Crescente

(parte 2 de 4)

“Querida Nita,

Perdão. Mil vezes, milhares, infinitas. Por favor, meu amor, perdoe-me. Embora pareça puro desespero eu não poderia começar esta carta de outra forma. Mesmo que você seja uma ilha rodeada de rancor contra mim, o meu desejo é naufragar em você. Sendo o mais ingrato dentre os homens e não merecendo misericórdia, não consigo negar às súplicas da Esperança em acreditar que tu possas perdoar os erros de um pobre diabo e, assim, ratificar-se como a mais sublime e magnânima deusa nesta Terra.

Não penses que escrevo para humilhá-la. São ordens médicas: meu tratamento consiste em sessões de conversas (monólogos!) com os médicos, remédios e livros receitados e, por fim, a escrita. Eles conseguiram ser tão eloquentes em afirmar que conseguirei exorcizar os meus demônios com lápis e papel que passei a acreditar, comecei a ter fé. E mesmo que estas linhas nunca cheguem à você, que virem papéis amarelados arquivados como referência de método terapêutico, prefiro pensar que serão lidas por você e apaziguarão brevemente a sua alma em saber que estou melhorando a cada dia, e reconheço a minha culpa para contigo.

Das leituras médicas obrigatórias, somente um livro tem me ajudado, mas se não menciono o título é porque acredito não ter sido indicado pelos doutores. Provavelmente caiu ao acaso na pilha que me entregaram, pois o seu conteúdo difere muito dos demais. Já o li sete vezes. Tem o cunho poético e filosófico e me causa profunda introspecção. Se um dia vieres me visitar, revelarei o título e o autor. Ele traz várias histórias e uma me lembrou automaticamente você: a da garotinha religiosa que amava acrósticos e sonhava mudar de vida. Transcrevo um trecho, mas como não estou próximo ao livro, permito-me falhar para com o original buscando as palavras de memória.

Paz orava regularmente. Fervorosa, amava vivenciar o respeito máximo, enquanto tentava inocentemente redimir-se entre divinais abluções. Queria um ideal melhor, ousar renascer, reinventar-se em rainha e imperatriz, soberana em castelos onde não transitassem imperfeições. Nem um alto rei com o melhor encanto seria transformado em Salomão, levantado ou ungido como onipotente senhor.

Não tire conclusões precipitadas sobre o trecho escolhido. A leitura muitas vezes tem relações incompreensíveis com a realidade, uma frase leva um leitor à África, outro ao espaço e ainda um terceiro para dentro de si. Em mim, a passagem lembrou carinhosamente o seu jeito, tudo o que fizera por mim e o que poderá fazer. Foi somente aqui que percebi o quanto tu fazes-me falta. Passo as noites em claro olhando o céu e imaginando o seu olhar a cruzar com o meu.

Por mais incrível que possa parecer, um fato que estranhamente está contribuindo para a minha melhora e diminuído a solidão é um novo companheiro de quarto. Trata-se do senhor ***, um cavalheiro que gosta de narrar peripécias amorosas e me transformou em confidente. Você não acreditaria na metade das coisas que ele me conta. Eu não acredito e desconfio que até mesmo ele, às vezes, não acredita. Uma das minhas histórias favoritas é a das três irmãs que trabalhavam em sua fazenda e de como a paixão por uma delas o levou a ser meu roommate. O pai das moças, o senhor Maan, o recusou como pretendente da filha mais moça, Selena, devido a um mistério no passado dela. Uma das partes que achei mais interessantes e se passa próximo à época da colheita em sua fazenda. Foi quando o jovem envolveu-se sexualmente com a filha do senhor Maan.

Mas estou me adiantando, primeiro preciso contar que o pobre rapaz desesperou-se completamente ao ter o seu pedido de amor recusado. Se já é difícil não ser correspondido, acrescente ter de conviver com o objeto de seu desejo diariamente. Ele até tentou disfarçar, mas a sua tristeza evidenciava o seu sofrimento silencioso. Todavia, uma moça prestava atenção ao sofrimento do fazendeiro.

A estância possuía uma lagoa que o jovem frequentava à noite buscando o consolo das estrelas. Deitava-se na relva macia enquanto o seu coração pesava seu infortúnio. Dizem que a dor de uma rejeição amorosa só intensifica os pensamentos recorrentes na pessoa amada. Eu considero-me a prova viva dessa teoria, Nita. E o meu companheiro via o rosto da moça Selena flutuando no céu até mesmo quando fechava os olhos. Passaram-se semanas assim, até a noite em que ele notou alguém se movimentando do outro lado das águas. Era um vulto feminino. Ele não conseguiu distinguir quem era, mas percebeu que a pessoa despia-se para nadar. A excitação de tornar-se um voyeur acidental daquela cena sensual despertou os seus sentidos. Poderia ser a sua amada? A mulher entrou suavemente nas águas de verão e nadou, mergulhou, fez piruetas e brincadeiras de náiade como se fosse a única viv’alma em todo o universo. A certa altura, ela deu-se conta que não estava só (ou já havia notado antes e só agora o demonstrava) e nadou rumo ao jovem observador. Neste ponto, minha querida, uso as minhas palavras pois os termos que ele usou poderiam chocar a sua ingenuidade. A cena foi mágica para ele: uma mulher saindo das águas noturnas, totalmente nua, aproximando-se hipnoticamente e colando o corpo úmido e fervente no seu. Era Einódia, a irmã mais velha de Selena. Ele tentaria falar se ela permitisse, mas a única linguagem que conseguiu foi a de seus corpos entrelaçando-se. Ela o dominou com uma volúpia selvagem, mordendo, arranhando e cavalgando-o como a um animal. O subjugou a todos os seus desejos femininos. O jovem consentiu acreditando que o corpo de Einódia o faria esquecer da paixão por Selena, mas acabava sobrepondo o rosto da amada sobre o da irmã. A imaginação sempre intensifica qualquer prazer conforme os desejos mais recônditos.

Ambos passaram a frequentar o lago várias noites por semana, sempre com o cão negro de Einódia atuando como vigia silencioso. Era ela quem ditava a regularidade dos encontros. O rapaz não se enganava, sabia desde a primeira vez que não era ele quem definia o rumo que o destino o levava. A sensação de prazer furtivo e proibido junto com o sentimento de vingança contra o senhor Maan agia como veneno suficiente para entorpecer a razão do mancebo e inflamar o seu apetite carnal. Já que lhe fora negado entrar formalmente na família Maan, entrava sem pudores em uma das filhas. Porém, em seu íntimo, o rapaz começou a indagar o motivo que levara a primogênita dos Maan a procurá-lo após a recusa do pai em tê-lo como genro. Lembrou-se das vezes que cruzara cabisbaixo ou melancólico por Einódia pelas plantações durante o dia, ela lhe direcionando olhares inquisidores. Concluiu que a desgraça pessoal de alguma forma o tornara desejável à moça. Mas este tipo de atração cobrou um preço do fazendeiro. Ele passou a sentir-se traidor de seu próprio amor, embora não tivesse compromisso com Selena. O pior tipo de traição é a para consigo mesmo, sendo o segundo tipo a das pessoas próximas.

A maior parte da Estância Serenidade fora direcionada à cultura do fumo, indo desde a preparação do solo, plantio, capação, colheita até a curagem das folhas para a venda como matéria-prima para a fabricação de cigarros e similares. Estando todas as usinas de processamento localizadas na capital, o papel do fazendeiro finalizava somente na venda das folhas a um comprador vindo da cidade, cujo papel era avaliar se as etapas da produção estavam dentro dos padrões mínimos exigidos e efetuar testes de qualidade nas folhas. Após esta fase é que se definia o preço dos lotes e a quantidade a ser negociada. Foi quando a figura mais estranha apareceu naquela região, o Barão Samedi, fazendo com que sua breve visita criasse vários mitos e lendas espalhados pelos mais supersticiosos.

Nunca se soube se o Barão Samedi possuía o título realmente ou se era o seu nome ou apelido. Independente desta informação, o que se sabia dele era que trabalhava como comprador de matéria-prima para várias empresas fumageiras. Devoto em sua profissão, era um fumante exemplar e uma propaganda ambulante do estilo conferido aos fumantes. Aliás, poderiam dizer que ser fumante era a característica que moldava sua aparência e caráter: tinha a pele cinza como um dia frio e chuvoso, rosto magro e esquelético e perfil alto que davam a impressão que se desfaria em cinzas a qualquer instante. Tudo nele lembrava o cigarro. A cartola e terno pretos eram quase apagados. As tosses e escarros constantes deixavam a voz anasalada e rouca como fumaça. Sua presença causava nos interlocutores uma sensação de sufoco como sendo tragados aos poucos, saboreados com prazer, por ele. Possuía manias excêntricas, como dispor de um empregado para carregar a sua piteira especial, responsável pela sua aparência e saúde peculiares. A máquina chamada carinhosamente pelo Barão de LOA, havia sido desenvolvida por ele e mesclava os desenhos do narguilé árabe e da eolípila grega para intensificar o efeito, sabor e vício do fumante à patamares divinais. O Barão Samedi hospedou-se na fazenda por uma semana, tempo suficiente para percorrer toda a área de plantio e verificar a produção colocada à venda. Enquanto isso, os passos do Barão eram acompanhados com especial interesse.

O comprador negociou noventa por cento da mercadoria, dizendo-se impressionado pela qualidade do produto. O montante pago em espécie deu um ótimo lucro. Mas, assim que o Barão Samedi foi embora levando toda a produção adquirida, perceberam que o dinheiro desaparecera também. Estava guardado em uma gaveta na escrivaninha do escritório, na casa do fazendeiro, onde poucas pessoas possuíam acesso. Alguns empregados começavam a falar que o dinheiro era produto de feitiçaria, magia negra, coisa do diabo. As suspeitas de quem poderia ter cometido tal ignomínia foram sanadas quando o senhor Maan apareceu trazendo uma carta. Nela, a sua filha Einódia revelava que fugira junto com o Barão Samedi levando o dinheiro como pagamento pelos serviços prestados ao jovem patrão, embora omitisse quais. O rapaz, totalmente sem reação, apenas ouvia os lamentos da mãe que clamava que a colheita das outras culturas mal pagaria as dívidas contraídas. Insistia em denunciar a ladra às autoridades. Enquanto isso, o filho só conseguia pensar que Einódia encontrara alguém em situação mais lamentável que ele e alterara o seu objeto de desejo. Quanto mais melancólico, doente, moribundo, quanto mais próximo da depressão e da ruína, mais a excitava. O fazendeiro pensou no estrago que sofreria a sua reputação caso descobrissem as suas relações com Einódia. E, pelo que sabia, ela já estava longe e por ser astuta não havia garantia alguma de encontrá-la ou recuperar o dinheiro. Ela poderia até direcionar intencionalmente os olhares atrás do Barão e ter fugido em outra direção. Resolveu não ir atrás do dinheiro. Suportaria as consequências como martírios para a sua consciência pesada.

O coitado do senhor Maan, sem saber os detalhes das transações noturnas de sua filha com o patrão, sentia-se responsável pela atitude impensada dela. Renunciou a sua parte na colheita e, para sanar temporariamente o estrago deixado na honra da família, ofereceu a mão da filha ao jovem. Não resolveria totalmente a questão, mas seria o início da compensação que o empregado prometia pagar integralmente. Caso o patrão recusasse a oferta, o agregado não teria alternativa a não ser partir imediatamente com a família, humilhado e desonrado. Porém, para o jovem patrão, ficar sem Selena era uma hipótese mais insuportável que o prejuízo financeiro. Assim, aceitou de imediato a oferta do senhor Maan. O único problema é que a filha oferecida foi Diana e não Selena. Era tradição naquelas paragens as filhas mais velhas casarem-se primeiro. E assim começava mais um capítulo nas desventuras de meu companheiro de quarto.

Nesta parte interrompo a história e a carta, minha querida Nita. Tenho esperanças que utilizando do mesmo subterfúgio de Sherazade eu consiga despertar sua curiosidade para o desfecho da história evitando por mais alguns dias ser cortado de sua vida. Prometo que se me responder, revelarei como o senhor *** lidou com a situação de ter de casar-se com uma mulher para não distanciar-se do verdadeiro amor, agora sua cunhada. Tenho certeza de que você gostará da continuação. Saiba que eu passei a encarar a existência como similar a um cigarro. Começamos queimando metodicamente o tempo que nos resta de vida. Entrementes, poderemos sentir prazer ou fazermos mal a nós mesmos e aos ao nosso redor, mas no final – da vida e do cigarro – acabamos inevitavelmente em cinzas. Caso se acredite na alma, esta evapora-se tal qual fumaça viajando até as instâncias superiores, deixando para trás a pobre matéria orgânica que anteriormente a aprisionava. Somos fumados por Deus, meros objetos de seu prazer e vício pessoal. É ele quem determina quem será o próximo a virar fumaça. E, por sermos de tão breve existência é que reitero meus pedidos de desculpas e de obter notícias suas, meu amor.

Sem mais, despeço-me afetuosamente.

Seu,

F.”