PINTURA ANTIGA

Os momentos eram raros. Sempre raros. Bastava vivê-los mesmo tão intensos, presos na reclusa timidez interior buscando, perguntando, catando respostas. E eram momentos tão evanescentes como os sonhos.

A lâmpada acesa iluminava pobremente o cômodo atulhado de manequins, cabides em forma de corpos. O velho ajeitava, sobre estas formas dispostas no espaço, os ternos, as sobrepelizes, sobretudos, capas, vestidos, mesmo confortava num cabideiro qualquer, junto a uma janela fechada, estolas e cachecóis. O aroma que recendia era de mofo e pano novo nascendo. Linhas coloridas, carretéis vazios ocupando espaços aqui e ali sobre as bases das maquinas.

Ewald aproximou-se trazendo a bandeja com o bule de chá e duas xícaras. O velho acudiu para que o garoto depositasse a bandeja num aparador próximo as duas cadeiras de espaldar alto uma quase de frente a outra. Ele ocupava uma, e o garoto devia ocupar a outra. Acudiu-o como quem espera a eminência de um desastre. O velho fez a vez de servir o chá sobre as xícaras, e mostrou ao neto a cadeira que ele devia ocupar.

_ Ewald já é um rapaz – foi dizendo o velho levando cuidadosamente à xícara a boca – já fez seu bar mitzvah, logo terminará o Ginasial e estará prono para ingressar numa faculdade – foi o ancião num tom de um sorriso satisfeito na face marcada pelos vincos da idade.

O garoto concordou olhando para xícara entre a concha das duas mãos, declarando numa voz discreta:

_ Quero me formar em direito como o Franz.

_Franz, o filho do comerciante Hermann?

_Sim, avô – respondeu excitado – ele mesmo – e provou do chá, sentindo o coração já agitado, o rosto em brasas, e o chá quente seria oportunismo para confundir a malicia – se fosse possível – do velho.

_ Franz parece um rapazinho muito mimado, Ewald – disse o velho com certo desprezo no tom de voz seco – não gosto que se relaciones com ele. Sinceramente! É segundo o próprio pai dele, é um rapaz preguiçoso e mal criado.

_Não acho vovô – retrucou Ewald com certo ressentimento no tom de voz – Franz é sensível, bondoso, e muito inteligente e esforçado.

Esfregando a mãos o velho começava a considerar, como quem mastiga, que já era tempo de voltar a acender a pequena lareira. O frio arrepiava mesmo com as janelas fechadas para a rua, para a noite boemia e agitada da Cidade Velha.

_ Franz tem aptidão para Literatura – disse Ewald num suspiro demorado, perscrutando os olhos o movimento do velho, das próprias coisas que o cercava ali – Ele me emprestou aquele livro do Charles Dickens – disse de súbito, como se fosse importante lembrar, como se para o velho aquele fato tivesse a mesma relevância que teria para os garotos do Ginásio. Seu rosto pequeno e pálido ruborizou, na verdade incendiava-se, e era oportuno continuar com a fumegante xícara de chá abastecida, próximo ao seu rosto.

O velho alfaiate judeu pouco achava interessante Literatura. Era dessas almas cuja sabedoria se alicerça nas contas exatas e juízos científicos, nas habilidades mecânicas que garantiam o lucro, embora pouco sorvesse disso, curava uma pequena importância que tratava com sovina acuidade dia a dia.

Aquele enorme casaco de lã grosseiro estava sobre o espaldar da cama. Ewald o encontrou. Seu avô vestia-o durante todos os dias de inverno rigoroso. Recordou-se como o assustara certa vez aquele casaco de lã, quando talvez fosse um menino muito menino. O casaco tinha uma aba alta, e o velho gostava de usá-la suspensa, dizia que era para aquecer a nuca.

Acendeu uma lamparina a óleo junto à janela fechada. Escutou algo se mexendo entre as ruínas do ateliê do velho que foram parar ali.

O casaco de lã era azul, cheio de bolsos e com botões de acrílico também azul perolado. Havia vestígios de velhas migalhas, mesmo farpas de algodão pela lã invencível do que parecia mesmo uma velha armadura. O próprio ancião judeu dissera ao neto que aquele casaco pertencera ao seu avô, portanto trisavô de Ewald. E por que o velho o depositara ali? O chá não conseguira seu intento, foi o rosto de Ewald voltando o rubor e descendo a palidez na penumbra do cômodo simples. Sentia um medo da presença daquele casaco avoengo ali sobre o espaldar. A armadura velha de lã estendida ao meio sobre o espaldar da cama apresentava seus botões, seus bolsos, e seus vestígios de ferocidade humana em forma de farelos ainda presos sobre o que podia ser seu pelo.

O sono não veio como quem aconchega, pareceu mais uma perturbada vigília, que Ewald não sabia mais se acordado ou dormindo dentro de um sonho. A armadura de lã brilhava bem junto aos seus pés, na escuridão azulada da noite, num brilho de um azul doentio e forte. Aos poucos, sem saber se acordado ou dentro de um sonho, o garoto parecia querer balbuciar algumas palavras em defesa ou resposta a uma ofensa ou impropério que era ditada num forte e carregado sotaque alemão. Pareceu enxergar Franz em meio a uma neblina, tiritando de frio, sentado a um banco de praça, mas outra hora parecia ver um garotinho magricela, bem magricela, de enorme cabeça chorando a um canto de um quarto ensolarado. O que tinha em suas mãos?, e pareceu estender a própria mão para alcançar o que o garotinho raquítico segurava, mas uma mão pesada e grande tomou-a do menino, e por um relance viu que era apenas o casaco de lã avoengo, mas mergulhava-se novamente na neblina – que se não sabia manha ou entardecer, podendo mesmo ser noite – e Franz tiritava de frio, com seu corpo magricela nu, usando apenas a roupa de baixo, cruzando os braços para tentar se aquecer. Ah, mas parecia longe, longe, o casaco avoengo podia aquecê-lo, mas a armadura de lã era de andar com suas mangas longas enfiadas em seus bolsos, ostentando seus vestígios de animalidade pelo seu corpo têxtil. “Voltes para casa”, ordenou uma voz seca de arrastado sotaque alemão junto com o movimento da armadura de lã. Não queria obedecer, afinal Franz estava seminu no frio e na escuridão, mas no que tentou dar um passo deparou-se com um abismo e chocou-se ao garotinho magricela e cabeçudo naquele canto de quarto ensolarado. O garotinho levantava olhos pisados de lagrimas, cabelos secos parecendo tosados, e uns pés pequenos, mas irregulares, sujos como a parede manchada pela luz solar avermelhada chocando-se contra aquele canto de parede que ele pareceu ainda mais se refugiar.

Despertava? Sim despertava, reconhecendo aos poucos as paredes manchadas pelas sombras do dia que clareava, e antes que o sopro da manhã o despertasse, com o chamado rouco da voz do velho, ele levantou-se, sonolento, mas levantou-se, e percebeu que o casaco permanecera lá sobre os seus pés durante toda noite.

Rodney Dos Santos Aragão
Enviado por Rodney Dos Santos Aragão em 29/06/2012
Código do texto: T3752215
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