-----------------------
“Meu amor é teu.
Mas dou-te mais uma vez.
Meu bem, saudade é pra quem tem”

(Meu Amor é Teu – Marcelo Camelo –
CD: “Toque Dela” - 2011)
                   ----------------------------------------------------------------------------------
 
 
1
 
     As rodas tortas e bambas de metal, cobertas por uma camada de borracha improvisada e já gasta pelo uso, dobraram a esquina na maior velocidade possível. Quicavam sobre os paralelepípedos da calçada, fazendo um som barulhento da ferragens que atraía a atenção dos demais pedestres, enquanto esses tentavam desviar daquela pessoa apressada. Guiando o antigo carrinho de pipoca, agora adaptado para vender bexigas coloridas, estava Seu Ramirez, um senhor de sessenta e sete anos, mas com tamanho vigor que fazia inveja em muitos jovens do bairro.
 
     Suando muito devido ao esforço, afinal, estava correndo há uns três minutos, ele se esforçava para chegar ao seu destino um pouco antes da hora inicial. Pretendia chegar ao portão da escola São João Batista pelo menos uns cinco minutos antes das cinco horas da tarde. Precisava chegar um pouco mais cedo, pois ainda teria que inflar os balões com gás hélio, usando o pequeno botijão acoplado à lateral do carrinho.
 
     Seu Ramirez tinha a aparência daqueles vovôs de desenho animado. Gordinho, com uma careca cercada por fios brancos nas laterais, um bigode branco muito espesso, e óculos grandes que lhe cobriam os olhos chegando até a base de suas sobrancelhas grisalhas, atraía a atenção das crianças com facilidade. Morava ali perto da escola, mas não tão perto ao ponto de não se cansar na caminhada. Mesmo com toda sua disposição, todos os dias ele vendia balões nas portas das escolas do bairro de Botafogo, porém, naquele dia, precisava estar naquele lugar.
 
     Ao dobrar a esquina em que começava a rua da escola, já pôde perceber o grande número de carros se amontoando na rua estreita. Os pais começavam a chegar para buscar seus filhos, e logo, logo o sino soaria anunciando a hora da saída. Imediatamente Seu Ramirez começou a encher suas bexigas. Com uma velocidade impressionante, colocava cada uma delas no birro do botijão, e assim, com o passar de alguns segundos, elas iam ganhando formas.
 
     Passados dez minutos, sobre o carrinho sem cor e antigo formou-se uma enorme nuvem de bexigas coloridas. Eram tantas, que faziam sombra sobre Seu Ramirez e seu carrinho. Aos poucos, as crianças foram saindo da escola do primeiro dia de aula após as férias de julho, e aquela nuvem de cores os faziam se desligar de tudo ao redor, e apenas admirarem aquele simples, porém belo espetáculo. Muitas delas apontavam, outras apontavam e choravam. Outras apontavam, choravam e se jogavam no chão, tentando convencer seus pais de comprarem pelo menos uma daquelas maravilhosas bexigas.
 
     Mas para Vitória, não tinha tanta graça. Fora a última a sair da sala de aula, o que já estava preocupando sua mãe, Andressa, uma dermatologista conceituada no bairro, mas que tinha pouco tempo para aproveitar ao lado da filha. Encostada na porta de seu carro zero, ela falava ao celular com um revendedor de cremes contra acnes enquanto tentava fazer contato visual com sua filha. Logo esse contato ocorreu, e, sem deixar de falar ao telefone, ela ergueu o braço esquerdo e balançou-o junto com o molho de chaves que segurava. A menina apenas ergueu os olhos e sorriu timidamente. Sua professora deu-lhe um beijo na testa e a acompanhou até o portão.
 
     Vitória era uma criança linda. Branca como leite e com cachinhos loiros que lhe davam aparência de princesa de conto de fadas, fazia sorrir todas aquelas pessoas que cruzavam seu caminho na rua, contagiados pela sua beleza inocente, mas assim mesmo, triste. Sua mãe tentava mantê-la ocupada com aulas de balé, natação, brinquedos, mas a menininha de apenas sete anos não se alegrava tão facilmente. Ela gostava apenas de ficar na janela do apartamento observando a rua lá embaixo, do alto de décimo sexto andar. De sua janela podia ver a praia de Copacabana e sentir a brisa do mar que invadia sua casa após as seis da tarde. Sentia prazer em estar ali, mas sabia que logo aquilo acabaria, pois teria que se mudar outra vez junto com sua mãe, por causa do trabalho dela.
 
     Moravam em Copacabana há dois meses, e só agora a menina começava a estudar novamente. Teria que começar novas amizades, se acostumar com novas professoras, e esperar que sua mãe viesse com a notícia de que teriam que se mudar novamente. Por isso, quase sempre a menina não tinha vontade de sorrir, nem de brincar. Tinha medo de se apegar e ter que ir embora novamente. Além de tudo, tinha saudades do pai. Não o via há dois anos, desde sua última viagem. Sabia que pilotava aviões, e também quase não tinha contato com ele antigamente. Porém, quando estavam juntos, tudo era festa. Brincavam, saíam, se divertiam, e não era só disso que Vitória sentia saudades, mas de todas as história que ele contava, e claro, de sua companhia. Sentia-se segura ao lado dele, mas um dia, sem ao menos se despedir, ele foi embora.
 
     -E aí, querida? Como foi o primeiro dia? – perguntou Andressa desligando o celular e o colocando dentro do bolso de seu paletó.
 
     -Foi muito le... – começou a explicar a menina, sendo interrompida pelo toque do celular da mãe.
 
     De longe, Seu Ramirez observou a cena. Ignorando todas as crianças que o cercavam, retirou do meio de todas as outras bexigas, uma em forma de coração, bem vermelha, e saiu na direção da menina que observava a mãe com olhos tristes. O senhor foi se aproximando, desviando dos pedestres que lotavam a calçada, até que chegou a Vitória. Andressa estava de costas para a filha, e nem o viu se aproximar.
 
     -Olá, mocinha! – disse ele estendendo o balão na direção dela. – Que linda é você!
 
     Vitória corou e se virou, segurando-se na calça da mãe. Vez o outra virava a cabeça para confirmar que aquele senhor havia ido embora, mas ele lá estava, com aquela bexiga linda apontada na sua direção.
 
     -É para você, menininha! Um coração para você dar um sorriso! Só vou te dar, se a senhorita der um sorrisão pra mim!
 
     Vitória continuava envergonhada, mas ter aquele balão em mãos seria algo ótimo. Um enorme coração, vermelho e flutuante. Queria sorrir, mas sua mãe poderia brigar. Não falar com estranhos era um assunto frequente na mesa de jantar, após um dia inteiro na escola. Falavam do dia inteiro, como fora, o que fizeram, e a conversa sempre terminava com “NUNCA FALE COM ESTRANHOS”. A menina era obediente, mas aquele balão...
 
     -Um sorrisinho só! É tudo que quero. – insistia ele, com um sorriso surgindo por debaixo do bigode.
 
     Sem se aguentar, finalmente as bochechas de Vitória se entregaram e deixaram escapar um sorriso contagiante. Seu Ramirez olhou par aquele sorriso e lágrimas surgiram de seus olhos. Era como se reconhecesse aquilo. Era idêntico. Um sorriso ainda mais largo se fez surgir nele, que, cumprindo sua palavra entregou o balão à menina. Vitória o segurou com o mesmo sorriso. Pelo barbante amarrado à base, ela o puxava para baixo e para cima, as vezes o segurando com as duas mãos e depois soltando-o como se fosse deixar tocar o céu.
 
     -Ele chega no céu, moço? – perguntou apontando para cima com seus dedos gordinhos.
 
     -Oh, sim. Uma vez soltei uma bexiga dessas e um anjo veio me devolver. Ele disse que sabia que era meu, pois sempre observava eu enchendo os balões. – respondeu ele, agora se ajoelhando, mas logo se levantando ao notar que a mãe da menina havia acabado de falar no celular.
 
     -Quem te deu esse balão, minha filha? – perguntou dando um peteleco no coração inflado.
 
     -Ah, mãe. Foi o velhinho ali... – ao apontar para onde estava Seu Ramirez, não havia mais ninguém.
 
     -Que velhinho, filha? Olha o que a mamãe fala todo dia de falar com estranhos, hein! Não se esqueça do velho do saco!
 
     -Ele era bonzinho, mãe. Ele me deu o balão, e disse que os anjinhos devolveram pra ele um balão também. Ele é bonzinho aquele velhinho.
 
     Andressa sorriu, e conferiu as horas na tela de seu celular. Olhou ao redor da rua como se procurasse alguém, como se desconfiasse de algo. Deu a mão à sua filha e a colocou no banco de trás do carro.

 
2
     Dentro do carro, enquanto aguardava o semáforo liberar a passagem, Andressa abriu a janela da porta de trás, o que acabou pegando Vitória de surpresa, e a fazendo sem querer, soltar o balão. Com olhos marejados, a menina observou o coração ir subindo na direção do céu e desaparecer dentre as nuvens. Mas é claro que Andressa não reparou isso.
 
     -Filha, olha a mamãe tem uma coisa chata pra te contar...
 
     -Já sei, vamos mudar de casinha de novo? – perguntou sem parar de olhara para o céu.
 
     -Não... Não... Ainda não, filha. É outra coisa.
 
     Vitória direcionou seus olhos castanhos para sua mãe, e lhe deu atenção, curiosa para saber qual seria a chata novidade.
 
     -Amanhã, a mamãe vai começar a trabalhar em outra clínica, junto com o tio Paulo, lembra dele?
 
     -Aquele que soltou pum no meu aniversário?
 
     -Isso, ele mesmo... Você lembra, nossa! – confirmou sorrindo.- Então, eu e o tio Paulo vamos trabalhar numa clínica nova, e eu vou sair tarde de lá... Bem, enfim, a mamãe não vai mais poder te buscar na escola. Eu contratei uma van bem legal, que leva um monte de amiguinhos para casa. Depois você fica com a Mirtes, e ela te leva pro balé, e pra natação. Olha que legal!
 
     Vitória não demonstrou alegria com a notícia, mas não gostava de ir contra as ideias de sua mãe, até porque, não teria como mudar essa decisão. Apenas sorriu e voltou seus olhos para o céu novamente, acreditando que dali, entre as nuvens, surgiria um anjinho trazendo de volta seu coração.
 
     Com os olhos ainda marejados, Seu Ramirez ficou observando ao longe, o coração que acabara de presentear Vitória subir na direção das nuvens e sumir entre elas. Voltou então seus olhos decepcionados para as crianças que esticavam suas mãozinhas na sua direção, oferecendo-lhe dinheiro pelas bexigas que sobraram. Ele então, ignorando as notas que lhe esfregavam no corpo, foi dando para cada uma um balão, e não cobrou por eles.
 
     Feito isso, ele fechou o carrinho e voltou para casa. O senhor morava numa favela ali perto. Morava no lugar há pelo menos sete anos, e no começo fora difícil se acostumar com as condições. Morava num barraco de tijolo, sem acabamentos e com apenas dois cômodos. Ali, vivia de bicos, consertando encanamentos, fazendo serviços de pedreiro, vendendo coisas. E dia sim, dia não, ia até o cemitério de São João Batista, no próprio bairro de Botafogo, onde se sentava de frente para uma lápide, e ali permanecia por até uma hora. Ficava lá sentado, em dias de chuva ou sol conversando com túmulo. Após isso, voltava para casa, pensava um pouco mais deitado sobre sua cama feita de tijolos e resto de travesseiros, até que adormecia até o dia seguinte.
 
      Nesse dia em que dera a bexiga de coração para Vitória, era para Seu Ramirez ter ido ao cemitério. Era dia sim. Mas preferiu não ir. Estava exausto, e se sentia bobo por estar triste ao ver o coração vermelho subir para o céu. Preferiu ficar em casa e dormir.

 
3
    Durante duas semanas Seu Ramirez vendeu balões na porta da escola São João Batista. Por duas semanas, ele deu balões à Vitória, sempre tentando não ser visto pelas pessoas, e sempre com a frase amigável: “É para você, menininha!”. Sabia que nos dia de hoje, a maldade habitava a mente das pessoas, e assim, logo poderiam o acusar de aliciamento, o que não era a verdade, mas até que se provasse o contrário, ele já teria que estar longe do bairro.
 
    Ele sentia a necessidade de ver a menina. A ligação entre os dois era forte. E Vitória, com o passar desses dias, também foi criando simpatia com ele. Passava o dia todo pensando na saída, quando aquele velhinho simpático apareceria do nada, e assim, lhe entregaria o coração mais vermelho de todos. Porém, a menina se acostumou à sempre deixar que a bexiga voasse para o céu. Sempre que a van da Vera, a mulher que sua mãe havia contratado para leva-la de volta para casa, parava no sinal, Vitória abria sozinha a janela traseira e soltava o coração. E o observava subir.
 
     Porém, mesmo vendo que a menina se livrava deles, e ficando triste por isso, Seu Ramirez não desistia. Fazia planos, e no dia seguinte, corria com seu carrinho barulhento até a porta da escola, e nessas duas semanas, todos os dias, presenteou-a com seus corações vermelhos. E contava os minutos até vê-los surgirem mais a frente, e desaparecerem no céu.
 
     Foi então que, na semana seguinte, Vera chegou um pouco mais cedo na escola, e ficou observando a movimentação do homem. Aquele velhinho não costumava a ficar ali no semestre anterior, aparecera do nada com aqueles balões. Não achou que fosse motivo suficiente para desconfiar de algo, porém, ao notar a maneira como ele parecia procurar por alguém, e a felicidade de seus olhos ao verem a pequena Vitória, ela desconfiou.
 
     Nesse dia, Vera não permitiu que ele se aproximasse. Ficou rente a grade do portão da escola, e assim que eles se abriram e pôde ver a menina se aproximar, parou ao lado dela e ali ficou até chegarem à van. Seu Ramirez “murchou”. Seus ombros desceram decepcionados, e ali, parado ele observou a van se afastar. De dentro do veículo, Vitória também podia vê-lo, e não estava menos chateada.
 
     -Tadinho dele... – sussurrou ela.
 
     -Tadinho de quem, Vitória?
 
     -Do velhinho dos balões. Ele é bonzinho. Ele dá balão de coraçãozinho, e nem pede um Real.
 
     -Você conhece esse velhinho de onde, Vitória? – perguntou Vera enquanto dava partida na van.
 
     -Num sei. Ele apareceu. Aí me deu um balão. Todo dia ele dá um balão pra mim. Aí eu solto eles, e eles “vai” lááááá pro céu, lá no alto. Eu acho que os anjinhos pegam eles. – fantasiou a menina.
 
     Vera se calou no momento, porém mais tarde, voltara à casa de Andressa, e lhe contou a história que ouvira da menina. Andressa pareceu pouco surpresa, como se soubesse o que tinha acontecido. Conversou um pouco mais com Vera, e então, se despediu alegando ter que estudar algumas apostilas.
 
     Andressa assim que se livrou da motorista, foi até o seu quarto e abriu uma gaveta no fundo de seu armário. De lá, tirou um álbum de fotografias antigo e empoeirado. Sentou-se na beira da cama de casal e abriu o álbum. Abriu em páginas especificas, páginas onde se via fotos de Vitória recém-nascida no colo dela e de seus pais. Fotos de festas juninas, de festas de aniversário, e sentiu vontade de chorar. Naquele momento, Andressa percebeu em como estava distante de sua filha, e de como o tempo havia passado. Ontem Vitória apenas balbuciava e sorria com qualquer coisa que lhe era dito. Mas nos dias atuais, ela não se lembrava de uma gargalhada espontânea de sua filha.
 
    Ao abrir numa outra página, parecendo ter se esquecido do que veria, Andressa fechou o álbum e desabou em lágrimas. Abraçou o álbum e o abriu na mesma página. Era a foto de Vitória, apenas um bebê, no colo de um homem muito bonito. Assim, abraçada ao registro dos momentos mais felizes de sua vida, Andressa adormeceu.
 
4
     Seu Ramirez acordou mais cedo naquela quinta-feira e resolveu ir ao cemitério. Sentia um aperto no peito, e sabia que aquilo se devia às duas semanas que não o visitava.
 
     Tomou um banho rápido, penteou os poucos cabelos e o bigode, e após isso, limpou as lentes de seus óculos. Ficou se encarando no espelho, e rapidamente, perdido em pensamentos, pareceu escutar vozes. Sabia que vinham de dentro de sua cabeça, mas ecoavam como se fossem reais. Vozes gritando, uma discussão calorosa e com toques de ofensas. Algo que seu passado marcara friamente, e que o deixara com tais marcas para sempre. Uma culpa, uma decepção. Uma saudade inexplicável, daquelas que circunstancialmente, após anos e anos adormecida.
 
     Saiu do banheiro e se sentou no sofá. As vozes continuavam ecoando dentro de sua cabeça, e rapidamente, ele foi levado até uma noite, há alguns anos, na qual discutia com um rapaz. O ambiente era outro totalmente diferente. Uma sala enorme, com mobília luxuosa e com cores claras, que deixavam tudo mais aconchegante. Na sacada da varanda, eles trocavam insultos, falavam sobre futuro, sobre carreira. Falavam sobre família e sobre o peso de responsabilidades. Nessa conversa, Seu Ramirez estava bem vestido. Usava um terno preto e óculos escuros que lhe rejuvenesciam alguns anos. O rapaz então, sai irritado e batendo a porta. Seu Ramirez então fica na janela com olhos enfurecidos, e bebe todo o vinho da taça de uma só vez, depois, irresponsavelmente jogando a taça na rua lá embaixo.
 
     Após a cena, Seu Ramirez voltou ao presente, e sem notar, já estava no cemitério, encarando o túmulo. Seus olhos começaram a se encher de lágrimas, porém as vozes haviam sumido. Na lápide de granito, havia uma foto de um homem belo e de aparência forte. O mesmo homem que se encontrara no álbum de Andressa, e que a fizera de debulhar em lágrimas.
  
     Uma sombra se formou sobre seus pés, e ele parecia já saber de quem se tratava. Virou-se lentamente, e tentou sorrir, mas sabia que seu sorriso não seria bem recebido.
 
     -Só me responda uma coisa. – disse Andressa parecendo com pressa. – É você que anda rondando a escola da Vitória, e dando balões à ela?
 
     -Sim... Ou você quer me impedir de ver minha neta? É isso?
 
    -Ser sua neta é só um erro do destino! Desde que Mateus morreu, e por sua culpa, nós não temos nenhuma ligação com o senhor!
 
     Ramirez se aproximou de sua ex-nora e abaixou o tom de voz.
 
     -Não ouse me culpar novamente pela morte de meu filho, e ainda vir dizer isso sobre seu túmulo. Você foi covarde! Fugiu com a Vitória e sumiu! Transformou minha vida num inferno, perdi o amor por tudo... Eu tenho o direito de me aproximar dela quando quiser.
 
     Andressa se afastou.
 
     -Você o obrigou a entrar naquele avião. Ele não queria. O tempo todo ele disse que preferia trabalhar aqui no Rio, abandonar esse negócio de pilotar, e ficar mais tempo conosco. O senhor o fez viajar naquela noite. Só Deus sabe o dobrado que cortei para inventar histórias para a Vitória quando ela falava do pai. Para ela, o pai tá viajando, e logo volta.
 
     -Você devia ter dito a verdade, Andressa. Olha como você vive. Eu noto na menina que ela não tá feliz. Ela não tem atenção, poxa. Ela não tem amigos por perto...
 
     -Não se meta agora. Ela já tem sete anos, e viveu muito bem esses sete anos sem o senhor.
 
     -Vocês nunca deixaram eu me aproximar dela. Me proibiram...
 
     -O senhor era um alcoólatra, e agora vive numa favela imunda, vendendo balões. Quem diria que o magnata das companhias aéreas iria falir e viver na sarjeta. Esse mundo dá voltas.
 
     -Sua ironia me corrói, Andressa. Não sei por que não posso me aproximar dela. Ela é tudo que sobrou do Mateus. Por favor, não faça isso. – implorou ele.
 
    Andressa tinha mágoas do ex-sogro. Desde o começo, Seu Ramirez fora contra seu relacionamento com seu filho Mateus. Muito rico e esnobe, achava que se casar com uma moça vinda de uma comunidade carente da baixada fluminense carioca, poderia atrasar a carreira de seu filho único. Quando soube da gravidez, fez de tudo para que a moça não tivesse o bebê, porém, ao ir à maternidade receber a pequena Vitória, seus olhos se encheram de paz, mas era tarde. Magoados com tudo que ouviram e passaram, o casal resolveu evitar Seu Ramirez, e esse desprezo foi matando-o aos poucos, até que resolveu se afastar de tudo, quando seu filho, contra vontade dele, viajou para São Paulo, a fim de participar de uma reunião conseguida por seu pai, e que quase o obrigara a ir. Foi então que o avião qual pilotava caiu. E assim, por dois anos, Seu Ramirez não teve noticias de sua neta.
 
    Essa falta de noticias mudou totalmente o rumo de sua vida. Bebendo muito, entrou em depressão, e aos poucos foi se afundando em tristeza. Até que saiu de casa, deixando tudo para trás, assumindo uma vida miserável, dedicada a ajudar as pessoas, e procurar sua neta. A última parte de seu querido filho.
 
     -O senhor não merece vê-la. Se dependesse de você, ela nem aqui estaria. Tinha preconceito contra mim! E eu devia lhe agradecer, pois por raiva de você, eu investi na minha carreira e hoje sou reconhecida pelo que faço, Seu Ramirez. Se trabalho muito, é para dar uma vida digna pra minha filha. Sinto falta do Mateus todos os dias. Cada vez que olho para ela, eu o vejo. O jeito como eles brincavam, como ele a amava... O senhor não faz ideia.
 
     Andressa estava visivelmente nervosa, e iniciou um choro. Ajoelhou-se diante da lápide e ali ficou. Atrás dela, Seu Ramirez observava a cena, coberto de remorso.
 
    -Você não sabe o valor do perdão. Eu vi a menina nesses dias de aula, ela simpatizou comigo...
 
     -Não quero o senhor perto dela, Seu Ramirez. Não quero. Criei essa menina nesses dois anos, vivendo numa ilusão. Ela não sabe que o pai morreu, mas para ela, eu sou sua família... Somente eu!
 
     -E pretende levar essa mentira até que ela vire uma mulher?
 
     -Eu sei o que é melhor para minha filha, e não quero que uma pessoa que quis mata-la ainda na barriga, se aproxime. Há coisas na vida que não são curadas nem com perdão. Vou te pedir, pela última vez, não se aproxime mais dela. Não quero ter que envolver polícia nisso, ok?
 
    O senhor sentiu uma ardência no peito, mas preferiu ignorá-la. Sentiu ali que o tempo não havia apagado suas atitudes errôneas do passado.
 
     -Andressa, eu ainda tenho posse da companhia. Volto quando quiser! Eu posso ajudá-las...
 
     Mas era tarde. Andressa pegou as chaves do carro dentro do bolso e saiu do cemitério. Enquanto caminhava até o estacionamento, pensava em tudo que tinha passado até então. A faculdade, os cursos, seu primeiro consultório... Um amontoado de pensamentos apareceu na sua mente, até que uma rápida imagem de seu marido surgiu. Ela então parou e se virou. Notou que havia uma pessoa caída mais a frente, e era justamente Seu Ramirez.
 
      Ela voltou correndo.
 
5
 
     Seu Ramirez se levantou lentamente de sua cama de restos de travesseiros sobre uma bancada de tijolos. Devagar foi caminhando até o banheiro, e enquanto se arrumava após o banho, tentava se acostumar com sua boca. Estava levemente paralisada do lado esquerdo, devido ao AVC que sofrera há três meses. Ainda não tinha se acostumado com sua nova fisionomia, mas estava lutando por isso.
 
     Saiu de casa e apenas olhou para o carrinho. Estava lá, abandonado, sem cores, sem nada. Continuou andando pela favela, cumprimentando aqueles que acenavam para ele. No seu andar agora lento, o senhor de sessenta e oito anos agora, caminhava na direção da escola São João Batista. As ruas pareciam maiores, as pessoas diferentes, mas ao dobrar a esquina, pode reconhecer o local. Sua memória também andava fraca, mas parecia que logo ia se recuperar com os tratamentos quais ele estava sendo submetido.
 
     Na porta da escola parecia que havia mais carros do que o normal, e de fato havia. Era a festa de dia das crianças. E os pais queriam observar o que as professoras tinham organizado. De longe, ele ficou observando tudo. Mas foi quando viu Vitória saindo da escola, que sentiu seu coração tremer novamente. De frente para ela, um homem vestido de branco foi à sua direção. A menina estava de mãos dadas com sua mãe, e estranhou o homem que parou à sua frente.
 
     -Você é a Vitória, menina?-perguntou ele com uma voz amigável.
  
     A menininha virou o rosto e o escondeu na saia da mãe. Com os olhinhos envergonhados, encarou Andressa como se pedisse para responder.
 
     -Pode responder, minha filha. Ele quer saber seu nome...
 
     Ela sorriu.
 
     -Sou eu. Vitória Ferreira Lombardi Figueira.
 
     -Nossa que nome grande você tem! Eu tenho um presente para você, menininha!
 
     Ao ouvir isso, Vitória se encheu de esperança. O homem na sua frente, era na  verdade, amigo de Andressa, e estava ali para cumprir um combinado que fizera com Seu Ramirez. Na verdade, o combinado entre Andressa e ele, de que, devido a tudo que já vivenciaram, das mágoas, ele continuaria de longe, observando a neta crescer. Por mais absurdo que esse trato parecesse. Mas seria melhor vê-la ali, de perto, do que perde-la mais uma vez.
 
     -Eu tenho que te mostrar uma coisa. – disse dando a mão à menina.
 
    Os dois então seguiram pela rua e chegaram à uma praça. Vitória estava ansiosa, e ficou ainda mais ao ver uma Kombi toda rosa. Ela se soltou das mãos do homem, e seguiu correndo pela praça.
 
     As portas da Kombi se abriram, e de dentro dela, dezenas de bexigas vermelhas em formato de coração voaram para o céu. Muitas, muitas mesmo. Os olhos da menina brilhavam. E ela lembrou-se daquele velhinho que deu tantos balões por ela, poucos na verdade, mas que para sua mente de criança e sonhadora, passariam talvez de um milhão.
 
     Ela tentou segurar alguns e conseguiu. Os outros, viu subir para o céu. E calada, pensou que agora, talvez, ela conseguisse o que sempre quis ao deixar todos os balões ganharem o céu. Queria, na verdade, que seu pai os avistasse, e por curiosidade, fosse à direção deles e a encontrasse. Acreditava que aqueles corações de mentira fossem trazer seu pai de volta, guiado por uma estrada vermelha. Seu peito se encheu de esperança, e ela gargalhava como Andressa nunca tinha visto. Um sorriso puro e que demonstrava a felicidade que se estabelecia ali. Ela queria muito perdoar seu ex-sogro, mas as mágoas não deixavam. Porém, seria grata ao Seu Ramirez por ter feito Vitória finalmente sorrir, e de uma maneira qual ela já havia se esquecido que era.
 
     De longe, Seu Ramirez viu todos aqueles balões que passara a madrugada inflando subirem aos céus e serem engolidos por ele. Sua menininha, sua neta e amor da vida, sempre que visse algum balão vermelho voando, logo se lembraria daquele velhinho que aparecera do nada, por pouco tempo, mas que com um pouquinho de atenção, e um simples gesto, a fez acreditar no impossível, e sentir o que toda criança deve sentir. Sentir acima da dor, do medo, e do abandono. Ele a fez se sentir amada. A fez se sentir feliz. A fez se sentir criança. A menininha que sempre fora. A sua neta. Seu sangue. E da qual nunca mais se afastaria, e que mesmo de longe, estaria perto, pelo resto de sua vida.

 
 
F i m
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 19/06/2012
Reeditado em 19/06/2012
Código do texto: T3733674
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.