_A confissão

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A filha do jovem casal Rudolph, alheia aos recentes acontecimentos, está sentada no jardim da mansão, protegida por duas centenárias palmeiras-imperiais trazidas do Jardim La Pamplemousse pelo tataravô paterno que embarcara na fragata vinda das Ilhas Maurício. Assim como o ancestral da jovem Lilith, as palmeiras sobreviveram à travessia marítima.

O vento massageia as folhagens e dá vida às fantasias daquela solitária criança. Ela recolhe algumas flores do jardim – um lindo ramalhete de antúrios é carinhosamente despetalado ao murmúrio sutil de “Malmequer... Bem-me-quer”; uma linda pétala de boca-de-leão tem, naquele exato instante, o néctar sugado por espécime raro de beija-flor colibri da espécie balança-rabo-canela, existente apenas em algumas regiões das Américas – as retrizes[1] de cor bronze metálico uniforme dão ao voo esplendor de raro encantamento.

O dia corre apressadamente e o lusco-fusco[2] é prenúncio de mais uma noite a cair sobre a esperança otimista de alguns homens e desesperanças de muitos.

Lilith corre ao redor da piscina onde novas nuanças da flora tocam-lhe o vestido rendado, presente da avó. A inocente criança cantarola, rodopiando, cantigas de ninar e parece embalar nos braços um anjinho invisível, soltando beijos que ressoam no ar.

No hospital, D. Lis é reanimada novamente depois de sofrer outra parada cardiorrespiratória. Os médicos estão apreensivos e temem perder a paciente – nos últimos três dias, o organismo da enferma apresentou respostas insatisfatórias e o temor é geral.

D. Zefa, a governanta[3], observa o desembaraço, o encanto e a desenvoltura da pequena Lilith bailando e distribuindo leves carícias em cada uma das flores – a afinidade é recíproca e as incontáveis ramagens do jardim parecem agradecer cada uma das carícias.

– Oi, Fá! – diz a pequena.

– Oi, meu anjo! – responde a sexagenária, preocupada, mas com ternura no olhar.

As duas olham na direção da garagem. O pai de Lilith aparece, entra no carro e, célere qual fugitivo, sai. D. Zefa se aproxima da criança, estende-lhe uma das mãos e a convida para entrar:

– Está escurecendo, princesinha! Vamos entrar?

– O papai saiu sem falar comigo, Fá!

– Ele está muito apressado, mocinha! Seu pai não está bem...

– Ele saiu sem falar comigo... Nem olhou pra mim.

O acidente com a mãe de Lilith mudara a rotina da família Rudolph. As lojas estavam nas mãos dos funcionários, o Sr. Rudolph pedira licença do trabalho – esperava-se que acompanhasse a esposa no hospital – e um dos motoristas da família assumira as funções da mãe de Lilith que adorava, fazendo questão, estar ao lado da filha o maior tempo possível.

Nos primeiros dias após o desastre, o Sr. Rudolph esteve presente. O desvelo dispensado à filha causou extrema admiração. Empregados e familiares elogiavam o amor e a atenção que o pai, apesar dos compromissos e do remorso que sentia, pois se julgava o responsável pelo acidente, revelara de repente. Nunca estivera tão ligado à filha. Mas, à medida que a esposa ia definhando, o pai de Lilith se afastava da herdeira e das obrigações familiares.

Terças e quintas ele saía às dezesseis horas, retornando exatamente às dezenove. Aos sábados e domingos o sumiço também tinha hora marcada: das sete às nove neste e das dezoito horas e trinta minutos às vinte horas e trinta minutos naquele. Em alguns dias o Sr. Rudolph levava o violão, instrumento que amava, mas, fazia tempo, estava esquecido no quarto de hóspedes construído ao lado da piscina.

D. Zefa estranhava algumas ligações recebidas, principalmente quando o patrão falava baixinho, retirando-se da sala e da proximidade de onde estavam a filha, os criados e algumas visitas.

Nas roupas do Sr. Rudolph não havia manchas de batom; os lenços não demonstravam anormalidades. Não havia cheiro de bebidas – o empresário não suportava cigarro nem bebidas –, mas o comportamento dele causava perceptível decepção em todos. Para eles, os hábitos e as fugas do renomado engenheiro num momento tão delicado, com a esposa à beira da morte, era pecado imperdoável, desamor e traição. D. Lis e a criança não mereciam tamanha insensatez.

– Sr. Rudolph!

– Pois não, Zefa!

– Ligaram do hospital e disseram que a D. Lis piorou muito de ontem pra hoje.

– Eu sei. Ligaram pra mim, tá! Passarei o dia inteiro fora hoje. Cuide da Lilith.

– Mas Sr. Rudolph, a D. Lis piorou e o senhor vai...

– Por favor, Zefa! Não posso ajudar de outra forma. Cuide da Lilith.

– Os médicos acham que ela não...

– Ela vai melhorar, acredite! – foi a resposta.

O diálogo entre D. Zefa e o Sr. Rudolph coincidiu com o primeiro dos três dias instáveis de D. Lis. E por três dias o empresário permaneceu ausente, ligando de quando em vez apenas pra saber notícias da pequena. Ao retornar, no quarto dia, o carro estava enxertado de flores e o aroma das begônias invadia o interior do veículo. Ao retirar a capa da carroceria, o motorista sentiu o doce e intenso perfume de algumas gardênias.

– Artur!

– Pois não, senhor!

– Mande lavar o carro.

– Sim, senhor!

O Sr. Rudolph entra, fecha a porta do quarto e adormece, sendo acordado, horas depois, pelos gritos de alegria da filha que o beijava:

– Oba! Papai chegou! Papai, quando a mamãe voltará? Estou morrendo de saudade...

Escondidinha, atrás da porta, D. Zefa chora, imaginando a maldade do patrão diante do sofrimento da esposa e da pureza da filha.

– Sua mãe voltará pra casa brevemente, o papai promete! Ela está melhorando e logo estaremos juntos outra vez. Você confia no papai?

– Sim, pai, confio!

O Sr. Rudolph manteve os novos hábitos. Oito dias depois da conversa com a filha, que tagarelava sem parar deitada em cima do pai, D. Lis teve alta. Os parentes relataram as ausências do marido, deram detalhes pormenorizados de tudo, com a ajuda prestimosa de D. Zefa... E a esposa do Sr. Rudolph, D. Lis, resolveu investigar – já – contratando advogado para adiantar, enquanto não flagrava o marido com a suposta amante, a papelada necessária para a separação.

Sábado. 18h30. O Sr. Rudolph pega o violão e sai. D. Lis e D. Zefa saem em seguida, acaçapadas[4], acompanhando-o. Ele estaciona na praça central da cidade onde moram e se dirige até a Igreja Matriz. As mulheres se entreolham, assustadas. Descem do carro e o seguem rumo à porta principal do Templo Sagrado. Ao entrarem, encontram o Sr. Rudolph de joelhos, contrito[5], rezand o, com um terço na mão. Os dedos percorrem as contas do símbolo místico, denunciando o encontro pessoal com Deus promovido pela oração... Ele termina o terço, faz o sinal da cruz e se dirige para junto do altar. Tira o violão, guarda a capa do instrumento num lugar discreto, afina as cordas com o diapasão e acompanha, exorbitando de alegria, a linda voz da moça que cantaria os cânticos àquela noite. Ensaiam... O pároco, inspirado, torna esplendorosa a liturgia daquela celebração.

Ao retornar para casa, D. Lis sente ressoar parte da oração que o marido fazia quando de joelhos, conversando, em homilia, com Deus:

– “Oh, meu Deus, obrigado por salvar a minha esposa!”

E no carro da família Rudolph ainda persiste o aroma das rosas que conduziram o Santíssimo durante a procissão de Corpus Christi.

Crato-CE, 15 de junho de 2012. 23h56

[1] Penas da cauda das aves que orienta o voo.

[2] A hora crepuscular, o anoitecer, o momento de transição entre o dia e a noite (da tarde ou da Alba).

[3] Mulher que, mediante remuneração, dirige uma casa, ou se encarrega da educação de uma ou mais crianças.

[4] Escondidas.

[5] Mortificado, triste, arrependido.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 16/06/2012
Reeditado em 18/06/2012
Código do texto: T3728134
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