HOTEL LINDA DO ROSÁRIO (Parte VII)
HOTEL LINDA DO ROSÁRIO
(Parte VII)
Este ano de 2002, completam 34 anos que faço o mesmo caminho de amor até o Hotel Linda do Rosário. O mesmo ritual de amor: duas horas de permanência em nosso ninho de beijos, afagos e sexo, o quarto 201, na hora do almoço e retorno imediato. Em nosso primeiro encontro, Jayme completara 38 anos de idade e eu 36 anos. O tempo passa, voa o tempo do nosso amor, hoje estou com 70 anos de idade e o meu amado 72 anos. O tempo do amor passou e eu nem senti, não senti porque ele permanece. Às vezes me pergunto: como pode? Ser feliz no amor, é ser feliz em tudo na vida - até mesmo manter um casamento falido, quando o parceiro é alvo de um amor que não envolve sexo - Jayme com Corina e eu com Márcio.
Mudando-se o que se deve mudar, eu mudei, ou transmutei? Jayme transmutou ou mudou também? Ousamos na medida certa, pedimos o que pudemos pedir, queremos nos querer para sempre e procuramos amar sem medida sem extravagância ou provocação. Calados, batemos à porta da felicidade - e do saber consciente da nossa medida certa em proceder certo também - assim que a porta foi aberta. Porque, somos conscientes de que o saber não se faz; ele é aquilo que se revela quando a porta se abre. Em nosso caso de amor, a porta não se abriu, ela se escancarou para nós, de lés a lés, o caminho estava desimpedido. Para mim e Jayme, todos os caminhos nos levavam ao quarto 201 da Rua do Rosário, 55, centro do Rio de Janeiro, esquina com a Rua Primeiro de Março, cujo nome é em comemoração ao "dia do fico"; e ficamos, e fizemos e permanecemos neste amor sem igual, desigual no tempo e no espaço porque, à medida que avançávamos em anos, mais aumentava em nós a vontade de mais amar. Foi esta a fórmula da síntese do esforço e da graça que nos uniu: a do princípio do trabalhoso meio de aceitação e da receptividade sem o menor receio, do mérito enfim e do dom. Este é o enunciado da lei absoluta de todo o progresso amoroso e, por consequência, de toda a disciplina imposta por nós em nome do bom senso, quando praticamos amor neste quarto 201. Sem esta prática, o nosso amor seria mero historicismo e estéril. Existe, em nosso profundo amor a Obra, e essa obra realizada e em realização, é filha da graça e do esforço conjunto.
Num processo natural de um convívio saudável, os nossos filhos uniram-se em matrimônio: Jonas casou-se com minha filha Cármen em 1978; Em 1981 foi a vez Leandro contrair matrimônio com a doce Débora; no ano 2000 foi a vez de Vicente casar-se com Constança. Guilherme está casado, na França, com uma linda francesa, artista plástico. Os nossos lares foram povoados por netos, lindos netos, lindos momentos de alegria.
A sombra da morte também nos visitou, levando a querida Corina em 1985, deixando-nos profundamente tristes. Muito chorei o desaparecimento de minha querida amiga irmã. Serenamente partiu agradecendo à vida, agradecendo a todos pela felicidade plena a si proporcionada por todos nós. Sempre é muito dolorosa a partida de um ente querido. Corina, em seu leito de morte, conservava traços de beleza, de bondade e muita compreensão. Ela gostava muito de relembrar o passado vivido por nós duas. Dediquei toda a minha atenção áquela criatura angelical. A experiência empírica da morte é a do desaparecimento dos seres vivos do plano físico. Essa é a experiência que nos dão nossos cinco sentidos. Essa é a experiência dolorosa que nos impõe a sensação de perda. Mas o desaparecimento como tal não se limita a isso, uma vez que é experimentado também no domínio da experiência interior, ou da consciência. Imagens e representações desaparecem dela como os seres vivos desaparecem da experiência dos sentidos através do esquecimento. As nossas famílias nunca esqueceram desta venerável criatura. Ela estava indelevelmente gravada na memória dos filhos como exemplo de grande mãe. Uma bela moldura ostentava a fotografia de Corina, estava intronizada na sala de visitas mostrando claramente que o seu lugar de esposa e mãe jamais será preenchido por outra e qualquer mulher.
Jayme, no quarto 201, do Hotel Linda do Rosário, mostrou todo o seu desespero e desencanto face à morte de Corina. Sentia-se desamparado, abatido pela perda, o sofrimento dos filhos, o luto que dominava os recantos da casa, o cheiro da ausência, os belos vestidos, intocados, guardados no armário. O que fazer?
- Se ao menos você fosse viúva, eu casaria com você! - disse ele.
- Jayme, meu querido amor, - respondi - nunca pense isso! Mesmo que eu fosse viúva, jamais oficializaria o nosso amor. Os nossos filhos jamais aceitariam que isso acontecesse! Seria um escândalo sem precedente! Tremo só de pensar! Se existissem somente Corina e Márcio, nada nos impediria de já estarmos juntos há tempo! O problema são os nossos filhos e netos! Você viu o desespero de Thiaguinho, o nosso neto diante do corpo inanimado da avó? Meu amor, fomos marcados para ser amantes somente... O que importa é que o nosso amor é eterno, custe o que custar! Sinceramente, sentir-me-ia fragilizada se tivesse que enfrentar as objeções dos nossos filhos!
- Você tem razão, meu amor, - não me sentiria feliz em ver você sendo hostilizada... O mais grave: até pelos próprios filhos!
Márcio e eu passamos a viver em casa de Jayme durante o dia, só retornando à noite para a nossa casa. Enquanto eu ia trabalhar e amar o meu amor de verdade, Márcio, já reformado do exército, comandava o andamento da casa enlutada.
Considerando o domínio do esquecimento e da recordação: a memória, no domínio subjetivo, é a magia que efetua a evocação das coisas do passado, tornando-as presentes. Como o feiticeiro ou o necromante evoca o espírito dos mortos, fazendo-os aparecer, também a memória evoca as coisas do passado e as faz aparecer à nossa vista interior mental. Eu, por exemplo, sempre evoco o passado que me uniu a Jayme, gosto de recordar cada instante, cada momento deste amor sem limites que me faz jovem, os sentidos afloram e fazemos amor em sucessiva escala subjacente. Dependendo do tipo da recordação, procuramos estender esta recordação num ritmo lento, paciente, condescendente e prazeroso. A velhice não limita o amor, ela aprimora, aperfeiçoa a arte de amar, uma perfeita sintonia entre o masculino e o feminino, gerando uma fonte de eterno amor que abastece todo o círculo familiar. A recordação presente é o resultado de operação mágica no domínio subjetivo pelo qual eu consigo fazer surgir do nada negro do esquecimento uma imagem viva do passado... Será uma marca impressa em meu coração? Um símbolo a me lembrar deste amor perfeito? Uma cópia do que já se encontra impresso em minha alma ou um fantasma de tudo o que precedia o nosso embate entre as polaridades?
A memória é marca impressa enquanto reproduz uma impressão recebida no passado; é um símbolo enquanto se serve de minha imaginação para representar uma realidade que ultrapassa sua representação imaginária; é cópia enquanto só quer reproduzir o original do passado; é fantasma enquanto é aparição surgida do abismo negro do esquecimento e enquanto faz reviver o passado, tornando-o presente à minha visão interior.
Em 1990, foi a hora e a vez da partida de Márcio para a eternidade. Foi outra experiência dolorosa. Foi indescritível a reação dos nossos filhos! Márcio conseguira o amor de todos eles, além de esposo, cunhado, amigo, foi pai, tio, avô, sogro, conselheiro e amigo de todos nós. Sabia dispensar uma palavra certa e de incentivo a quem precisava de apoio e carinho. Os netos, inconformados, choravam a perda do avô querido. Foi muito difícil coordenar aquele enredo de luto e de dor. Eis-me, mais uma vez perdida no desespero da perda! Márcio, devido à sua dedicação aos estudos e ao saber, não se revelara um bom amante, um sedutor ou dono de uma sensualidade que o tornasse apto a atrair o amor do sexo oposto. Era um comportamento sexual satisfatório mas não o suficiente. Márcio atraia o amor de todos nós por causa do bom humor, da alegria de viver, da simplicidade e da compreensão. Viveu a medida exata de sua felicidade: 61 anos. Ainda jovem para uma qualidade de vida pautada na paz de espírito.
A reação de Jayme foi a de muita tristeza pela perda do amigo de longas datas, amigo este que transpos desafios e aceitou viver sua vida sem grandes questionamentos... Será que Márcio desconfiava do relacionamento extraconjugal que me unia a seu grande amigo Jayme? Afinal, a sociedade hipócrita impõe uma fidelidade conjugal baseada na oclusão mental, numa sórdida subserviência a uma causa que foge à compreensão humana. Príncipe encantado, alma gêmea, cara metade, felizes para sempre... Diariamente todos os mitos românticos são despejados na cabeça de todos nós. Contos de Fadas contados às crianças através de filmes, músicas, novelas e livros, dando a idéia de que existe, em algum lugar no mundo, alguém que vai nos completar com um grande amor, nos contemplando com uma felicidade total, inculcando em nossas mentes a ponto de considerarmos ser isto uma verdade universal.
Sem medo de polêmicas, afirmo que a entrada do amor romântico no casamento representa um golpe de morte na instituição do matrimônio, provocando frustrações, ciúmes e uma preocupação obsessiva com a chamada "fidelidade conjugal". A saída para um casamento estável é se respeitar a individualidade do parceiro e não atirar a culpa pelo fracasso matrimonial sobre o outro. Quando amamos de verdade, sem ser "alma algema", sem imposição, ato da escolha voluntária e precisa, existirá uma fidelidade aos nossos próprios princípios. Deixando de existir traição ou infidelidade quando procuramos este amor em outro parceiro.
Será que Márcio desconfiava de mim e Jayme? Se desconfiava, abriu mão desta desconfiança porque nunca tocou no assunto. Soube ser um gentil homem, e por isso mesmo eu o amava tanto...
Jayme e eu estávamos livres para amar... Como assim? Sempre livres vivemos para amar este amor sem reserva e sem remorso... Viúvos ficamos, ele de Corina, eu de Márcio. Livres estamos deste preconceito voraz que cerceia tantos grandes amores nascentes e morrem em seus nascedouros... Romeu e Julieta... Imagino Romeu velho, beberrão e indecoroso em sua manifestação de amor por Julieta... Por outro lado, imagino Julieta, gorda, com varizes, peitos caídos, parideira e infeliz por ter acreditado naquele amor que nunca existiu... Infelizes morreram, envenenados pelo ódio... numa situação pior do que o veneno que interrompera as suas vidas em plena flor da idade...
Amanhã será o dia dos namorados, véspera do dia de Santo Antonio de Pádua ou de Lisboa... Amanhã será o dia das minhas declarações, dos meus beijos e das minhas juras a Jayme, o meu eterno namorado...
. http://www.youtube.com/watch?v=LLsg_Lk819s&feature=related