, acho que é isto. Tá solitário, eu também, mas eu quero a companhia dos malucos como eu, se pudesse de uma garota, embora eu não soubesse o que fazer com ela, tá bom, vou ficando, me sento, olha pode botar um filme ai se quiser, ele se anima, diz que seu quiser ir ele me leva de carro. Ah cara, é bom ter companhia, o broder quer isto. Ele é gay, veado, acho que sim, mas ele não vai tentar nada se eu não deixar, é meu professor. É preciso valorizar as amizades, ele ficou ali agachado junto à prateleira da estante, escolhendo o filme, falando, falando, rápido, animado, afoito, eu apenas me encolhi, vaguei na musica do Metallica, no som que terminava, ia entrar um filme, talvez eu aceitasse aquele sofá ali para me deitar, dormia, para que penar na cara feia do meu pai, no tom aborrecido da minha mãe, nos meus primos chegando no domingo, eu preso no quarto, mas eles batendo na minha porta, eu tendo que sair para usar o banheiro, para comer, mas procurarei os amigos, sim, andarei a esmo assim pelas ruas, mas agora assisto um filme ao lado deste carinha, ele me fala sobre detalhes do filme sim, eu não prestei atenção, mas gosto do Jack Sparrow, Os piratas do Caribe, bom ele quer saber se eu quero comer, no intervalo entre um filme e outro, ele vem com pizza, mas limonada suíça, abacaxi com hortelã, tenho vontade de saber se não tem refrigerante, mas nãos pergunto nada, tá bom, sento mesmo no chão, o tapete é macio, a atmosfera é refrescante pelo ar condicionado, aroma de flores sei lá, tudo tão diferente, bocejo no terceiro filme, pelo intervalo ele havia me falado da família dele, sim, viviam todos em Rio Dourado, se eu sabia onde ficava isto?, não, não tenho ideia, É aqui no Rio mesmo, interior, me informou num grande suspiro, voltando com uma bandeja com sanduiches de peito de peru, que me foram estranhos ao paladar, não fala direito com o pai, mas a mãe tem saudade, ele manda dinheiro para ela, e havia uma lacuna ai que ele preenchia com um grande suspiro, e eu dava a ideia de um próximo filme, disse tão rápido que também não me dava bem com meu pai, nem tampouco com minha mãe, sou filho único do casamento dos dois, tenho dois irmãos mais velhos e casados filhos só do meu pai, e uma irmã, também casada, filha só de minha mãe, sou temporão, repito o que ouvi da minha avó, e nos calamos prestando atenção ao filme. Bom, eu acabei dormindo por ali, me recusei ao banho, ele pareceu, bom pareceu, não se importar, e forrou o sofá para que eu me deitasse, e despi a camisa, afrouxei o cinto da calça, pois recusei o short que ele me ofereceu, e ele agachou-se junto a mim, em seu pijama xadrez, com um ar de pai, me disse, Vou deixar o ar ligado, assim você fica confortável, e se quiser deixar a TV ligada, recolhi a minha blusa do Iron que larguei no chão, admira a estampa, sorri, dobra a camisa, coloca ela com carinho sobre a mesinha no centro da sala, e eu me ajeito entre as cobertas, pego mesmo o controle, ele acena com os dedos, me dando boa noite, Sonhe com os anjos, e eu digo fazendo \m/, vou sonhar com o Eddie, Quem é Eddie, me pergunta ele de repente franzindo a testa, intrigado, me pego a rir como bobo, O monstro da camisa que o senhor estava vendo agora professor, e ele ri, fazendo uma careta divertida, apaga a luz, mas deve me achar bocó, hem, não, ele não me acha bocó não, vou pensando confortável naquele sofá, Que apartamento maneiro, podia ser meu, e ligo a televisão, abaixo o volume, tem canais a cabo, opa!, olha só um canal de filmes eróticos, mulher nua, boazuda, poxa, quero passar uma semana aqui, neste apartamento, ele não vai mesmo mexer comigo, e acho que vai deixar eu ouvir meu som, bom mas assim arranho a privacidade dele, mas foi ele que insistiu para que eu ficasse, mas acho que não posso contar isto para os meus amigos, sei lá ninguém vai ver assim desse modo eu fiquei aqui dormindo no sofá, vendo os filmes pornôs da TV a cabo dele enquanto ele dormia sossegado lá no quarto dele ele pode estar se masturbando pensando em mim será? Não, não, ele dobrou minha camisa nos gestos que as mães fazem embora minha mãe faça diferente arreliada sei lá mas ele fez de um modo que parecia mãe fazendo até mesmo aquele franzir de testa o bico de careta então mães fazem assim embora a minha mãe não faça assim minha mãe trabalha fora é ocupada e é por isto, mas hum, meu pau tá duro, tou sentindo ele por baixo da calça por baixo da coberta, é melhor tirar deste canal de filme sexy sabe não quero ficar de pau duro aqui vai que o carinha acorda sei lá eu me levanto e ele... hahahahahaha é melhor dormir, para isto ligo o som baixinho, me levanto na ponta dos pés, mas sei que meu pênis tá duro ainda, que merda, ligo o som, porra, abaixa, abaixa, ele vai acordar, tem que acender a luz... Aconteceu alguma coisa, me pergunta o professor aparecendo em pijama, olhos atentos, um livro na mão, sorrindo, me mostro encabulado, olhos baixos, cubro o volume entre as pernas com as mãos cruzadas mas que pretensão lá tenho volume tanto assim hahahahaha, Desculpe fiz bagunça, tentei ligar o som. Ele me sorri, liga, diz, mas baixinho, é tarde, Sim senhor, digo como um moleque pobre coitado, e volto para o sofá sob a coberta, vou dormir mesmo, tou morgado, assumo um tom mais firme. Será que foi a mão dele querendo se aproximar para um afago na minha cabeça àquela sombra na penumbra em que mesmo já havia fechado os olhos?, pode ser a folha da planta, mas a planta no vaso está tão longe de mim lá junto à porta, tiro os óculos definitivamente, fecho os olhos no silencio e na semiescuridão, um suspiro profundo, dele, do professor, um suspiro macio, ele queria acariciar minha cabeça, poxa, será que ele vai tentar, mas acho que agora é sonho, estou subindo uma alameda íngreme, tipo penhasco saca, esta ventando, meus cabelos voam ao vento, estou de sobretudo, não sinto frio, mas sinto o sopro do vento, e brumas vão se desfazendo ao entardecer cinza e deixam mostrar ao topo do precipício que eu subo um castelo, sim um castelo, é lá que está ele, Ronnie James Dio, posso ouvir a voz dele atrás de um ronco de moto, a potencia, o timbre pesado dos rifes de uma guitarra, vou escalando e a certeza de encontrar o senhor do castelo pela musica conhecida cada vez mais próxima, mas antes que eu chegue ao castelo me acordo e me assusto ao não reconhecer – por meros instantes embora – as paredes limpas e claras que me cerca.